N316

[vc_row][vc_column width="1/4"][bs-user-listing-4 columns="1" title="" icon="" hide_title="1" heading_color="" heading_style="default" title_link="" filter_roles="0" roles="" count="1" search="" order="DESC" order_by="user_registered" offset="" include="22" exclude="" paginate="none" pagination-show-label="0" pagination-slides-count="3" slider-animation-speed="750" slider-autoplay="1" slider-speed="3000" slider-control-dots="off" slider-control-next-prev="style-1" bs-show-desktop="1" bs-show-tablet="1" bs-show-phone="1" custom-css-class="" custom-id="" override-listing-settings="0" listing-settings="" bs-text-color-scheme="" css=""][/vc_column][vc_column width="3/4"][vc_column_text css=".vc_custom_1613384469729{margin-left: 26px !important;}"]Estávamos algures na estrada nacional 316 e o abraço do sol de inverno iluminava os nossos rostos, contrastando com as pequenas crostas de gelo que apareciam onde a luz não chegava.

O carro ia dando sinal do perigo do piso enquanto serpenteava pelas curvas e contracurvas características das estradas transmontanas.

Ao som da “Heroes” do David Bowie cantada quase em sussurro pelas nossas vozes e acompanhada pela rádio, reparava na paisagem que era já de uma floresta despida pronta para o rigor do inverno que timidamente se instalava.

De longe a longe, éramos cumprimentados pelo olhar discreto, mas curioso, daqueles que, resistindo ao frio, procuravam a sorte na apanha do ouro transmontano, a castanha. Para muitos, uma das maiores fontes de rendimento do ano, para os restantes uma forma de se reconectarem com as suas raízes e as memórias que as mantêm vivas.

Entrávamos agora para o troço municipal, desgastado, com pequenos cortes e marcas como se da pele de um velho se tratasse. Em silêncio perguntava-me quantas histórias, à semelhança do velho, esta estrada esquecida num pequeno canto de Portugal poderia ter para contar. No banco de trás, começava a preparação da festa de passagem de ano, enquanto à nossa frente, no fim da íngreme descida, surgia o pequeno aglomerado de casas. A possibilidade de reunir, por uma noite, alguns amigos que estavam agora dispersos pelo país animava-nos e tornava acolhedora a entrada na aldeia onde casas típicas de pedra se misturavam com construção mais recente, separadas por uma estreita estrada dando a sensação que abraçavam o carro enquanto prosseguíamos viagem. Em breve estaríamos em terra batida. No final, estava o nosso destino.

Mais uma curva completamente gelada, que fez com que o painel de bordo do carro acendesse com tantas luzes que, por breves segundos, o transformaram no cockpit de uma nave espacial. Do lado direito da estrada, estava um pequeno largo. Decidimos parar.

Saímos do carro e imediatamente percebemos que não estávamos vestidos para a ocasião. O rigor do inverno transmontano começava a fazer-se sentir, mas nada como boa disposição para aquecer o espírito. Afinal, não tínhamos feito a viagem para nada e faltavam apenas 150 metros.

Íamos já a meio da descida quando, por detrás de uma primeira escarpa, apareceu uma torrente de água que corria em direção ao fundo do vale, acordando toda a paisagem que a envolvia.Parámos por um breve momento para apreciar a beleza da imponente força da natureza que separava a íngreme encosta que acompanhava o vale. Decidimos tirar algumas fotografias antes de seguir em direção à cascata, mas nem a melhor câmara de smartphone faria jus a este cenário. Pelo menos nas nossas mãos. Após duas ou três fotografias rápidas para memória futura, seguimos caminho.

Descemos até ao fundo do vale onde nos esperava uma subida montanhosa ao longo da queda de água, naquilo que se assemelhava a uma paisagem retirada de um livro de Tolkien. A força da água a embater contra as pedras que marcavam o seu caminho tornava qualquer comunicação entre o grupo difícil, no entanto, quando estamos perto de um fenómeno natural tão belo, puro e implacável há um sentimento de pertença e completude que se apodera de nós. Por momentos, o tempo parece ficar suspenso enquanto olhamos hipnotizados para o fluxo contínuo de água a sair do topo da montanha.

Qualquer outro pensamento torna-se irrelevante, sendo substituído por uma calma estoica e uma vontade de desafiar o limite da proximidade aos milhares de litros de água que seguem o seu caminho. Passado cerca de vinte minutos, decidimos voltar; a luminosidade começava agora a desvanecer e em breve as estradas voltariam a gelar.

Subíamos agora as apertadas estradas da aldeia, enquanto à nossa volta se viam ,de quando em quando, pequenos grupos de pessoas em volta de carcaças de porcos suspensas por cordas apertadas a traves. Estávamos, afinal, na altura do famoso fumeiro transmontano.

Este espírito de comunidade desperta em nós a consciência de que vivemos afastados, fechados na nossa bolha social num país altamente litoralizado e centralizado em áreas urbanas. Nestas, grande parte da realidade crua das nossas tradições é apagada ou filtrada em troca de um produto sintetizado, empacotado e embelezado por equipas de marketing para, posteriormente, ser distribuído em massa nas superfícies comerciais.

O fumeiro, tal como tantas outras tradições do nosso país, implicam uma ligação ao reino animal, à cadeia alimentar, a uma realidade de que, enquanto humanos, nos fomos afastando e que hoje nos choca. No entanto, no revés da moeda, continuamos a amar a nossa portugalidade exportada num pacote bem cuidado e validado através de uma etiqueta “made in Portugal” anunciada num reclame ao som de fado.

As tradições parecem-nos belas, mas ao mesmo tempo, quando tomamos consciência do que muitas destas implicam, as pessoas envolvidas nas mesmas tornam-se, injustamente, selvagens. Numa época em que prezamos a ligação ao meio ambiente, a diminuição da poluição e o respeito pelos animais, esquecemo-nos que estes “selvagens” são quem vive em maior contacto e sintonia com o nosso lar.

Já para não falar de que são elas quem melhor cuida das espécies autóctones das nossas regiões. Estas pessoas são a última fronteira de conservação de tradições regionais tão importantes para não perdermos a ligação às nossas raízes.

A emigração em massa e o desinvestimento progressivo no interior do nosso país tornam esta população isolada, envelhecida e dependente de agricultura de subsistência e empregos precários. Preservar e dinamizar estas comunidades, não é só necessário mas urgente.

No entanto, apesar de todas as dificuldades, somos cumprimentados por um sorriso ou um aceno de despedida enquanto deixamos para trás o povoado. O sol refletia já no espelho interior do carro, escondendo-se lentamente atrás das montanhas. Entrávamos agora na N206…em breve estaríamos de volta à cidade.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

ASTROpoéticoFENÓMENO

[vc_row][vc_column width="1/4"][bs-user-listing-4 columns="1" title="" icon="" hide_title="1" heading_color="" heading_style="default" title_link="" filter_roles="0" roles="" count="1" search="" order="DESC" order_by="user_registered" offset="" include="8" exclude="" paginate="none" pagination-show-label="0" pagination-slides-count="3" slider-animation-speed="750" slider-autoplay="1" slider-speed="3000" slider-control-dots="off" slider-control-next-prev="style-1" bs-show-desktop="1" bs-show-tablet="1" bs-show-phone="1" custom-css-class="" custom-id="" override-listing-settings="0" listing-settings="" bs-text-color-scheme="" css=".vc_custom_1597220175488{margin-bottom: 150px !important;}"]

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[/vc_column][vc_column width="3/4"][vc_column_text css=".vc_custom_1597220133191{margin-left: 100px !important;}"]O amor sempre nos recompensará,
podendo brindar-nos de milhentas formas,
as mais das vezes imperceptíveis
devido à nossa desatenção
motivada pela obstinação de prosseguir
numa incessante busca de algo,
alguma coisa que se nos pedirem para definir
teremos dificuldade em exprimir.

Talvez não saibamos o que buscamos.
Somos impelidos para a frente,
como se para a frente fosse sempre o caminho.
Será o kronos que nos engana, como se o devir fosse a meta.
Que marco é esse? Onde está a baliza?
E o que estará para além dela
se porventura a chegarmos a alcançar?
Como se a missão fosse viajar sempre ao futuro.
E se pusermos de lado o futuro
e desacreditarmos o passado
e vivermos um presente estático?
Um presente sempre presente?

Raríssimas vezes me dei conta da recompensa poética.
Chegou há dias        inesperadamente
em forma cosmopoética.
Talvez recorde essa recompensa
porque quando chegou
estava em companhia de um senhor das leis humanas,
credível testemunha por isso,
que de “ballesta” apelido herdou:

Havíamos deixado o Litoral
onde levara o amigo do Interior da Ibéria a seu pedido,
pessoa que poucas vezes vê a Terra beijada pelo Mar,
vínhamos dum lugar        que esse terráqueo
considerou ser o ideal para morrer.
E ao fim do dia regressávamos a uma Meseta central,
pela noite circulando em auto-estrada
– pista-rápida-para-autos-céleres –
uma rodovia sem paragens e muitas portagens,
construída para vencermos distâncias velozmente.
Era o vigésimo quinto dia
do sétimo mês do nosso calendário humanizado
e faltaria um quarto de hora para se anunciar outro dia.
A telechamada que fiz a um camarada
adepto dos fenómenos atmosféricos
registou 23h49m,
encontrando-se este amigo
a cerca de 80km para NE,
em aldeia de loisa duriense,
a mais de 700m de altitude
e que não foi capaz sequer de lobrigar
o que lhe descrevia.
Entráramos há pouco na A-25 em Mangualde
e estaríamos a meio caminho entre aquela localidade
e Chãs de Tavares, em direcção da Raia.
Ao volante do automóvel dissertava sobre a vida
e o irmão ouvinte corroborava que era jodida.
E como pertenço a tudo o que me rodeia,
seja o que de físico e próximo se me apresenta,
sejam os vestígios em forma de luz,
da luz de corpos que há milhões de anos se desintegraram
– dizem-no os astrónomos –
a curiosidade regista os movimentos
as tensões
as quebras
as explosões
o instável
o estático.
Tudo o que tem forma, ou se disforma.

Em observações rápidas,
estáticas são as estrelas.
E as suas imutáveis famílias.
Constelações com registo.
Tudo há-de ter registo,
tudo deve ser catalogado.
Tudo tem de estar ordenado.
Não podemos permitir
que o Universo se desordene.
É nossa obrigação contribuir
para repudiar o caos.
Por isso vemos no céu
o pastor e o cajado e o sete-estrelo.
Logo eu que busco A Ideia de ordem sem pastor.
Mas há até entre os astros alguns rebeldes
que solitários vivem,
corpos que têm curiosidade por outros,
xenófobos, os outros,
que os repudiam, aos atrevidos.
Destes, raríssimos conseguem o contacto
e morrem entre nós,
fenecendo já minguados
porque depauperados de tanta peleja.
Depois há corpos errantes,
que afoitamente desejam ser livres
e viajam acometendo o espaço sideral.
Vemo-los passar com a cauda a saudar-nos,
invejando-os pela liberdade a que se arrogam.

Mas o que vos quero contar
é que naquela supra-mencionada noite,
a poesia da Natureza me brindou,
pois por mim passou – relembro que tenho
uma credível testemunha porque jurisconsulto –
uma numerosa e alegre família de celestes e brilhantes corpos.

Movia-me nocturnamente
dentro de uma máquina com luzes
que projectavam a pista.
O céu encontrava-se completamente transparente
e por isso nem a luz artificial dos faróis do veículo impediu
que,
no lugar onde os relógios anunciam as onze horas
(ou as vinte e três),
se me apresentasse uma alegre constelação,
para mim nova     estranha      desconhecida.
Pareciam as luzes espaçadas ao longo de um eléctrico cordão,
cordão distribuído por descomunal arbor natalis,
ou arburetum obscurecido pela noite.
Acendia uma aqui
apagava-se outra ali
acolá o olho algumas me piscavam,
mantendo-se com luz fixa e muito brilhante a maioria.
E uma ou outra em rápidos movimentos
passava tangentes às congéneres.
Ou talvez fosse ilusão minha
e a que parecia mover-se fixa estava
lá longe no horizonte
e o que acontecia era que o grupo estava já,ou sempre estivera,
em movimento,
como então começara a pressentir.
Afinal todo o conjunto se movia,
ordenadamente é verdade,
mas alterando as geométricas formas da constelação.
E em determinado momento
foram imprimindo mais velocidade à viagem.
Parei na auto-estrada, desde logo um perigoso gesto,
apagando as luzes,
olhando estupefacto e alegre o fenómeno
e comentando-o com o companheiro.
Agora corriam já. E aproximavam-se.
Parecia uma regata oceânica vista do fundo.
Ou um rebanho de ovelhas com lã de cor de ovelha
– nada de negras ovelhas – que numa encosta em frente,
pastava em andamento direccionado a trigueiro restolhal.
Corriam as minhas badanas alegres e reluzentes
descrevendo a curvatura da abóbada celeste que a todos envolvia,
sobre o nosso olhar,
da sinistra para a dextra,
cruzando-se com a nossa marcha de poente a oriente.

Corriam umas atrás das outras
e despediram-se no horizonte.

Porque no dia seguinte
ao contarmos esse poético regalo
a gente com fé no Universo,
nos perguntou pela sua duração,
dez minutos lhe aventámos.

Vi!
A menos que o meu cérebro me enganasse
(e o do companheiro também?).
E o que com os olhos percebi,
é o que aqui tento contar-vos,
modestamente,
pois o que visionámos (ou julgamos ter visto)
suplanta a minha capacidade de descrever uma maravilha.
Um deslumbrante assombro,
fascinante sedução,
que a Natureza me ofertou.

Um astro-fenómeno
– como desde logo lhe chamei –
raríssimo certamente,
que convosco quero partilhar,
assim              sem estratagemas,
mesmo sem saber se encaixará
num livro de poemas

 

Carlos d’Abreu

(25.VII.2020; 23h45; A-25 entre Mangualde e Chãs de Tavares)[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

senhora COVID 19

[vc_row][vc_column width="1/4"][bs-user-listing-4 columns="1" title="" icon="" hide_title="1" heading_color="" heading_style="default" title_link="" filter_roles="0" roles="" count="1" search="" order="DESC" order_by="user_registered" offset="" include="8" exclude="" paginate="none" pagination-show-label="0" pagination-slides-count="3" slider-animation-speed="750" slider-autoplay="1" slider-speed="3000" slider-control-dots="off" slider-control-next-prev="style-1" bs-show-desktop="1" bs-show-tablet="1" bs-show-phone="1" custom-css-class="" custom-id="" override-listing-settings="0" listing-settings="" bs-text-color-scheme="" css=""][/vc_column][vc_column width="3/4"][vc_column_text css=".vc_custom_1588867533784{margin-left: 170px !important;}"]senhora COVID 19
rogo-lhe que me faça um grande favor
já que me priva dos abraços
e dos beijos d@s POETAS

faça uma pausa, reveja o projecto
e volte mais determinada que agora
ou seja, mais selectiva:
quando chegar cumprimente primeiro
a espécie política profissional
e depois os seus patrões
(já que a senhora não sabia
da sua existência)

depois apresente-nos a conta,
à vontade,
pois saiba que esses nossos semoventes
bens se encontram muito
muito bem nutridos[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Coro(n)ar o medo

[vc_row][vc_column width="1/4"][bs-user-listing-4 columns="1" title="" icon="" hide_title="1" heading_color="" heading_style="default" title_link="" filter_roles="0" roles="" count="1" search="" order="DESC" order_by="user_registered" offset="" include="8" exclude="" paginate="none" pagination-show-label="0" pagination-slides-count="3" slider-animation-speed="750" slider-autoplay="1" slider-speed="3000" slider-control-dots="off" slider-control-next-prev="style-1" bs-show-desktop="1" bs-show-tablet="1" bs-show-phone="1" custom-css-class="" custom-id="" override-listing-settings="1" listing-settings="title-limit=25&social-icons=1&social-icons-limit=6&show-biography=0&biography-limit=65&show-ranking=&show-posts-url=1&" bs-text-color-scheme="" css=""][bs-push-notification style="t2-s1" title="Subscribe for updates" show_title="0" icon="" heading_color="" heading_style="default" title_link="" bs-show-desktop="1" bs-show-tablet="1" bs-show-phone="1" bs-text-color-scheme="" css=".vc_custom_1584707035462{margin-top: 30px !important;}" custom-css-class="" custom-id=""][/vc_column][vc_column width="3/4"][vc_column_text css=".vc_custom_1584706779832{margin-left: 100px !important;}"]A quem serve o medo?

Está bom de ver que o medo é uma arma
Não uma arma de Liberdade,
não “un arma cargada de futuro”
mas uma arma ao serviço de totalitários desejos

É uma arma municiada por emoções
de que o quadro legal se pode socorrer
para impôr mais autoridade,
para testar o aparelho repressor
com pouco esforço,
deitando por vezes mão até
de um qualquer acelular e
submicroscópico ser,
que abundantemente
connosco partilha a Natureza
mas que num belo dia consegue saltar
para a garupa de um humano
que o oferece a outro, a outra, a outrxs…

O propósito é claro:
colonizar o bicho-dominante,
em geral, porque desconhece
que nesse grupo há uma multidão
subjugada a um punhado de celerados,
não distinguindo opressores de oprimidos

Mas alguns antropóides nossos coetâneos
divisam nesse ser (que não vêem)
um aliado, um sequaz que procura usar
para continuar a vencer,
a submeter, a lucrar

Primeiro ganha o capital
que reforça o poder de compra
de autoridade, vendendo banha-da-cobra
contra o medo, depois investe o lucro
no recrutamento de pretorianos guardas
que ajudarão a reforçar a obediência
(porque o poder lhe está a escapar)

Nesta parceria entre o anónimo-bicho
e o bicho-humano – que logo baptiza e
coro(n)a) – tem este por enquanto
levado a dianteira não obstante
alguns sérios reveses pandémicos

E porque todo-poderoso se sente
e imune se julga, tenta manipular
o vírus acusando-o ao microfone
dos mass me(r)dia de hostil

O apelo é o confinamento ao lar
para assim a incapacidade
do serviço de saúde escamotear,
por viver este das sobras
das democráticas corrupções

Mas depois do povo interiorizar
o medo pelo Estado expandido
ORDENO E MANDO!
é a primeira medida

Que saudades do estado de sítio!
Belo estágio para os democratas mais novos
– não sabe que é proibido andar na rua?
– agora autuo-o e para a próxima prendo-o!

Mas a clausura pode levar o povo a pensar
Pode levar a gente a reflectir
sobre a pobre vida que tem levado
e a perguntar: não haverá outra forma
de viver a não ser em permanente crise?

Para mal dos subjugados
ainda a Natureza capaz não foi
de desenvolver bicho letal
apenas dirigido ao grupo dominante

Esse seria o melhor serviço que Ela
(demasiado paciente, tolerante e
retardada nas suas decisões)
à Humanidade poderia prestar

Assim se faria a mais silenciosa e
justa revolução social de que há memória

Assim finalmente se alcançaria a Utopia

E seguramente novo caminho se abriria
rumo à capacidade de fotossíntese
em todos os organismos vivos,
para que desnecessário fosse
pelo pasto pelejar e num
falanstério o Mundo transformasse

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Os gémeos

|Tânia Rei|
Às vezes, acontecia este fenómeno: quando estávamos a partir amêndoas com um tijolo burro, sentados com o rabo no chão, saíam da casca dois frutos em vez de um. Vinham, regra geral, encavalitados um no noutro, ou encaixados e meio deformados.

Diziam às raparigas que não podiam comer, ou iam ter gémeos. Aquilo parecia-me mesmo mau, ter dois filhos de uma vez, tal era o alarmismo. Parecia uma praga, como as que rezam nos contos de fadas. Uma gravidez de gémeos há umas décadas, não assim há tantas, deveria, de facto, ser alarmante, à falta de melhor palavra. De repente, duas bocas para alimentar, quando não havia assim tanto.

Lembro-me da primeira vez que vi gémeos. Gémeas, na verdade. Eram raparigas. E eu devia ter uns 4 anos. Fui com os meus pais ver as recém-nascidas e achei aquilo giríssimo. Eram mesmo iguais, e tinham daquelas chuchas castanhas, iguais também.

Nunca me tinha apercebido que era possível que uma pessoa tivesse outra igual a si. Igual, e não “muito parecida”. É diferente, ser igual ou ser muito parecido.

Mais tarde, ou mais cedo, não sei bem quando, percebi que os meus vizinhos também são gémeos idênticos. Mas eu sempre os distingui, e para mim não devia contar. A seguir, mete-se a televisão ao barulho, com sotaque de português do Brasil. Era aquela novela, “Mulheres de Areia”, em que a Glória Pires fazia de duas. E eu achava mesmo que ela, para aquela personagem, se dividia em duas iguais. Assim como achava que os actores morriam mesmo, e elogiava mentalmente a capacidade de morrer tão bem, à primeira, em frente às câmaras, sem nervos. Porque não dava para repetir, então tinha que sair bem logo. Como eles voltavam a aparecer noutras novelas, já não sei. Na minha cabeça, devia haver um período em que os actores ficavam mortos, e depois voltavam, para continuar a trabalhar.

Na ficção, há sempre um gémeo bom e outro mau. Coisa que nunca entendi, isso de serem iguais mas terem que ser diferentes a esse ponto. Um podia gostar de cozinhar e outro de jardinagem, sei lá! Mas, não! Um é um anjo, e o outro um demónio com instintos sanguinários. À parte das Olsen.

Essas são mesmo duas, e são as duas boazinhas (ou eram, pelo menos, nos filmes). Pregavam muitas partidas, só que isso parecia-me normal.

Afinal, de que serve ter alguém igual a nós se não for para enganar os outros, com brincadeirinhas inocentes? E partilhar namorados, daqueles com os quais a cena não é nada séria, pois claro. E, como nos filmes, mandar o gémeo fazer aquilo que o outro gémeo não sabe.

Quando me saíam dessas amêndoas, comia-as logo! Meti-as goela abaixo e pensava “aposto que não é assim que nascem os bebés iguais”. E, lá está, conhecem alguém neste caso?

De que nos serviam as asas?

|Tânia Rei|
No dia outro dia, à hora do almoço ou ao final do dia, não me lembro bem, nos curtos minutos a pé que separam o meu trabalho de casa, apanhei um susto daqueles que me fazem soltar gritinhos histéricos de gaja.

Vi um pássaro morto, logo ali, ao dobrar a esquina, encostado a uma parede. Se calhar já alguém tinha dado um pontapé ao cadáver do pobrezinho, para o arrumar fora do local de passagem. “Olha, grande coisa! É mesmo uma cena de rapariga!” – pensam vocês, que não sabem que eu tenho medo de passaredo em geral.

É por causa do bico fininho, que eu imagino sempre a furar-me os globos oculares. E dos ossos quebradiços. E aqueles pezinhos, com unhas compridas e afiadas, que agora até estão na moda (as unhas), e das quais eu não gosto, porque me trazem à memória aquelas patinhas impacientes (tic, tic, tic, tic) que parece que só sabem andar se for depressa, ou aos pulinhos, que também já vi. E eu não gosto dessas pressas. Nem de pássaros. Diz que se chama ornitofobia, o medo dos pássaros. Mas gosto de penas, quando estão a fazer de brinco. E gosto de frango. E ovos. Como muito ovo, de galinha, só. E gosto de peru, se for fatiado em fiambre ou em bifes.

Fiquei uns minutos, a olhar para o bicho. Com medo, com pena (não das dele, pena mesmo) e com curiosidade. Não era um pardal, daqueles que por agora andam gordos e de papo cheio. Era assim um de plumagem acinzentada e um bico amarelo-escuro ou meio laranja. Estava numa posição não natural, assim com o pescocito para trás, como num filme de terror, naquela parte dos exorcismos.

Fiquei a pensar no sucedido. Um pássaro, que tem asas e anda sempre a voar por aí, livre, quando morre acaba no chão, atirado a um canto. E de nada lhe servem as asas. Não deixa de ser triste, ver um animal que foi feito mais para o ar do que para a terra, deitado num paralelo da calçada.

Não deveriam os pássaros, quando morrem, ter o direito de ficar no ar? Ou um sítio onde não pudessem ser comidos por gatos gulosos e preguiçosos ou a servir para fazer o jeito ao pé ou para fazer trabalhar uma vassoura. Um animal que conheceu o céu, que sentiu o vento cortar-lhe o corpo, devia ter um final mais digno do que um chão frio e sujo, num canto qualquer.

É que já nem sei se é melhor ter asas, mas uns pés curtinhos e sem muita utilidade, ou umas pernas grandes e não ter como voar por meios próprios. É que a pé podemos ir longe, mesmo que demoremos mais, apesar de ficarem sítios inalcançáveis. Com asas teremos outras perspectivas, porque vemos tudo lá de cima, mais amplo, tudo miudinho debaixo dos nossos pezitos também eles minúsculos.

Naquele dia, contudo, limitei-me a este reles pensamento humano:” Livra! Ainda bem que não sou um pássaro!”.

O nosso dever quando crescemos

|Tânia Rei|
A minha afilhada tem, neste dia em que vos escrevo, 3 anos, 1 mês e 5 dias. Ela já sabe que não quer crescer.

Quer ficar pequenina, como é agora. Não sei se ela sabe todos os benefícios associados, ou se é só porque já percebeu que os grandes não têm direito a colo quando estão cansados de caminhar, ou quando não vêem bem alguma coisa, precisamente por não terem altura que chegue.

Se pudéssemos escolher, agora, todos diríamos que queríamos ficar sempre pequeninos. Davam-nos de comer, vestiam-nos, lavavam-nos. Preocupavam-se connosco. Podíamos brincar, fazer asneiras e dormir às horas a que quiséssemos (dentro do aceitável para os adultos).

O mal, contudo, não reside em crescer. O que não aprendemos com a idade e o tamanho (pelo menos do corpo) é que nos devemos continuar a tratar como se fôssemos todos pequeninos. Como que se todos no pudéssemos magoar ou precisássemos que nos dessem a mão para atravessar a estrada. Uma estrada que fica maior, com a idade. Tão grande, que às vezes nem conseguimos ver o outro lado do passeio, quanto mais o fim.

O mal de crescer é deixar de acreditar que temos o dever de tratar bem os outros. Em resumo, é isto – crescemos em altura e em vez de olharmos para a frente e para os lados, olhamos para o umbigo.

Ir envelhecendo, além de nos fazer perceber que não podemos comer terra, devia tornar-nos mais maduros. Mas não. Crescemos a olhar para o chão, onde só vemos os nossos pés, os nossos passos, as nossas mechas de cabelo a fazer sombra aos olhos, e a tapar tudo em redor. Ocultamos da nossa mente que temos o dever de ser bons.

Crescemos mal. Assim é que é. Crescemos e deixamos de acreditar que devemos ser bons. Crescemos e optamos caminhos e tomamos decisões. Sem pensar se estamos a afectar quem nos rodeia, quem escolhemos colocar na nossa vida. Ou tirar dela, às vezes sem as avisar, o que é uma chatice.

Crescemos, e esquecemo-nos que devemos fechar as portas por onde passamos. Ou deixá-las escancaradas. Portas entreabertas são tão perigosas como ratoeiras. E pode acontecer que, quando tentarmos fazer o percurso inverso, as portas tenham trancas de ferro, a vedar a entrada, mesmo que não as encontremos fechadas.

Fazemos isto porque crescemos mal. E, de facto, crescer não traz nada de bom.

A minha afilhada é que a sabe toda. E só tem 3 anos, 1 mês e 5 dias.

O que é preciso

|Tânia Rei|
As manhãs cheiram a torradas.
Às vezes, cheiram a tostas mistas, onde claramente predomina o queijo, que escorre gulosamente pelas bordas lambuzadas de manteiga.

As manhãs cheiram a café com leite, com pouco açúcar, para não desfazer a amargura na boca totalmente. Porque o amargo, assim como o doce e o salgado, são precisos, nem mais que não seja para testarmos as nossas papilas gustativas – como sabemos que funcionam, se não as usarmos?

As manhãs têm pouca gente na rua. Logo pela fresquinha, só anda na calçada quem precisa mesmo. As manhãs, além do sabor a torradas e a leite com café, trazem um trago de frescura. Um bafo, nem quente nem frio, assim no modo ideal, que entra pelas narinas e que se aloja na boca. Fica ali, durante parte daquela manhã, a ruminar, a roçar-se nos dentes, na língua, na garganta… E vai descendo, devagarinho, até que se aloja no coração.

O que é preciso mesmo? É que continuem a existir as manhãs. Muitas manhãs. Porque às manhãs sucedem-se as horas de almoço, as tarde, os finais de tarde, as noites e os serões.

Segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos. Somados, aumentados, multiplicados, repuxados, almejados. Tenhamos nós manhãs suficientes. Saibamos nós aproveitar as manhãs.

Se as manhãs foram sinónimo de renovações na vida, de novos recomeços, de novas oportunidades, não acordemos depois do meio-dia. Porque só quem vê manhãs, novas manhãs, manhãs renovadas, pode ver coisas novas e fazer as melhores escolhas.

As manhãs têm este dom: ver as coisas começar, do início. Não andamos ali perdidos, sem saber o que aconteceu, ninguém toma decisões antes por nós.

As manhãs cheiram a torradas. As torradas têm um toque de amor, nos meios dourados e humedecidos de manteiga. O amor sabe bem de manhã, e combina com a vida. As manhãs fazem uma cadeia de pensamento mais ou menos circular, qual fio feito com flores de Primavera onde dedos febris vão enfiando felicidade.

A condição do apego

Tânia Rei
Ando há mais de um mês a mudar de casa. Tenho, neste momento, duas casas. Três, se contar com aquela onde fui criada. Mais, se contar com todas aquelas onde mora o meu coração, ou parte dele.

Sim, posso desculpar-me com falta de tempo, visto que foi uma mudança forçada. E é sempre complicado quando somos obrigamos a mudar algo sem que queiramos, sem que ali tenhamos empenhado esforços ou envidado energias. Regra, só queremos mudar o que não nos traz felicidade, ou não nos faz bem. E eu gostava de morar onde estava, caramba.

Já podia andar às escuras em casa, sem esbarrar em esquinas ocultas. Conhecia os vizinhos, que me conheciam de volta, e me abriam a porta quando me viam com compras ou algo mais volumoso nas mãos. O carteiro, imagine-se, sabia onde eu morava.

De repente, tive de escolher outra casa, às pressas. Tive de levar as minhas coisas, a ferros, e, depois de entregar as chaves, não vou poder voltar, gentilmente, bater à porta e dizer que, afinal, me esqueci de um pertence. E custa deixar o que nos fez felizes. Fui feliz na minha antiga casa. Enquanto tirava os meus livros do móvel da sala, móvel esse que já não é meu, lembrei-me que me lembro do dia em que os pus lá, com a promessa de os ler a todos. Vou mudá-los de estante, e, não os li.

Novos horizontes exigem novas promessas. Novos desafios exigem novas vontades. Mas custa deixar aquele espaço, e, se calhar, ainda que de forma inconsciente, quero prolongar ali a minha existência. Não quero que a casa de esqueça de mim. Não quero que deixe de ter o meu cheiro e a decoração que lhe dei. E como fazemos para que não se esqueçam de nós? Para que não apaguem a nossa marca?

A casa nova ainda não teve tempo de ficar a cheirar a mim. Ainda nem escolhi onde vou pôr os pratos, arrumar os vestidos de Verão ou onde vou pendurar os meus quadros. Só sei que é ali que vou ficar, e ponto final.

A outra casa, a que me fez feliz, vai continuar a existir. E eu não vou estar lá. Apenas me resta acreditar que o meu novo cantinho me vai fazer tão ou mais feliz. Porque a vida continua, com ou sem resquícios do passado.

A tempo inteiro

|Tânia Rei|
Em tempos imemoriais, cada um de nós havia de se especializar em alguma coisa. Só fazíamos aquilo, de forma absolutamente irrepreensível. Tínhamos a experiência de anos, de situações complicadas, que para as resolver não nos valeram livros nem tutoriais no Youtube.

Havia tempo, e percebia-se a real necessidade de ser alguma coisa, precisamente, a tempo inteiro. Claro que, como todo o bom português, podíamos ser versados noutras coisas, mas isso não exigia o tal tempo. Usávamos os sobrantes, o buraco do relógio em que queríamos descontrair, ou fazer coisas diferentes daquelas em que éramos extremamente bons.

Agora, tudo mudou, e deixou de haver essa disponibilidade. Quem mais perdeu foi o amor. Não há tempo para amar a tempo inteiro. Um amante a tempo inteiro é como a figura da dona de casa, que podia assumir esse papel, e abdicar de uma carreira para ser mãe, limpar a casa, ir ao salão de cabeleireiro às sextas à tarde e tomar chá com as amigas aos sábados antes de fazer o almoço, somente para reclamar da vida e, óbvio, contar as últimas do Luísinho e da Mariana. Esta figura só existe, e só existiu em boa verdade, nas telenovelas. Ainda assim, é uma analogia rápida.

Não temos tempo para suspirar de meia em meia hora por alguém. No máximo, uma vez por semana, e com hora marcada, como o chá com os amigas. Não temos tempo para imaginar a outra pessoa em situações promíscuas, durante as reuniões de trabalho aborrecidas. Não temos tempo para sorrisos parvos no trânsito, quando nos lembramos do sorriso da outra pessoa, que nos disse algo tão engraçado. Da mesma forma, não teremos sequer tempo para mandar um berro enfurecido ao automobilista que nos apitou. Ficou verde o sinal, e nós não vimos. "Nunca te deves ter apaixonado, ó palhaço!". Temos que ser trabalhadores, colegas, amigos, padres, mecânicos, personal stylist, festeiros, críticos, e ainda donas de casa (sejamos mulheres ou homens), e, quando der, ficamos apaixonados. Só um bocadinho, vá lá, que já é certo e sabido que, na manhã seguinte, temos que fazer. Não podemos ficar ali, a pingar mel.

Não há é tempo para gostar de alguém a tempo inteiro. Que disparate! Vamos gostando, quando a agenda assim o permite. Assim são as exigências do novo mundo, em que quem ficou a perder, além de todos nós, pois, foi o amor, que viu o horário reduzido, e nem tem um sindicato que lhe possa valer.

Abelhas num mundo de vespas. Ou ao contrário 

|Tânia Rei|
Vocês não sabem, mas eu até percebo de apicultura. Estão a rir-se? Olhem que estou a falar a sério.

Não, nunca produzi mel. Mas já trabalhei num sítio onde se embalava. E onde não faltavam abelhas, mel e outros produtos da colmeia. E aprendi, facilmente, a distinguir uma abelha, que faz mel, de uma vespa, que não faz nada.

Ele há muito bicho assim. Por exemplo, dentro da colmeia, os machos, os zângões, não fazem nada. Só arejam o local, de quando em vez, a bater as asas (fanfarrões!) e ajudam na procriação. Qualquer semelhança com a vida humana é mera coincidência, até porque nem é isso que vos quero contar (apesar de, note-se, ficar o registo).

Então, ouçam esta - parece que as vespas são carnívoras. Aprendi este fim-de-semana. Pode lá ser! Mas, é. Comem larvas dos outros bichos, das abelhas, pelo que entendi. E, por sua vez, as abelhas comem coisas fofas. Comem pólen e néctar. Se todos tivéssemos esta dieta, podíamos estar obesos e diabéticos, é verdade. Por outro lado, seríamos uns docinhos.

Parece coisa de filme, caramba! Comer pólen e néctar. Aposto que as princesas dos livros, além das maçãs, enquanto fiam linho, também emborcam pólen e néctar.

E outra que provavelmente não sabem, é que os apicultores, quando andam com aqueles fatos estilo astronautas, mas com rede em vez de vidro para respirar, não estão livres de serem picados. Porque os malandros dos bicharocos atacam zonas como os punhos, os tornozelos e o pescoço. Ou seja, os sítios onde a vestimenta tem falhas, para por lá passarmos os membros. Ou o costureiro está feito com elas, ou são persistentes, ou são mesmo espertas para caraças. E no mundo dos humanos também há sempre quem fuce por uma oportunidade. E chatos, sempre a tentar levar a deles avante. Desses, também há.

Sabem, as abelhas (fêmeas) têm ferrão. As vespas também. Picam, e incha tudo. Fica tudo inchado, e vermelho. E, com azar, ou se forem muitas ou se forem alérgicos, vão para o hospital a parecer um balão para os garotos que se vende nas romarias aos santos.  Também vi aquelas canetas modernas para injectar remédio para o veneno destes insectos. Uma performance extremamente duvidosa, um senhor que exemplificava espetou o produto no próprio polegar, em vez de no falso doente. Pensando bem, é o que anda a fazer meio mundo, não é? A papar o recurso dos outros.

A falta de discernimento entre abelhas e vespas é a metáfora perfeita para o mundo. Enquanto uns se dedicam a fazer algo assinalável e útil para a vida em comunidade (pois, as abelhas não andam a fazer mel para nós), há outros quantos que andam camuflados, mortinhos por carne fresca. Sabem distinguir abelhas melíferas das vespas?  Não?

Espero que agora percebam o que vos quis dizer.

Quero ver-te

|Tânia Rei|
Quando éramos miúdos, numa faixa etária que não consigo classificar com clareza, o pico das relações de cariz sentimental era termos em nossa posse algo pertencente ao outro, ao que por aqueles dias nos tirava o pouco fôlego suportado pela caixa torácica dos jovens.

Algo que tivesse passado tempo com o objecto da nossa paixão, para prolongarmos nós o tempo que passávamos a suspirar. Um anel, uma pulseira, um brinco…Quiçá um papel de pastilha elástica, de preferência com a própria lá enrolada, lavada em saliva, para nos recordarmos daqueles beijos “máquina de lavar, no programa de torcer”, com sabor a mentol.

Não me lembro de ter trocado algo com alguém, como recordação do amor juvenil. Mas é provável. Lembro-me, contudo, como se exibiam aqueles pertences. Sim, podia ser Inverno e estar a nevar, e era ver malta arremangada até ao cotovelo, para mostrar uma pulseireca de cabedal (falso, na maioria das vezes, e isso não lhe tirava brio nenhum). E rapazes com brincos ridículos de menina, daqueles grandes e pesados, que faziam doer as orelhas, ou então de fimo, que estiveram muito na moda. E raparigas com casacos claramente demasiado grandes, em que a ombreira lhe caía a meio do braço. Sabíamos que, algures, havia alguém cheio de frio, que nunca o admitiu (e, na volta, constipou-se).

À medida que crescemos, passamos a dar menos valor ao material. As relações, ou melhor, as ligações, já não carecem de um lado físico. Não necessitamos de uma presença física da outra pessoa, como que se quiséssemos praticar vodu. Sentirmo-nos ligados a alguém passa-se, numa fase mais madura da vida, mais dentro de nós do que numa pulseira de falso cabedal. E não há nada melhor do que ver quem nos trava a atenção, e perceber, do outro lado, a mesma emoção. Pousar os olhos (e os lábios) passa a bastar para uma vida cheia (ainda que parte disto aconteça somente na nossa cabeça) porque passa a ser uma raridade.

Outra (são tantas) coisa chata de crescer é que antes era tão fácil ver alguém. Isto porque os “nossos” pareciam viver todos a poucos quilómetros de distância. E viviam. Aqueles com quem partilhávamos o dia-a-dia. E era uma chatice quando tínhamos que faltar às aulas para ir, por exemplo, a uma consulta. Era como se o Universo nos tivesse abduzido, e a nossa ausência era notada.

Depois, crescemos, e a escola deixa de ser o epicentro das nossas emoções. Conhecemos pessoas de sítios que nem sabemos onde ficam. Passamos a ter agendas mais cheias. Passamos a achar tudo complicado, quando antes tudo era fácil. E nunca percebi muito bem este pulo do simplificado para o burocrático, que só se agrava com os anos.

Tenho saudades de acordar de manhã e saber que iria ver todos aqueles que queria ver. Os que me faziam falta. Até os que não me faziam falta nenhuma, pois claro, o que era totalmente suportável, em rácio.

Tenho saudades do facilitismo com que dizia “vi-te”, a toda a hora. Agora, no pesado mundo dos adultos, só posso dizer “quero ver-te”, com carácter de urgência, pois!

Não sei é quando.

Eu e a minha desilusão num mundo de gente mastigada

|Tânia Rei|
Não sei, não faço a mínima ideia, sobre o que esperar da Vida. Não sei, nem quero saber, mais vos digo, o que a Vida espera de mim.

Em boa verdade, acho que nem eu nem ela estamos interessadas em alimentar egos. E deve ser o único ponto em que estamos em acordo.

Olho para a esquerda, para a direita. Em volta. Nunca para cima ou para baixo, porque acredito na igualdade. Um mundo em que todos estão ao meu lado, e quem está atrás, então, bom, só me está a desacelerar o passo.

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Olho, com atenção, com a que me é possível, no meio das luzes ofuscantes que a Vida teima em aceder, e apontar directamente à vista. Olho, mas nunca encontro o que procuro.

Pessoas genuínas. Que tenham sempre a mesma cara, vistas de qualquer ângulo. Pessoas fraternas. Pessoas que a Vida ainda não mastigou. Onde estão as pessoas que, de facto, se interessam com as outras? Que as querem conhecer? Que estão sempre ali. Pessoas que olham para as outras pessoas, e vêem… pessoas.

A Vida abriu uma fábrica de pessoas, formatadas para ser uma pirâmide: elas próprias à cabeça, e uma base que vai alargando conforme o grau de importância que julgam que cada um pode vir a ter, independentemente da veracidade prática desse julgamento, onde não há direito a defesa, e muito menos a recursos para outras instâncias.

Este mundo não é para anjinhos, para os bonzinhos, nem muito menos para os disponíveis. Porque a Vida não quer. Introduziu um modelo que se aceita como o correcto.

E nesse mundo safam-se os espertos, lixam-se os restantes, coleccionados como degraus de escadas, que não vão levar a lugar algum. Que acabam em portas pesadas, fechadas. Ou a espaços amplos onde, finalmente, possam olhar, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, para trás ou para a frente, sem que vejam mais alguém. Ficaram sozinhos, sem conteúdos. Sem virtudes, sem diferenças, sem discussões, sem enganos e aventuras.

Porque aí já a Vida os mastigou. E cuspiu para a borda do prato. Porque à Vida não lhe faltarão os dentes para mastigar desilusões para os resilientes.

Dêem o Nobel a Deus

|Tnia Rei|
Naqueles dias, Deus, entidade de poder e paciência infinitos, estava, por mais estranho que possa parecer, entediado. 

A Sandra descobriu que o marido, António, andava enrolado com a colega de trabalho, Susete, porque viu uma mensagem no telemóvel do sacana que dizia “tenho saudades de fazer amor contigo”. O Benfica empatou. Veio um furacão que arrasou cidades inteiras, e a ajuda humanitária teima em não chegar.

Tudo porque Deus estava aborrecido.

Somos milhões, biliões, triliões neste Mundo. Muitos nem têm registo no cartório, mas Deus, esse senhor perspicaz, tem o nome de todos na ponta da língua, sabe da família, e tem acumulada a função de escrever para todo e qualquer um o guião de uma vida inteira.

Louvo a imaginação de Deus. Claro que algumas existências são mais banais, mais estandardizadas. Ainda assim, note-se que Deus sabe a estória de cada um de cor. Imaginem-se a ser atendidos desta maneira numa repartição pública, com uma relação com o funcionário sem segredos, onde não precisam de explicar nada… Que maravilha.

Imagino Deus num espaço muito branco, com mesas brancas, um céu branco (não há telhado), rodeado de funcionários vestidos de branco, com cabelos aos caracóis, de tonalidades que dançam entre o loiro platinado e o castanho claro, agarradinhos à cabeça e imensamente bem penteados. Não há no chão uma única marca provocada pelo arrastar das cadeiras ou pela sola das sandálias dos anjos. É tudo imaculado. Tudo branco de fazer doer a vista, como num anúncio de um detergente ou lixívia. Deus, mais alto do que todos, por ser mais velho, gesticula muito enquanto fala.

Dita, ao mesmo tempo, estórias de vida com detalhes, datas, horas, momentos-chave. Cria um enredo com muitas personagens. Rodriguinhos é o que não faltam, como se quer, cheios de emoção, de lábia barata, de sal para temperar. E nunca, mas nunca, baralha as estórias. Cada um tem o destino que Deus escolheu. Precisamente aquele, sem margem para reclamação ou engano. Era assim que tinha que ser, porque cada passo dado em cada encruzilhada já estava predestinado. Não há livre arbítrio que nos valha. Isso é a treta desta falsa democracia divina. É, na realidade, um brainwash, em que acreditamos que fazemos o que nos dá na real gana, ignorando o facto de Deus ter andado com uma trabalheira desgraçada para nos riscar as linhas.

Era, até, um desrespeito poder ter uma vida diferente daquela que nos foi escrita. Estávamos a amassar, como uma folha antiga que se deita ao lixo, o esforço de Deus, para que nada nos falte. Construiu uma espécie de linha férrea onde abundam carris e óleo, e é só ir, com algumas paragens para manutenção.

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Deus, contudo, tem por hábito escrever também sozinho. Leva uma chávena de café forte, e vai para o seu gabinete, que é branco na mesma, mas que tem uma escrivaninha de madeira escura. É parecida com a do São Pedro, que recebe com pompa as alminhas no Céu, mas a de Deus tem mais gavetas e uns desenhos esculpidos nas pernas. Tem muitas folhas rasuradas, cheias de anotações. Estas são as estórias de alguns, que ele gosta mais ou menos, ou que têm um temperamento difícil, e é necessário andar com ajustes.

Deus, reparem, não tem tempo para mais nada. Dedica-se à escrita com fervor. Não dorme porque não precisa, mas também porque não tinha como, nesta lufa-lufa.

Em 2016, Bob Dylan fez História e venceu no Nobel da Literatura. Decisão ousada e polémica, com um músico a fazer uma rasteira a quem não quer saber de métrica.

Deixo um apelo à Academia – não podemos continuar a ignorar esta carreira brilhante. Façam o favor de este ano voltarem a marcar a diferença, e dêem o Nobel a Deus.

Não garanto que ele o venha receber, ou que, sequer, ligue a agradecer. Ainda assim tenho para mim que talvez, até, esteja Ele já a rabiscar sobre isto.

Relações dos chineses

Quando era pequena, lembro-me do quão fascinante me parecia ir a uma loja dos 300. As lojas chamadas assim na gíria, vá. Tinham outros nomes, mais ou menos normais, mas depois nas vitrinas estavam sempre números garrafais, que nunca chegavam a um conto (mil paus, jovens, são hoje 5 euros).

Estas lojas estavam à pinha durante a época do Natal e nas festas das localidades. Porque lá dentro havia de tudo, desde pechisbeques para servirem de presentes para a tia-avó que não se gosta ou uma taça para pôr salada. Reparem como, hipoteticamente, estamos a falar de um só objecto, o que tinha o sumo à variedade que anunciei.

Eu achava aquilo espectacular. Cada fila tinha coisas específicas. Era a secção de cozinha, da roupa interior, de casa de banho, de decoração e de bricolage. À entrada estavam as utilidades de mulher, como perfumes cheios de álcool, batons e vernizes. Havia, calhando, uma prateleira de higiene, onde se vendia Reglex, sem mais nenhuma opção.

O que me parecia incrível era a diversidade. Em boa verdade era uma espécie de centro comercial. Mais ou menos, pronto. Depois, o mercado asiático invadiu isto tudo. Muitos comerciantes sofreram, com a indignação à flor da pele, e cerraram portas. Passamos nesta fase a história das lojas de produtos baratos a ter uma nova designação: as lojas dos chineses.

Na realidade, apenas se mudou a nacionalidade dos lojistas. Porque, lá por dentro, as coisas estão bastante iguais, à excepção da musiqueta de fundo, que passou a ser cantada por mulheres de vozes fininhas como as dos anjos e umas letras muito parecidas à introdução dos desenhos animados dos anos 90. Na versão anterior não me lembro se havia ou não música de fundo. Provavelmente só tínhamos para ouvir a conversa da empregada de caixa com a vizinha do lado.

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A qualidade dos artigos continua a ser muito duvidosa. O que nunca nos impediu de comprar uns collants ou uma moldura, assim “às pressas”, dizemos, e “num desenrasque” a um preço “em conta”. Algumas coisas, ou todas, não esperamos (pois não?) que tenham um tempo de vida útil considerável. Assim, dali a uns dias já vamos ter que ir comprar mais do mesmo. O uso e o desgaste ali acusam rápido, e dizemos que, da próxima, mal aquilo se estrague de vez, vamos a um comércio a sério, da especialidade, e vamos trocar o artigo do desenrasque por um de bom material.

Mas, custa menos, está ali à mão, dá para levar mais uns collants, pelo sim pelo não, encontramos bugigangas que não sabemos bem para o que servem, apesar de terem um efeito hipnotizante, e, porque sim, levamos mais um bonequinho de colar no frigorífico, que é tão giro. Então, como nos fartamos de ver vantagens, optamos sistematicamente pela mesma solução reles. Uma altura, tive um tamagotchi, que era um animal virtual.

Estava na moda. Foi a única vez que tomei conta de um dragão. Os meus pais compraram-me um bom, que levava uma pilha de relógio maior, uma espécie de bateria. Não vos sei explicar. E, além daquilo ser caro, era diferente. Então arranjei um mais barato, que era um bicharoco não definido. E, que me lembre, não durou nada. Uma má troca que só percebi bem mais tarde, quando senti falta do meu dragão cor-de-laranja (o plástico era dessa cor, que na minha infância eram só brinquedos analógicos).

Em determinado ponto vamos achar que aquilo é que é. Que, mesmo comprando 3 vezes o mesmo artigo no espaço de um mês, estamos a fazer bons negócios. E ainda nos gabamos, pobres tolos, aos amigos. Foi o meu caso com o tamagotchi.

Tenho uma teoria que hoje vou partilhar com vocês: com as relações tendemos a fazer o mesmo. A inclinação actual é para que se cultivem relações sem qualidade, rápidas, porque estão ali à mão. Sabemos, numa clarividência que fingimos não ter, que essa ditosa relação não tem futuro. Nem nós lhe queríamos uma vida longa. Num ápice vai-se esgotar, vamos perceber que, afinal, raios, não encaixa no espaço para onde a tínhamos planeada, não é da mesma cor da nossa madeira da sala, e que metade das funcionalidades vinham já avariadas. Ou nós não sabemos funcionar com aquelas coisas, com instruções em letrinhas miudinhas, inclinadas e cuja língua à escolha mais parecida com a nossa é espanhol traçado com Google Tradutor.

O que vamos fazer? Vamos a uma superfície de competência declarada na aquisição de relações? Não. Vamos à mesma loja, procurar numa outra prateleira, porque agora aquilo está misturado e podemos não ter visto bem. Se calhar, no meio da tralha toda, está lá algo que nos interesse, de facto.

Ou então, que nos desenrasque.

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