Dêem o Nobel a Deus

|Tnia Rei|
Naqueles dias, Deus, entidade de poder e paciência infinitos, estava, por mais estranho que possa parecer, entediado. 

A Sandra descobriu que o marido, António, andava enrolado com a colega de trabalho, Susete, porque viu uma mensagem no telemóvel do sacana que dizia “tenho saudades de fazer amor contigo”. O Benfica empatou. Veio um furacão que arrasou cidades inteiras, e a ajuda humanitária teima em não chegar.

Tudo porque Deus estava aborrecido.

Somos milhões, biliões, triliões neste Mundo. Muitos nem têm registo no cartório, mas Deus, esse senhor perspicaz, tem o nome de todos na ponta da língua, sabe da família, e tem acumulada a função de escrever para todo e qualquer um o guião de uma vida inteira.

Louvo a imaginação de Deus. Claro que algumas existências são mais banais, mais estandardizadas. Ainda assim, note-se que Deus sabe a estória de cada um de cor. Imaginem-se a ser atendidos desta maneira numa repartição pública, com uma relação com o funcionário sem segredos, onde não precisam de explicar nada… Que maravilha.

Imagino Deus num espaço muito branco, com mesas brancas, um céu branco (não há telhado), rodeado de funcionários vestidos de branco, com cabelos aos caracóis, de tonalidades que dançam entre o loiro platinado e o castanho claro, agarradinhos à cabeça e imensamente bem penteados. Não há no chão uma única marca provocada pelo arrastar das cadeiras ou pela sola das sandálias dos anjos. É tudo imaculado. Tudo branco de fazer doer a vista, como num anúncio de um detergente ou lixívia. Deus, mais alto do que todos, por ser mais velho, gesticula muito enquanto fala.

Dita, ao mesmo tempo, estórias de vida com detalhes, datas, horas, momentos-chave. Cria um enredo com muitas personagens. Rodriguinhos é o que não faltam, como se quer, cheios de emoção, de lábia barata, de sal para temperar. E nunca, mas nunca, baralha as estórias. Cada um tem o destino que Deus escolheu. Precisamente aquele, sem margem para reclamação ou engano. Era assim que tinha que ser, porque cada passo dado em cada encruzilhada já estava predestinado. Não há livre arbítrio que nos valha. Isso é a treta desta falsa democracia divina. É, na realidade, um brainwash, em que acreditamos que fazemos o que nos dá na real gana, ignorando o facto de Deus ter andado com uma trabalheira desgraçada para nos riscar as linhas.

Era, até, um desrespeito poder ter uma vida diferente daquela que nos foi escrita. Estávamos a amassar, como uma folha antiga que se deita ao lixo, o esforço de Deus, para que nada nos falte. Construiu uma espécie de linha férrea onde abundam carris e óleo, e é só ir, com algumas paragens para manutenção.

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Deus, contudo, tem por hábito escrever também sozinho. Leva uma chávena de café forte, e vai para o seu gabinete, que é branco na mesma, mas que tem uma escrivaninha de madeira escura. É parecida com a do São Pedro, que recebe com pompa as alminhas no Céu, mas a de Deus tem mais gavetas e uns desenhos esculpidos nas pernas. Tem muitas folhas rasuradas, cheias de anotações. Estas são as estórias de alguns, que ele gosta mais ou menos, ou que têm um temperamento difícil, e é necessário andar com ajustes.

Deus, reparem, não tem tempo para mais nada. Dedica-se à escrita com fervor. Não dorme porque não precisa, mas também porque não tinha como, nesta lufa-lufa.

Em 2016, Bob Dylan fez História e venceu no Nobel da Literatura. Decisão ousada e polémica, com um músico a fazer uma rasteira a quem não quer saber de métrica.

Deixo um apelo à Academia – não podemos continuar a ignorar esta carreira brilhante. Façam o favor de este ano voltarem a marcar a diferença, e dêem o Nobel a Deus.

Não garanto que ele o venha receber, ou que, sequer, ligue a agradecer. Ainda assim tenho para mim que talvez, até, esteja Ele já a rabiscar sobre isto.

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