A Linha do Douro, o interior e a hipocrisia dos decisores

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Esta luta não é nova e o erro político de não considerar o transporte ferroviário como determinante ou fundamental para uma mobilidade sustentável e para as necessidades económicas do mundo atual, tem vindo desde há muito tempo a ser denunciado pelo BE.


Eu próprio tomei o tema em mãos no último “Encontro do Interior”, realizado em 26 de janeiro deste ano na vila de Alijó, ao denunciar e ao criticar o desprezo politico do atual Governo por não comtemplar a recuperação e modernização da Linha do Douro no Plano Nacional de Investimentos (PNI) para a década 20-30. Na verdade - há que dizê-lo sem qualquer tipo de restrições-, o PNI para a próxima década espelha a demagogia, a hipocrisia e a falta de sensibilidade dos atuais decisores para com o enorme problema da interioridade.


Ao ser assim apresentado, com uma orientação que concentra os principais investimentos nos grandes centros urbanos ou no seu entorno, o PNI revela-se ofensivo para o interior, mostrando o quanto de hipócrita contêm as intervenções públicas de quem se diz preocupado com os problemas dos territórios de “baixa densidade”.


O Programa Nacional de Investimentos apresentado pelo Governo de António Costa poderá ser considerado como um atestado de óbito final para todos os que continuam a resistir nesta faixa de abandono do território português; representa mais uma década perdida por não se prever qualquer investimento estrutural em territórios que se encontram num alucinante processo de despovoamento.


Nós, os que vivemos em Trás-os-Montes e Alto Douro, não podemos tolerar porque não contemplou esse Plano a tão premente e necessária solução de investimento para a requalificação da Linha do Douro. Todos estão de acordo que a Linha do Douro, com a respetiva ligação a Espanha, poderia constituir uma solução estruturante de crucial importância para animar a economia do eixo regional que acompanha este curso fluvial.


Este governo sabe que a centenária via férrea é encarada nos dias de hoje pela União Europeia (UE) como uma das soluções ferroviárias com elevado potencial no espaço europeu. Foi a própria UE, a tal entidade de onde vão chegando os fundos financeiros para os projetos estruturantes fomentados no litoral, que sublinhou o potencial económico e desenvolvimentista da ferrovia do Douro, nomeadamente se for viabilizado o traçado até Barca d’Alva (Portugal) e Fregeneda - Salamanca (Espanha), com um custo de requalificação estimado de 578 milhões de euros.


A Linha do Douro e uma linha fronteiriça franco-alemã foram as duas ligações escolhidas e classificadas como de maior potencial económico em toda a Europa por uma iniciativa da Comissão Europeia realizada a 9 de outubro do ano passado, durante a Semana das Cidades e das Regiões que ocorreu em Bruxelas.


O governo de António Costa sabe disto, mas também sabe que existe um estudo datado de 2016, realizado pela Infraestruturas de Portugal através da sua Direção de Planeamento Rodoferroviário, onde é exposto com toda a clareza essa mesma viabilidade e esse mesmo potencial, caso a via fosse requalificada num projeto comum com a vizinha Espanha.


O posicionamento geográfico desta linha férrea confere-lhe um interesse estratégico fora do comum, na medida em que, e cito o mencionado estudo da IP, “permitiria a ligação transversal mais direta desde o porto de Leixões à fronteira com Espanha”. Por sua vez, e atendendo ao desenvolvimento do setor turístico da região vinhateira, a sua requalificação permitiria enquadrar a região do Douro interior, e por consequência todo o “Douro Transmontano” e parte do território da Beira Alta, entre dois importantes polos geradores de tráfego como o Aeroporto Francisco Sá Carneiro, o terminal de passageiros do Porto de Leixões e a estação do comboio de Alta Velocidade em Salamanca.


Com a requalificação da Linha do Douro e a respetiva ligação a Espanha, seria potenciado ao máximo um eixo turístico de excelência, um eixo turístico que centrado num troço de caminho-de-ferro geraria a possibilidade de poderem ser visitados quatro destinos classificados pela Unesco como Património da Humanidade: a cidade do Porto, a Paisagem Evolutiva e Viva do Douro Vinhateiro, as Gravuras Rupestres do Vale do Côa e a cidade de Salamanca.


O Governo sabe de tudo isto, mas quando apresentou o Programa Nacional de Investimentos para a década 20-30, o projeto de requalificação da Linha do Douro até à fronteira com Espanha ficou esquecido, apesar de há muito ser reivindicado pelas populações locais, e mesmo depois desta infraestrutura ser considerada como um dos itinerários ferroviários mais promissores no espaço europeu e um dos projetos com maiores potencialidades para alavancar um novo processo de desenvolvimento local e regional.


O aparecimento desta petição pública é por isso uma oportunidade para relembrarmos a António Costa que nós aqui pelo Douro ainda existimos e somos capazes de resistir. É uma oportunidade para abrir o debate na Assembleia da República; é uma oportunidade para mostrarmos e dizermos aos decisores, sejam eles quem forem no futuro, que lutaremos, que haveremos de resistir. Que venceremos! Mas no imediato só se exige aos durienses, aos transmontanos, ao beirões, e a todos os que com eles queiram ser solidários, um gesto simples. O simples gesto de assinar esta petição![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

A Linha do Douro, o interior e a hipocrisia dos decisores

|Luis Pereira|
Foi recentemente apresentada no Museu do Douro uma petição pública que reivindica a necessidade de abrir o debate sobre a urgência de investimento para reativação e requalificação da Linha do Douro até Barca d’Alva e Espanha. Os promotores foram a Liga dos Amigos do Douro Património Mundial e a Fundação Museu do Douro. É bem-vinda a iniciativa!

Esta luta não é nova e o erro político de não considerar o transporte ferroviário como determinante ou fundamental para uma mobilidade sustentável e para as necessidades económicas do mundo atual, tem vindo desde há muito tempo a ser denunciado pelo BE.

Eu próprio tomei o tema em mãos no último “Encontro do Interior”, realizado em 26 de janeiro deste ano na vila de Alijó, ao denunciar e ao criticar o desprezo politico do atual Governo por não comtemplar a recuperação e modernização da Linha do Douro no Plano Nacional de Investimentos (PNI) para a década 20-30. Na verdade - há que dizê-lo sem qualquer tipo de restrições-, o PNI para a próxima década espelha a demagogia, a hipocrisia e a falta de sensibilidade dos atuais decisores para com o enorme problema da interioridade.

Ao ser assim apresentado, com uma orientação que concentra os principais investimentos nos grandes centros urbanos ou no seu entorno, o PNI revela-se ofensivo para o interior, mostrando o quanto de hipócrita contêm as intervenções públicas de quem se diz preocupado com os problemas dos territórios de “baixa densidade”.

O Programa Nacional de Investimentos apresentado pelo Governo de António Costa poderá ser considerado como um atestado de óbito final para todos os que continuam a resistir nesta faixa de abandono do território português; representa mais uma década perdida por não se prever qualquer investimento estrutural em territórios que se encontram num alucinante processo de despovoamento.

Nós, os que vivemos em Trás-os-Montes e Alto Douro, não podemos tolerar porque não contemplou esse Plano a tão premente e necessária solução de investimento para a requalificação da Linha do Douro. Todos estão de acordo que a Linha do Douro, com a respetiva ligação a Espanha, poderia constituir uma solução estruturante de crucial importância para animar a economia do eixo regional que acompanha este curso fluvial.

Este governo sabe que a centenária via férrea é encarada nos dias de hoje pela União Europeia (UE) como uma das soluções ferroviárias com elevado potencial no espaço europeu. Foi a própria UE, a tal entidade de onde vão chegando os fundos financeiros para os projetos estruturantes fomentados no litoral, que sublinhou o potencial económico e desenvolvimentista da ferrovia do Douro, nomeadamente se for viabilizado o traçado até Barca d’Alva (Portugal) e Fregeneda - Salamanca (Espanha), com um custo de requalificação estimado de 578 milhões de euros.

A Linha do Douro e uma linha fronteiriça franco-alemã foram as duas ligações escolhidas e classificadas como de maior potencial económico em toda a Europa por uma iniciativa da Comissão Europeia realizada a 9 de outubro do ano passado, durante a Semana das Cidades e das Regiões que ocorreu em Bruxelas.

O governo de António Costa sabe disto, mas também sabe que existe um estudo datado de 2016, realizado pela Infraestruturas de Portugal através da sua Direção de Planeamento Rodoferroviário, onde é exposto com toda a clareza essa mesma viabilidade e esse mesmo potencial, caso a via fosse requalificada num projeto comum com a vizinha Espanha.

O posicionamento geográfico desta linha férrea confere-lhe um interesse estratégico fora do comum, na medida em que, e cito o mencionado estudo da IP, “permitiria a ligação transversal mais direta desde o porto de Leixões à fronteira com Espanha”. Por sua vez, e atendendo ao desenvolvimento do setor turístico da região vinhateira, a sua requalificação permitiria enquadrar a região do Douro interior, e por consequência todo o “Douro Transmontano” e parte do território da Beira Alta, entre dois importantes polos geradores de tráfego como o Aeroporto Francisco Sá Carneiro, o terminal de passageiros do Porto de Leixões e a estação do comboio de Alta Velocidade em Salamanca.

Com a requalificação da Linha do Douro e a respetiva ligação a Espanha, seria potenciado ao máximo um eixo turístico de excelência, um eixo turístico que centrado num troço de caminho-de-ferro geraria a possibilidade de poderem ser visitados quatro destinos classificados pela Unesco como Património da Humanidade: a cidade do Porto, a Paisagem Evolutiva e Viva do Douro Vinhateiro, as Gravuras Rupestres do Vale do Côa e a cidade de Salamanca.

O Governo sabe de tudo isto, mas quando apresentou o Programa Nacional de Investimentos para a década 20-30, o projeto de requalificação da Linha do Douro até à fronteira com Espanha ficou esquecido, apesar de há muito ser reivindicado pelas populações locais, e mesmo depois desta infraestrutura ser considerada como um dos itinerários ferroviários mais promissores no espaço europeu e um dos projetos com maiores potencialidades para alavancar um novo processo de desenvolvimento local e regional.

O aparecimento desta petição pública é por isso uma oportunidade para relembrarmos a António Costa que nós aqui pelo Douro ainda existimos e somos capazes de resistir. É uma oportunidade para abrir o debate na Assembleia da República; é uma oportunidade para mostrarmos e dizermos aos decisores, sejam eles quem forem no futuro, que lutaremos, que haveremos de resistir. Que venceremos! Mas no imediato só se exige aos durienses, aos transmontanos, ao beirões, e a todos os que com eles queiram ser solidários, um gesto simples. O simples gesto de assinar esta petição!

Publicado originalmente em Interior do Avesso

A velhinha vestida de negro e a oferta cultural em Trás-os-Montes

|Luis Pereira|
Depois de 45 anos de abril ainda há quem veja Trás-os-Montes pela imagem estereotipada da velhinha vestida de negro, onde tudo é breu, onde nada existe ou onde tudo é rude. 

Habitual é também confrontarem-nos com o constante quadro do relevo das fragas, numa descarada metáfora que parece sublimar a estéril aspereza do nosso sentir e do nosso espírito coletivo. Quando assim me falam, pensando que estão a elogiar ou a tocar o orgulho bacoco do autóctone acrítico, nunca deixo de alertar para a ignorância atrevida que em vez de me enaltecer me insulta.

É também fatal o meu repúdio quando em conversa com um qualquer “litoralista”, mesmo que amigo, lhe indico um ponto de interesse poisado num desses concelhos dos distritos de Bragança ou Vila Real e num insuportável instantâneo logo lhe ouço retorquir: “Eh pá, isso é muito longe!”.

Na verdade, sobre Trás-os-Montes gerou-se um conjunto de ideias fixas, mitificadas pela distância psicológica, mas também pela remota e desinteressante imagem da velhinha de buço forte, ornada de xaile rôto e lenço preto, hoje praticamente inexistente, mas que um significativo número de pessoas insiste em invocar e em graçola de caserna associar à região.

Mesmo depois de passados 45 anos sobre a rutura deste “grafismo salazarista”; mesmo depois de rasgado o Marão e de abertas duas autoestradas que são complementadas por uma já boa rede viária que nos aproxima de tudo e de todos, há qualquer coisa de antigo, folclorista e prazanteiro que persiste no imaginário de alguns “urbanos” quando se referem a Trás-os-Montes, imagem que em parte julgo ter sido veiculada ou mantida viva pelas imagens que ilustram a maior parte das peças das televisões portuguesas, quase todas com uma predileção doentia pela vertente pitoresca e antiquada de quem habita esta terra.

Com tantas coisas inovadoras, criativas e verdadeiramente interessantes a acontecerem em Trás-os-Montes, o que geralmente vemos explorado sobre nós nos 2 ou 3 minutos de informação e reportagem que integram os telejornais dos grandes canais televisivos é o velho agricultor que criou uma abóbora de 50 quilos, o rio Sabor que gelou em Gimonde, o “cinzelo” que cristalizou as árvores em Mirandela, os lobos que comeram as ovelhas em Vinhais…ou outros casos noticiados de semelhante interesse informativo.

É certo que a comunicação da imagem da região melhorou um pouco na “era do facebook” e da democratização da comunicação digital, mas é nos telejornais do meio-dia e da noite que se geraram e ainda continuam a gerar as imagens regionais que temos uns dos outros. E a nossa não é particularmente satisfatória. É urgente atualizá-la, modernizá-la!

Apesar de estarmos a pouco mais de 4 horas de Lisboa e a 1 ou 2 horas do Porto, Trás-os-Montes continua a ficar muito longe e a ser um local encarado como remoto, onde só o irrisório acontece. Nada, portanto, de mais errado; nada, portanto, de mais elucidativo sobre a ignorância externa e generalizada que existe sobre a nossa terra e o nosso coletivo.

Pegando no exemplo da oferta cultural da região transmontana, pouca gente saberá o que por aqui se produz de verdadeiramente criativo e inovador e porventura muito poucos serão aqueles que concordarão comigo quando afirmo que essa oferta é significativa, diversificada e de muito boa qualidade. Na verdade, há bastante gente, incluindo um crescente número de jovens, a trabalhar no setor da oferta e da produção cultural na região, embora pouco se saiba sobre essa atividade, quer porque ela é omitida pelos grandes meios de comunicação social nacional, quer - o que é muito mais grave e triste -, porque essa atividade é silenciada pelos pequenos e dependentes meios da comunicação social local, sempre mais empenhados na pequena intriga política, no insólito pacóvio e provinciano do que em qualquer outro assunto de maior interesse social.

Efetivamente, ainda não há uma aposta na divulgação e na informação jornalística que nos dê a conhecer de forma constante as propostas e os projetos culturais que existem ou são fomentados na região. Saberá você que só no segundo trimestre deste ano cerca de 50 eventos vão passar no Teatro de Vila Real? É verdade, a programação para os meses de abril a junho neste espaço cultural conta com cerca de 50 eventos nas várias artes performativas, entre programação própria e apoio a agentes culturais locais. Experimente espreitar o que aqui se passa e admire-se! Experimente fazer o mesmo com o Teatro Municipal de Bragança.

Ainda em Vila Real, poderia citar imensos exemplos da dinâmica e do vigor cultural desta cidade, entre os museus que se podem visitar, os concertos musicais, lançamentos editoriais ou exposições com várias temáticas a que é possível assistir. Mas permitam-me dar realce ao exemplo da atividade teatral pelo simples facto de aqui existirem quatro companhias residentes profissionais ou semiprofissionais, sendo que uma delas está ao nível do melhor que se faz no nosso país e, uma outra, constituída recentemente, surge brindando-nos com um elenco ainda muito jovem e um vigor qualitativo digno de realce. Que mais cidades do interior, de pequeno ou médio tamanho, se poderão gabar de semelhante proeza?!

E quanto a concertos ou produção musical? Bem, também aí poderíamos apontar dezenas de exemplos e de projetos, mas o que mais me comove é o caso de uma promotora independente de jovens com interesse zero pelo lucro, que atuando a partir de Bragança têm trazido até à nossa região uma enorme e eclética quantidade de nomes sonantes e de excelente qualidade da música que se faz por esse mundo fora. Há exemplos excecionais e emocionantes da ação local que bem podiam ser utilizados para fortalecer a nossa persistência e a nossa autoestima.

É também esse o caso da aposta museológica de um pequeno concelho do distrito de Bragança. Para quem diz que aqui não se passa nadinha é porque nunca visitou o concelho de Carrazeda de Ansiães, com pouco mais de 5.000 habitantes, mas onde podem ser visitadas sete estruturas museológicas da mais alta qualidade expositiva e pedagógica.

E que dizer de Miranda do Douro e de Mirandela e de Chaves, do Peso da Régua, de Macedo de Cavaleiros e de tantas outras localidades deste nosso rincão? Tantos e tantos exemplos que poderiam ser dados e que serviriam para nos orgulhar enquanto transmontanos e cidadãos de um território onde gostamos de viver e trabalhar.

Mas o que é importante frisar é que o tal “grafismo” da velhinha vestida de negro já não existe! Já não existe há muito tempo! O que é importante frisar é que também aqui há urbanidade e modernidade. O que é importante celebrar, vozear, difundir, dizer, é que em Trás-os-Montes também se mostra e produz cultura ao mais alto nível, ainda se cria, ainda se inova e ainda se faz. E isso é importante para melhorarmos; é importante para mantermos a esperança e alimentarmos um maior ânimo na construção do futuro.

Publicado originalmente em Interior do Avesso

O Plano Nacional de Investimentos e a urgência de fazermos a Regionalização do país

|Luis Pereira|
Todo o interior, mas particularmente Trás-os-Montes, caminham a passos largos para um efetivo desaparecimento. Sem pessoas, as terras não são terras, são coutadas de caça e leiras de abandono onde imperará o silêncio e os vestígios materiais da morte.

Não é exagero, é uma realidade vivenciada pelo quotidiano da minha pessoa que no seu dia-a-dia se depara com aldeias onde não se encontra já vivalma, onde ninguém já vive, ou onde só ficaram os mais idosos, aqueles que já perderam toda a esperança e já não têm a força necessária para se darem à aventura da partida.

O quadro demográfico da maioria do interior se ainda não atingiu, atingirá muito em breve o ponto do não retorno, a incapacidade de regeneração e manutenção de uma população residente que mantenha os territórios mais ou menos estáveis. Estamos perante um quadro negro, um quadro real que apenas parece preocupar a hipocrisia dos decisores centralistas quando a desgraça escancara as portas da realidade através da exposição mediática, como aconteceu com o caso de Pedrogão Grande.

A incapacidade de fixação da população no interior não é um problema de hoje. É um problema com longas décadas, uma mancha negra com profundas raízes históricas, que se agudizou no fascismo, mas que a alternância do poder por parte do PS e do PSD nunca conseguiu resolver nestes 44 anos da democracia portuguesa saída do 25 de abril.

O desleixo para com o interior foi e é um exemplo ilustrativo da herança antidemocrática de um poder centralizado que se pretende democrático mas que sempre contabilizou as prioridades de investimento nos territórios em função do número de votos que cada região pode oferecer. Um caso típico de desprezo pelas minorias, um caso típico de irresponsabilidade perante a cidadania, um caso típico de ignorância histórica, de incapacidade governativa, de incompetência política, de falta de planeamento e de total negligência pela coesão territorial. Perante tantos erros e tantas faltas o interior definhou, foi lentamente finando, até atingir um estado de quase não retorno como o que nos dias de hoje facilmente se poderá constatar.

Mas haverá solução para o interior? Talvez ainda haja e é com essa esperança que muitos continuam a resistir e a lutar com as débeis armas que têm ao dispor. Uma luta desigual e quase anónima, mas que não deixa de ser luta; uma luta cidadã que denuncia e que reivindica perante um poder cada vez mais centralizado.

Acreditamos que ainda existe uma solução para o interior, mas o caminho que devemos seguir não é o da descentralização de competências para as autarquias, conforme o previsto na Lei nº 50/2018 que nos querem impor à força, mas sim a busca de uma estrutura de decisão intermédia que só o processo de regionalização do país poderá oferecer. Um processo de regionalização bem conduzido, discutido, participado e bem planeado. Um processo de regionalização capaz de gerar uma transformação territorial operativa, não discriminatória, que dote cada região de uma autonomia financeira assente numa distribuição equitativa e justa dos recursos nacionais; uma regionalização baseada em instrumentos de decisão democráticos, que desagrave as desigualdades territoriais e que solidifique e reforce um processo gradual de coesão territorial e social.

Nós, os que vivemos no interior, não podemos continuar a tolerar que o nosso futuro se tolha nas mãos centralistas de quem não conhece os nossos recursos e a nossas potencialidades; nas mãos daqueles que não entendem e que não sabem o que nos é mais favorável para progredirmos e para nos desenvolvermos.

Nós, o que vivemos no interior, jamais poderemos ficar calados perante o mais recente Programa Nacional de Investimentos para a década 20-30! Um programa que espelha a demagogia, a hipocrisia e a falta de sensibilidade para o enorme problema da interioridade. Um programa de investimentos que é ofensivo para o interior, mostrando o quanto de hipócrita contêm as intervenções públicas de quem se diz preocupado com os problemas dos (por eles designados) territórios de baixa densidade!

O Programa Nacional de Investimentos apresentado para a próxima década é um atestado de óbito final para todos os que continuam aqui a resistir. Representa mais uma oportunidade perdida, onde não se vislumbra qualquer investimento estrutural em territórios que se encontram praticamente despovoados.

Nós, os que vivemos em Trás-os-Montes e Alto Douro, não podemos tolerar porque não contempla esse Plano, por exemplo, uma solução de investimento para a requalificação da Linha do Douro!

Todos estão de acordo que a Linha do Douro, com a respetiva ligação a Espanha, poderia constituir uma solução estruturante para animar a economia do eixo regional que acompanha este curso fluvial.

Este governo sabe que a Linha do Douro é apresentada pela própria União Europeia (UE) como uma das soluções com mais potencial económico do transporte ferroviário em toda a Europa. Um recente estudo da UE destaca o potencial de desenvolvimento da linha do Douro, entre o Pocinho e Barca d'Alva (Portugal) e Fregeneda - Salamanca (Espanha), com um custo de requalificação estimado de 578 milhões de euros.

A linha do Douro e uma linha fronteiriça franco-alemã foram as duas ligações escolhidas e classificadas como de maior potencial económico em toda a Europa por uma iniciativa da Comissão Europeia realizada a 9 de outubro passado, durante a Semana das Cidades e das Regiões que ocorreu em Bruxelas.

Este governo também sabe que existe um estudo datado de 2016, realizado pela Infraestruturas de Portugal, através da sua Direção de Planeamento Rodoferroviário, onde é exposta a viabilidade e o potencial da linha do Douro, caso a mesma fosse requalificada num projeto comum com a vizinha Espanha. Através desse estudo, o Governo sabe que o posicionamento geográfico desta linha férrea confere-lhe um interesse estratégico fora do comum, na medida em que, e cito o mencionado estudo da IP, “permitiria a ligação transversal mais direta desde o porto de Leixões à fronteira com Espanha”.

Por sua vez, e atendendo ao desenvolvimento do setor turístico da região vinhateira, a requalificação da Linha do Douro permitiria também enquadrar a nossa região do Douro interior, e por consequência de todo o “Douro Transmontano” e de parte da Beira Alta entre dois importantes polos geradores de tráfego, como o Aeroporto Francisco Sá Carneiro, o terminal de passageiros do Porto de Leixões e a estação do Comboio de Alta Velocidade em Salamanca. Com a requalificação da Linha do Douro e respetiva ligação a Espanha, seria criado um eixo turístico de excelência, centrado num troço de caminho-de-ferro e na possibilidade de a partir desse percurso poderem ser visitados quatro destinos classificados pela Unesco como Património da Humanidade, a saber: a cidade do Porto, o Douro Vinhateiro, as Gravuras Rupestres do Vale do Côa e a cidade de Salamanca.

O Governo sabe de tudo isto, mas quando apresenta o Programa Nacional de Investimentos para a próxima década, o projeto de requalificação da Linha do Douro até à fronteira com Espanha é esquecido, apesar de se constituir como o itinerário ferroviário mais promissor no espaço europeu e um dos projetos com mais potencialidades para alavancar um novo processo de desenvolvimento a nível regional.

É nesta triste realidade que enquadramos a vontade política de quem nos tem governado e de quem atualmente nos governa, não sendo vislumbrado qualquer sinal que nos garanta a preocupação do poder central na resolução dos problemas do interior.

Por tudo isto e muito mais estão a empurrar-nos descaradamente para a borda de um tempo limite. Um tempo de gritar e de dizer chega! Empurram-nos para um tempo sem tempo e sem paciência para aguentar mais este desprezo. É hora de dizer basta, é hora de decidirmos por nós e de exigirmos que volte à discussão pública a necessidade de fazermos a regionalização do nosso país!

O tempo que vivemos é por isso um tempo de angústia e de pessimismo. Chega de palavras vãs e vazias, chega de promessas, de inatividade e de demagogia. Se o interior do país morrer não será pela falta da luta de alguns, poucos, cada vez menos! Não será por falta de uma resistência extrema dos que insistem e pretendem continuar a viver aqui! Por isso acreditamos que ainda haveremos de salvar o interior!

Mas se morrermos… se matarem definitivamente o interior… haveremos de morrer como as árvores das nossas terras: morreremos de pé e a apontar o dedo aos nossos carrascos!

Divagações à volta dos ramais ferroviários do Corgo, do Tua e do Sabor

|Luis Pereira|
Os ramais ferroviários do Corgo, do Tua e do Sabor são já vestígios arqueológicos que se relacionam com um país que a dada altura se preocupou com os “povos indígenas” que ocupavam um espaço territorial delimitado por montanhas gigantescas e onde chegar era muito mais difícil do que ir buscar pimenta à Índia.

Esse milenar isolamento da região de Trás-os-Montes e Alto Douro só em parte começou a ser quebrado pelo programa do governo de Fontes Pereira de Melo, ministro da Regeneração, altura em que foi criado o primeiro Ministério das Obras Públicas no país. É nesse período, meados do séc. XIX, que na região, e particularmente na zona do Douro, são lançadas algumas obras viárias para dinamizar a economia do vinho, do vinho fino, do vinho tratado, do vinho do Douro, que não do Porto, que já nesse tempo se constituía como um dos principais produtos das exportações portuguesas.

Um pouco mais tarde, no último quartel do séc. XIX, assiste-se a uma época em que a macrocefalia da capital oferece qualquer coisa de novo e verdadeiramente revolucionário a este interior esquecido que assiste pasmado à chegada da tecnologia do comboio a vapor, que depois de instalado no vale do Douro começa a romper o vale do Tua em 1884. E quando a Monarquia caiu e a República se impôs, já aqui há algum tempo o comboio silvava entre o vale, a montanha e o planalto.

A partir de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, Trás-os-Montes tornou-se, efetivamente, uma região mais aberta ao mundo, com a montagem de infra-estruturas ferroviárias que lhe permitiam a comunicação com o exterior. Entrava-se na região através da Linha do Douro e depois seguia-se para Vila Real, para Chaves, para Bragança ou para Miranda do Douro através dos ramais ferroviários do Corgo, do Tua e do Sabor.

Quem estuda História não descarta a hipótese de que esta região, por essa altura, poderá ter acreditado em algo novo, numa nova vida, num processo qualquer de transformação que desse mais felicidade a esta gente. Mas não. Nada aconteceu de verdadeiramente novo aqui! Se houve esperança, ela depressa se desvaneceu e todos esses homens e mulheres baixaram novamente os rostos ao chão à procura dos parcos grãos de centeio para melhor aconchegar a barriga dos numerosos e esfaimados filhos. E depois, na escuridão das trevas que o fascismo impôs à nação, o silvo do comboio continuou a rasgar diariamente o desespero de um silêncio decretado pela vontade de um ditador, dos seus lacaios e dos insuportáveis correligionários de que ainda hoje há semente em preocupante germinação.

Durante quase todo o séc. XX, o comboio foi para Trás-os-Montes um elo imprescindível e fundamental que operava a ligação com o exterior, escoava mercadorias e permitia os fluxos de pessoas, bens, ideias e algumas conspirações. Nessa altura, Trás-os-Montes era uma terra de gente que amanhavam o campo ao ritmo da luz do sol, parindo e criando “ninhadas” de filhos que desde muito cedo aprendiam o significado e o verdadeiro valor do pão.

E todos esses meninos transformavam-se lentamente em jovens ao ritmo monótono e ronceiro da passagem de um comboio. E depois do comboio passar, olhavam em seu redor a perscrutar um silêncio frio e húmido enquanto cismavam, cismavam e cismavam. Nas tardes de chuva invernal esgaravatavam entre as brasas da lareira da casa paterna os seus sonhos luzidios, gizando com a tenaz os projetos de um futuro que pretendiam diferente. E então, com a incorporação na tropa, à procura dos seus sonhos iam, embarcando nesse mesmo comboio que só parava junto ao mar. Uma vez apeados embarcavam depois em colossais navios, quantas vezes em direção à morte, ou ficavam pelas grandes cidades a povoarem as fábricas e os estaleiros onde haveriam de mais tarde construir o seu grito de revolta.

O comboio ritmou de forma indelével os ciclos conjunturais da História transmontana de todo o séc. XX, e se não houvesse outros motivos eu fundamentaria nessa História o principal argumento para defender os ramais de linha estreita do Corgo, do Tua e do Sabor, assim como a reabertura do troço da linha do Douro do Pocinho a Barca d’Alva, com a respetiva continuidade no país vizinho. Mas há muitas mais e variadas razões para pugnar pela continuidade destas linhas, exigindo a reabertura de todas elas. Não vou falar sobre as vantagens para a região da continuidade e manutenção destas vias-férreas, mas será sobretudo no turismo e na utilização racional das fontes de energia nos transportes regionais que nós iremos encontrar as suas principais valias.

Numa altura em que o caminho-de-ferro começa a ser revigorado na maioria dos outros países europeus, eis que Portugal, mais uma vez, ruma em contraciclo.

Se fizermos um recuo no tempo, facilmente percebemos que a destruição não começou há muitos anos e coincidiu com o início das políticas neoliberais em que Cavaco Silva foi o grande pioneiro e protagonista. Foi ele que encerrou a Linha do Sabor e foi também ele que encerrou troços significativos das linhas do Tua e do Corgo, a que depois José Sócrates deu o “golpe de misericórdia” final.

É bom que alimentemos a memória para percebermos algumas debilidades de posições atuais e sobretudo a responsabilidade histórica de atos devastadores para o interior do país de muitos daqueles que governaram e/ou continuam a governar Portugal.

Se nada fizermos hoje, se nada exigirmos neste tempo em que alguns tentam alicerçar um novo rumo para o interior; se não lutarmos de forma última por tudo o que ainda nos resta de possível e de sonho, sempre em defesa do coletivo, da região e do país… no futuro apenas nos restará a História para testemunhar a irracionalidade das nossas absurdas e indesculpáveis inações.

Património, identidade e desenvolvimento do interior

|Luis Pereira|
O título deste texto encerra três conceitos propícios ao confronto de opiniões e por consequência causadores de apaixonada discussão quando sobre eles decidimos refletir. O primeiro conceito é o de património, o segundo é o de identidade e o terceiro é o de desenvolvimento. Todos eles congregam em si a possibilidade de tratarmos esses temas através de visões diferenciadas e como tal quero expressamente alertar que esta minha opinião apenas resulta de uma visão estritamente pessoal que detenho e defendo sobre tais matérias.

Para não complicar teoricamente e tendo em conta uma necessária operacionalidade deste texto, vou utilizar aqui a definição ou a conceção de património que nos é transmitida pelas convenções, recomendações, resoluções e documentos legislativos orientadores, quer de origem nacional quer de origem internacional.

Atualmente, o Património Cultural divide-se em duas vertentes fundamentais: O Património Material (Arquitetónico, Arqueológico, Móvel, Imóvel, etc.) e o Património Intangível ou Imaterial onde se refletem as tradições e expressões orais, incluindo a língua; as práticas sociais, rituais e eventos festivos; os conhecimentos e práticas relacionados com a natureza; as aptidões ligadas ao artesanato tradicional ou ao saber-fazer, entre outras. O conceito de património pode ainda ser alargado à arquitetura vernacular e tradicional ou a determinados aspetos da geologia e da natureza.

Estamos assim perante um vastíssimo campo que engloba um não menos vasto sistema de divisões ou prateleiras onde poderemos encaixar as variadas vertentes que integram o conceito de património.

O segundo conceito é o de identidade. Muito mais complexo, este conceito tem de ser sempre abordado pela vertente antropológica, sendo que a identidade pressupõe o princípio do relativismo cultural e da aceitação das várias identidades que concorrem para a definição de um grupo, de uma etnia ou de um povo que ao longo dos séculos atuou sobre uma paisagem, transformado-a e, como tal, gerando cultura. Mas a identidade integra, para além do património considerado no seu todo, uma interação social muito própria, a comunhão de códigos comportamentais, a ideia de pertença e um processo natural de transmissão geracional dos vetores culturais e identitários que caraterizam pela singularidade um determinado grupo, uma etnia ou um povo.

Depois, e por último, chegamos ao terceiro conceito: o conceito do desenvolvimento que deverá ser implementado em territórios do interior. E aqui, quando trabalhamos com o património como um setor considerado sinérgico de desenvolvimento regional, só poderemos aceitar o princípio de desenvolvimento sustentado. Ou seja, o conceito de um desenvolvimento concebido na linha interpretativa de um processo económico que procura satisfazer as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades. Quando atuamos sobre um recurso temos que ter sempre em mente a possibilidade de dar às pessoas, agora e no futuro, a oportunidade de atingirem um nível satisfatório de desenvolvimento económico, social e cultural assente num uso razoável e racional dos recursos, sejam estes recursos naturais, sejam eles recursos patrimoniais ou outros.

Portanto, e depois de apresentados em pinceladas muito gerais os conceitos que englobam o tema de reflexão que aqui estamos a tratar, poderemos agora chegar a uma primeira formulação que tem no património cultural (material e imaterial) um recurso diversificado e abundante para que, no respeito pelo relativismo cultural, possamos ajudar a desenvolver, de forma programada e sustentada, um concelho, uma região e, por consequência, todo um país.

Centrando-nos nos territórios de baixa densidade de investimentos públicos, de que forma é que o património cultural poderá ajudar para interromper o processo catastrófico de despovoamento pelo qual estas terras do interior estão a passar?

Antes de mais é necessário colocar racionalidade, ponderabilidade, planificação e inteligência naquilo que se faz neste domínio. Atendendo a que existem sempre exceções, de uma forma geral foi isso que não aconteceu com muitos dos investimento aplicados em ações passadas de valorização do património cultural que foram processados com recurso a dinheiros vindos dos fundos comunitários. Efetivamente, não se poderá dizer que os recursos patrimoniais não foram utilizados com a intenção de promover o desenvolvimento local e regional, principalmente nas últimas duas décadas. Houve realmente algum dinheiro provindo dos fundos comunitários que foi investido neste setor em muitas terras e em muitos concelhos. Mas o que aconteceu foi que se investiu sem o mínimo de planificação, sem objetivos ponderados e sem um programa integrado de desenvolvimento local e, desse modo, estes investimentos não geram qualquer alteração, ou geraram alterações muito residuais, impossibilitando um impacto positivo nas economias do interior e, por consequência, na vida das pessoas que aqui habitam.

Na verdade, o que verdadeiramente aconteceu na maior parte dos investimentos feitos neste domínio foi que grande parte dos responsáveis políticos locais e regionais emperraram a sua ação numa necessidade castradora e imperiosa de mostrarem a obra, apenas a obra feita, a imponência do cimento e da dimensão da estrutura. A necessidade de apresentarem a obra feita para momentos de inauguração, uma inauguração que era quase sempre programada para as proximidades de mais umas eleições autárquicas, de forma a daí poderem extrair dividendos políticos. Mostrava-se a obra, mostrava-se o feito, mas esquecia-se um pormenor: esquecia-se a necessidade da manutenção dos novos equipamentos. Dentro desta lógica, fizeram-se centros interpretativos, recuperam-se sítios arqueológicos, recuperaram-se edifícios históricos, abriram-se percurso pedestres, montaram-se rotas temáticas, investiu-se no património intangível, apostou-se nas classificações da UNESCO, mas esqueceram-se de constituir a base de gestão que incorporasse os recursos humanos necessários ao funcionamento dessas estruturas; esqueceram-se de reservar uma “verbazinha” para a constituição dos recursos humanos especializados, os tais recursos humanos que são e serão sempre a engrenagem que faz e tornará criativo, funcional e dinâmico qualquer investimento que se realize no âmbito deste setor.

Sem recursos humanos associados a uma estrutura cultural ou patrimonial não há nem haverá qualquer possibilidade de transformar o estado das coisas. E foi isso que aconteceu. Investiu-se no património, fez-se obra, badalou-se a obra, mas depois ficou tudo na mesma.

Fazer museus e centros interpretativos para estarem fechados ou num estado de letargia criativa e sem intervenção visível e sentida no meio social onde se inserem; recuperar edifícios para permanecerem encerrados e entrarem num novo processo de degradação; recuperar e valorizar locais arqueológicos para passados um ou dois anos estarem novamente cheios de mato... não é uma política que possa ser adequada a um processo de desenvolvimento sustentado, tendo como sinergia o património cultural.

Mas nem tudo é mau ou foi mal feito quando analisamos com cuidado o que existe no território nacional porque, na verdade, existem exemplos em Portugal que foram bem estruturados e que constituem, sem dúvida, verdadeiros paradigmas para quem com eles queira aprender. Mas diga-se, repita-se, sublinhe-se que os projetos que emergem como exemplo ou modelo na área da promoção do desenvolvimento local e regional tendo por base a identidade e o património, foram projetos bem estruturados, devidamente pensados, estabelecidos em rede e com parcerias institucionais e universitárias. E, sobretudo, foram projetos dotados desde o início com um corpo técnico especializado, onde se incluem as áreas do património como a Arqueologia, a História de Arte, o Restauro, a Antropologia, a Sociologia ou técnicos ligados ao Marketing, Comunicação e Turismo.

Investir no património cultural implica, antes de tudo, investir nas pessoas. Os recursos patrimoniais não são apenas elementos de identidade, eles deverão ser encarados como elementos de dinâmica criativa e centros aglutinadores das potencialidades dos mais jovens, dos que sejam capazes de gerar progresso local, dos que sejam capazes de se imporem como pontos irradiadores de uma dinâmica criativa com repercussões positivas nos tecidos social e económico. Só assim poderemos conservar o passado e toda a nossa tradição cultural, ao mesmo tempo que projetaremos e planearemos um  futuro melhor.

Por isso, quando se pensar investir na sinergia património com vista a um processo integrado de desenvolvimento local, temos que ter sempre em mente uma abordagem participacionista do conceito de património, valorizando desse modo a participação pública dos cidadãos que também podem e devem ser chamados em processos de decisão sobre a utilização do seu património para fins de promoção turística ou outros.

Considerando a dimensão dinâmica do passado, o valor histórico da cultura e a necessidade da mesma “ser transmitida geracionalmente” e sem qualquer imposição ou exaltação etnocêntrica, defendemos pessoalmente que investir no património cultural implica investir na valorização de um setor que se pretende vivo, fruído e sentido quotidianamente pelas populações locais, através de iniciativas que devem ter como principal objetivo a inserção e a interação das pessoas com os seus museus e com todos os seus monumentos, espaços culturais e de cidadania.

Se é certo que “sem memória não há futuro”, é ainda mais correto afirmar que sem pessoas não haverá nem memória nem futuro. Por isso, o abandono do território, o abandono do interior, o fim da funcionalidade de uma paisagem rural é um dos maiores riscos para o património cultural e é também por isso que quando se investe, quando se recupera, ou quando se faz de raiz, a primeira coisa a pensar deverá ser num quadro de pessoal que permita dar continuidade e valor acrescentado à razão de qualquer investimento feito nessa área, para que também a partir daí se possa fixar pessoas que ajudarão a perpetuar a história local, a identidade local, e que na sua intervenção comunitária, em cada localidade, possam inovar e construir um melhor futuro.

Investir no património implica ainda a construção de discursos históricos suscetíveis de serem objeto de oferta turística e de visitação territorial. Não haverá uma dinâmica turística completa e de qualidade em territórios do interior sem uma oferta de qualidade. E uma oferta de qualidade implica, na área do património, um estudo permanente, uma investigação permanente a vários níveis, inventários diversos, a identificação e caraterização dos bens patrimoniais, a criação de zonas de proteção, a criação de planos de salvaguarda e um vasto leque de outras ações capazes de fixar mão-de-obra especializada e jovens habilitados com graus académicos superiores que poderão constituir uma massa critica local capaz de ajudar a alavancar processos de transformação mais rápidos, mais inovadores e mais sustentáveis, de forma a dotar os territórios rurais de infraestruturas e equipamentos para que a população aí possa permanecer em condições de qualidade e numa mais perfeita democracia.

O património, nas suas plurais dimensões, pode assumir-se, efetivamente, como um elemento de diferenciação, de singularidade local e configurar-se como um forte motivo de atratividade turística capaz de captar riqueza para as localidades do interior.

Sabemos que as novas tendências, e sobretudo as que emergem dos eixos estruturantes impostos pela União Europeia, reconhecem como riqueza endógena as especificidades territoriais, o potencial dos recursos naturais e patrimoniais, e mais importante do que o reconhecimento da importância de cada um desses recursos, é o reconhecimento do valor da simbiose entre todos, uma simbiose que assente nas preocupações ambientais e em práticas agrícolas sustentáveis, sendo a tendência a promoção de um desenvolvimento que tem como principal objeto a valorização conjugada da paisagem e de toda a sua diversidade produtiva, patrimonial e ambiental, tentando-se, por essa via, encontrar novas funções ou usos para os territórios rurais que geralmente estão enriquecidos por marcas de uma ancestral e diferenciadora memória, memória essa que gera ou poderá gerar traços particulares, identitários e únicos que, nos tempos que correm, se vão impondo e podem cada vez mais imergir como nichos alternativos numa economia de oferta padronizada pelos efeitos da globalização.

Portanto, o património, enquanto elemento de identidade cultural, constitui uma sinergia variada e riquíssima, detendo em si fortes potencialidades para ajudar à promoção do desenvolvimento regional. Através dele é possível fixar pessoas, constituir programas de promoção do território de forma sustentada, aumentar a competitividade territorial através da criação ou valorização histórica e cultural dos produtos endógenos que sejam diferenciadores, promover a qualificação e a internacionalização, funcionalizar as riquezas de interesse público, criar atratividade territorial e, consequentemente, contribuir para dinamizar o empreendedorismo local, nomeadamente ao nível do setor turístico.

Mas para que tal aconteça as prioridades políticas têm de deixar de conceber o Orçamento da Cultura como um apêndice quase inútil do Orçamento de Estado. Para que tal aconteça temos que encarar a cultura como um setor de significativa importância para o desenvolvimento social e económico do país. Para que tal aconteça temos que ter investimento público. Muito investimento público. Porque investimento público foi coisa que quase sempre faltou nos territórios do interior desde que Portugal é Portugal.

Texto adaptado a partir da intervenção realizada pelo autor no Encontro do Interior, iniciativa promovida pelo Bloco de Esquerda no dia 16 de dezembro em Tondela.

Um chasco-preto a saltitar na saudade

|Luis Pereira|
Eu conheço-o por chasco, os meus amigos dos ninhos conheciam-no por chasco e toda a gente da minha aldeia os conhecia por esse nome. Eram frequentes no caminho do rio, saltitavam de rocha em rocha e encontrávamos-lhes os ninhos nos moinhos abandonados que mantinham as ruínas junto ao poço da ponte.

Na minha infância sabia-os distinguir perfeitamente, desde os chascos pardos aos chascos pretos, passando pelas “rabitas” (Erithacus rubecula) , “ lavandeiras” (Motacilla), “escravideiras” (Carduelis spinus) e um rol de outros pássaros e passarões que apenas conheço pelo nome popular, uma aprendizagem empírica que resultou dos interesses da minha infância.

Os miúdos da minha aldeia gostavam de ninhos. Eu tinha uma paixão sem limite por ninhos. Foi o meu pai que nas videiras do Miscaral ou a caminho desse mesmo sítio me ensinou tantos e tantos locais de nidificação, alguns talvez de chasco, mas tantos outros de pintassilgo, de melro ou de rola. Lembro-me muito bem das recomendações que na altura me dava. Os ninhos são apenas para observar. Para observar com muito cuidado e nunca tocar nos ovinhos porque as mães podem “enjeitar”. E quanto tempo eu passei nessas observações! Só em observações, porque para mim um ninho era um pedacinho de palha forrado de conforto para fazer crescer vidas sagradas!

Adorava acompanhar o processo todo, desde a altura em que o passaroco iniciava a sua árdua tarefa de construção do ninho, até à partida aventureira das crias tontas que se esparramavam no chão em pequenos voos rasantes, numa aprendizagem trapalhona e perigosa, onde sobressaía a preocupação quase louca da fêmea chocadeira que empoleirada o mais proximamente possível, assim acompanhava o início arriscado da vida dos filhotes.

Na casa de meus pais nunca houve pássaros encerrados em gaiolas. Em minha casa não há gaiolas nem pássaros privados de liberdade. Os pássaros são para pintarem as paisagens num arco-íris de som e de cor. Foi a “céu aberto” que aprendi a observá-los e nunca precisei de binóculos e muito menos de telescópios.

Quando chegava a primavera eram os “marantéus” (Oriolus Oriolus) da cor amarela inconfundível que mais me fascinavam, principalmente os seus ninhos inacessíveis, pendurados nas pontas dos ramos, em forma de cesta, nas nogueiras grandes e antigas que existiam na aldeia. São já tão raros os “marantéus” nos socalcos do Douro! Um dia destes vi-os de raspão na foz do Tua, num laranjal antigo que ainda existe a jusante da barragem.

Hoje, quando sozinho e sentado num pedaço silenciado da paisagem duriense, sei identificar pelo pio, ou pelo canto, a maior parte das espécies voadoras sobreviventes nesse ecossistema. Percebo quem são, se estão em fase de cio, ou se já estão na fase do choco. É um saber quase natural, espontâneo, que me flui com naturalidade devido à aprendizagem vivenciada do tema que fiz enquanto menino.

Este é o melro, esta é a mejengra (Capeia Arraiana), esta é a pêga (Pica pica), este é o gaio (Garrulus glandarius), esta é a rabita (Erithacus rubecula), esta é a escravideira (Carduelis spinus) … sei-os a todos só pelo simples piar ou por um pequeno trecho de canto que me chegue de uma oliveira ou de uma outra qualquer árvore ou arbusto, sem precisar de vê-los. Mas vê-los, a pular traquinas entre a espessura da folhagem, é para mim extremamente belo e pacificador!

Confesso que os chascos nunca me despertaram grande interesse. Eram comuns, irrequietos e mais esquivos. Os castanhos, castanhos; os pretos, em preto. Para preto tinha o melro, que era muito maior, mais sociável e bonito devido ao seu bico de ouro a assobiar vaidoso na figueira grande da horta florida a caminho da fonte.

Mas o “chasco-preto”, tão comum na minha meninice, tornou-se agora numa ave rara, considerado como criticamente em perigo. Soube-o ocasionalmente num artigo sobre biodiversidade que me chegou às mãos. Caramba, como cresci! Como me afastei de mim! Crescer é mau. A minha filha mais nova diz-me que não quer crescer e acho que tem toda a razão! O crescimento afasta-nos da verdadeira natureza, da pureza humana, das coisas belas e essências! Se eu tivesse ficado na minha infância já tinha reparado que o Chasco-preto não aparece! Há muito que não aparece! Há anos que não faz ninho nas ruínas do moinho do poço da ponte. E eu, que cresci para ter uma vida de adulto normalizada, formalizada, formatada, “uma vida séria e responsável”, não dei por essa essencialidade, não dei conta que o Chasco-preto foi morrendo, morrendo, morrendo …

Eu, que não dei muita atenção ao Chasco-preto durante a minha infância, sinto agora dele uma falta tremenda. Preciso revê-lo, falar-lhe dos seus antepassados a quem não dei atenção devido à banalidade da cor preta, onde espreitava um rabito branco para lhe amenizar o breu. Preciso dizer-lhe que foram os homens da minha terra que os foram aniquilando aos pouquinhos, com os herbicidas e outras modernices que não existiam no meu tempo de convivência com o Chasco- preto, o mesmo chasco que comia os insectos das ervas rasteiras dos bardos mondados nas vinhas de meu pai.

Ao continuar a leitura do artigo reparo que ele ainda não abandonou completamente a região. Ainda há um enclave, um pequeno enclave do meu Douro onde o chasco-preto conseguiu encontrar refúgio. Mas são já tão poucos os da sua espécie que mal se topam, que mal se vêem. Em Trás-os-Montes, lê-se no artigo, “a zona do chamado Douro Vinhateiro, na região de Carrazeda de Ansiães, é favorável à observação desta espécie, que também ocorre um pouco mais para montante, na zona de Barca d’Alva”.

Talvez um dia se permita que o Chasco-preto volte a conviver connosco. Talvez. Talvez quando surgir uma nova consciência ambiental e a terra voltar a ser granjeada com a naturalidade das mãos e sem as intrusões da química.

Houve, em tempos já tão longinquos, um Chasco- preto a povoar-me a infância. Hoje há apenas uma recordação… a recordação de um pássaro antigo a saltitar na saudade.

Como pode a Arqueologia minorar os impactos resultantes das alterações climáticas?

Aprender com o passado. Este é um conselho múltiplas vezes referido, mas muito poucas vezes colocado em prática. Mas não é isso que faz uma equipa de investigadores da Universidade de Washington, que está a utilizar  o conhecimento sobre o passado para precaver impactos ambientais do futuro. 

Arqueólogos desta universidade americana estão a desenvolver uma nova investigação que utiliza a tecnologia de sofisticados computadores para criarem modelos de aprendizagem capazes de explorar a forma como as sociedades do passado responderam a processos diferenciados de mudanças climáticas.

Esta investigação estabelece uma ligação entre os antigos climas e dados arqueológicos, com o objetivo de poder ajudar as comunidades agrícolas atuais na identificação das culturas mais adequadas e estratégias adaptativas às novas condições climáticas, sobretudo em áreas geográficas mais diretamente ameaçadas pela seca, por condições meteorológicas extremas e por outros desafios ambientais.

Segundo os mais diretos responsáveis por esta nova investigação, Jade d’Alpoim Guedes, Stefani Crabtree, Kyle Bocinsky e Tim Kohler, que utilizam técnicas de análise territorial baseados nos mais recentes avanços tecnológicos da modelagem computacional, esta técnica permite ”uma capacidade de análise sem precedentes para identificar o modo como as sociedades do passado reagiram a situações de alterações drásticas do meio ambiente em que viviam”.

O trabalho destes investigadores, e particularmente de Tim Kohler, tem sido considerado como pioneiro, tendo já sido desenvolvidos modelos para estudar interações entre povos ancestrais do sudoeste americano com o seu ambiente.

O Projeto Village Ecodynamics Project , lançado em em 2001, é disso um eloquente exemplo. Nele, os investigadores tentam perceber variantes de reação e comportamento humano face a níveis de precipitação, tamanho de uma população e esgotamento dos recursos disponíveis.

Ao comparar os resultados de modelos baseados em dados e evidências arqueológicas reais, os arqueólogos são capazes de identificar as condições e as circunstâncias ambientais que condicionaram as antigas civilizações ao redor do mundo em períodos de crescimento e em períodos de declínio. Em termos de exemplo, um dos seus modelos demonstra como a seca, a caça e a competição entre as populações no antigo Egito levaram à extinção de muitos mamíferos de grande porte à volta de 3.000 aC, ou como, num outro modelo, se tenta perceber como os padrões de habitat no Tibete estão a afetar a erosão.

Estes modelos são como um jogo de vídeo, no sentido de que é você que pode programar certos parâmetros e estabelecer regras para gerar uma simulação e depois deixar os seus agentes virtuais jogar para que esses diferentes parâmetros cheguem a uma conclusão lógica. Esta técnica permite-nos simular uma previsão da eficácia adaptativa de diferentes culturas agrícolas face a novas condições ambientais, mas também nos permite simular a forma como as sociedades humanas podem evoluir e impactar com o meio ambiente“, refere um dos investigadores ligado ao projeto, o arqueólogo Stefani Crabtree.

A distribuição de espécies ou a modelagem de parâmetros para estudar nichos agrícolas regionais é outra tecnologia que os arqueólogos estão a utilizar para prever onde as plantas e outros organismos cresceram bem no passado e onde elas podem ser úteis nos dias de hoje. Bocinsky e d’Alpoim Guedes estão a usar esta técnica para identificar culturas pouco usadas ou, em alguns casos, completamente desaparecidas e que poderão ser úteis em áreas onde o clima se está a tornar mais quente, em áreas afetadas pela seca prolongada ou em situações de dificuldade de abastecimento alimentar.

Uma dessas culturas, que identificaram a partir de dados arqueológicos, é uma variante de milho altamente tolerante à seca que os índios Hopi do Arizona adaptaram ao longo dos séculos para crescer e prosperar produtivamente em solos pobres.

E por isso, Kyle Bocinsky faz questão de salientar que os modelos estudados por esta equipa de investigação mostraram que “o milho dos Hopi poderá crescer muito bem nas terras altas da Etiópia, onde um de seus alimentos básicos, a banana da Etiópia, está a ser afetada por emergentes pragas e diferentes doenças resultantes de vagas de calor intenso. Cultivar o milho dos Hopi que é resistente à seca, em vez das culturas tradicionais, poderá, no futuro, tornar-se crucial para a sobrevivência humana em outros lugares afetados pela mudança climática“, sublinha Bocinsky.

Os investigadores também usaram um modelo de integração para uma agricultura de nicho a fim de identificar uma fonte de alimento alternativa viável no planalto tibetano.

Estes cientistas estão apenas a começar a explorar o potencial da modelagem baseada em dados recolhidos pela arqueologia e dizem que no futuro será cada vez mais importante ”a combinação do trabalho de campo da arqueologia tradicional com técnicas de modelagem baseadas em dados informáticos, de forma a que esta técnica ajude a gerir mais inteligentemente os nossos recursos, as nossas interações nos ecossistemas e evitar, desta maneira, erros passados a respeito da mudança climática“.

Trump e as alterações climáticas na Bacia do Mediterrâneo

|Luis Pereira|
A eleição de Donald Trump para presidente dos EUA constituiu um autêntico abalo no mundo dito democrático e civilizado. Contudo, passados alguns dias sobre a sua eleição, muitos são já aqueles que pensam que os absurdos saídos da boca do empreiteiro de Nova Iorque não passam disso mesmo: absurdos proferidos dentro de um contexto e de uma estratégia para causar impacto em muitas hordas de descontentes americanos cujo voto permitiu a eleição de um “protofascista”, no dizer de muitos analistas que veem em Trump um perigo eminente para o equilíbrio mundial.

A ação futura de Trump é uma verdadeira incógnita, mas haverá, com toda a certeza, muitas matérias onde o multimilionário americano vai recuar para não colocar em risco a periclitante harmonia da sociedade americana. Há, contudo, uma vertente onde Trump não parece muito disposto em retroceder. Essa vertente é o Ambiente, sendo que o Presidente eleito dos Estados Unidos da América já avisou que não vai cumprir o “Acordo de Paris”, prevendo-se que nas questões ambientais leve até ao fim a sua obsessão e o que dita a sua profunda ignorância.

Numa altura em que o planeta precisa de viabilizar, com muita urgência, um conjunto de regras definidoras das taxas de emissão de CO2, aparece o responsável máximo do segundo país mais poluidor do mundo a dizer que saltará fora desse acordo e que vai continuar a poluir em função das necessidades reais da sua indústria e dos interesses petrolíferos de alguns Estados Americanos. O grande problema é que as consequências desta decisão afetarão o mundo inteiro, e na parte que nos toca o futuro ambiental não se prevê muito risonho.

As consequências das alterações climáticas na Bacia do Mediterrâneo será sentida principalmente na escassez de água doce, com uma esperada redução nos recursos hídricos disponíveis de entre 15 e 20% até 2050, noticiou recentemente a agência EFE.

Se não ocorrer uma redução drástica das emissões de dióxido de carbono durante as próximas duas décadas, as reservas de água doce do Mediterrâneo podem descer até 20% em meados do século. Esse decréscimo resultará de um aumento da temperatura que vai agudizar os períodos de seca no Mediterrâneo e no sul de Espanha e de Portugal.

Segundo Joel Guiot, um paleoclimatologia da Universidade Aix-Marseille (França), “o aumento da temperatura e a falta de chuva já estão a refletir-se em índices de menor produtividade das culturas e no declínio das unidades populacionais de alguns aquíferos”.

Segundo o especialista, que publicou recentemente um estudo na revista “Science”, nestes últimos anos a temperatura subiu 1,3 graus no Mediterrâneo. O estudioso detetou aqui uma subida de quase cinco décimos a mais do que a média mundial, que é de 0,85.

Este aumento de 1,3 graus não é linear em toda a bacia do Mediterrâneo, percebendo-se que umas regiões estão a ser mais afetadas do que outras. Nesse sentido, a pior zona é constituída pelo sul e leste da bacia mediterrânica, nomeadamente Espanha, Portugal, Norte de África e Médio Oriente.

Segundo Joel Guiot, caso uma queda drástica das emissões de CO2 não ocorra nos próximos tempos, e se esta subida de temperatura não for mantida abaixo de 1,5 graus, a metade sul da Espanha vai transformar-se num deserto até ao final deste século XXI. A maneira de evitar este autêntico desastre ambiental seria, de acordo com o cientista francês, travar as emissões globais de CO2 até meados do século. “Em 2050 cada tonelada de gases de efeito estufa deve ser compensada por sumidouros naturais, de forma a que se possa manter o planeta sob controle“, disse Guiot, citado pela agência noticiosa EFE.

Uma outra consequência do imediato é a elevação do nível do mar. Também aqui o cientista francês refere que se não forem desenvolvidos os esforços necessários dos países poluidores para reduzir as emissões, a temperatura global vai mesmo subir acima de 1,5 graus e entre 2030 e 2050 o planeta já terá ultrapassado o limite máximo dos dois graus em relação à era pré-industrial. A partir daqui tudo se desenvolverá em catadupa. Ao ultrapassar-se este limite máximo de dois graus haverá um aumento do nível do mar mediterrâneo em cerca de dez centímetros, facto que terá consequências dramáticas .

É para precaver uma situação como esta que o Acordo Climático de Paris, assinado em 4 de novembro deste ano, marca o “caminho certo” para que o planeta entre num processo de “descarbonização” das suas economias; uma necessidade urgentíssima e que deverá ocupar as preocupações de todos os países na primeira e segunda metades deste século. Contudo, a eleição de Donald Trump poderá colocar em risco este objetivo global e caso os EUA não respeitem o acordo, a nossa casa comum poderá caminhar para um negro processo sem retorno.

MAAT para uns, Xeque-mate para outros

|Luis Pereira|
A inauguração do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT) já foi feita em Lisboa. Mais um grande museu para a capital, uma obra da Fundação EDP que está a encher o olho a todo Portugal. 

Dizem que é lindo. Não sei. Pelo que vejo na televisão é uma obra com uma arquitectura exterior que gosto. Quanto ao museu em si não me prenunciarei enquanto não o visitar e conseguir perceber alguma eficácia cultural na mensagem que tenta transmitir.

Sabemos que o dinheiro para a construção deste aparente novo pólo de atractividade lisboeta provém da EDP, uma empresa nacional de âmbito privado e que agora até é maioritariamente detida por capitais chineses. Até aqui nada de anormal. A EDP faz os museus que quiser, promove os movimentos culturais que achar convenientes para a construção social da sua imagem, ou recorre aos artifícios ou ofícios mais expeditos e eficazes para se promover enquanto empresa privada que encontra nos recursos colectivos as sapatas do seu poderio financeiro e económico.

O que eu acho anormal, e sinceramente repudio, é que esta demonstração de fanfarrice feita na capital resulte do sacrifício dos recursos naturais do interior. Ainda recentemente se aniquilaram dois valiosos vales de recursos naturais e patrimoniais no coração de Trás-os-Montes, e ontem promoveu-se na capital uma demonstração luxuosa da faustosa EDP.

Não deixa de ser irónico o facto de no interior, na província, a EDP colocar os intervenientes locais de chapéu na mão com operações de cosmética que pingam alguns "eurozitos", mais parecendo uma instituição de caridade do que uma empresa que tem uma enorme dívida de responsabilidade material e moral para com as regiões que ficaram lesadas com os empreendimentos que geram os lucros que permitem a construção de MAAT’s e outras obras afins.

Muitos dos milhões de euros da EDP são gerados em Trás-os-Montes, mas aqui atribuem-se uns “fundozitos” para distribuir pelo ambiente ou pelo património, ou então lançam-se uns "programazitos" para pequenos ou muito pequenos empreendedores só para calar os críticos, esses "fundamentalistas" que insistem em apontar o processo de destruição sem preço que foi cometido aos recursos naturais da região.

Lá, onde tudo converge para o engrandecimento de uma megalómana capital, a EDP promove mais um museu de betão, que por sinal até é grande, lindo, apelativo, atractivo, evoluído e uma gigantesca obra de exibição e de demonstração de poder; enquanto aqui, onde tudo converge para a decadência e a pobreza, promovem o betão mas para destruir os nossos museus naturais, numa permissão tão deseperante, quanto profundamente injusta e irracional.

MAAT é um nome pomposo para um museu, porque envolve as enormes palavras Arte, Arquitectura e Tecnologia; mas Maat é também o nome de uma deusa da antiga civilização egípcia que ordenava a justiça e a rectidão. Bem se vê que essa deusa não tem a região transmontana referenciada no mapa onde reina a sua protecção!

Despovoamento, abandono, solidão

|Luis Pereira|
Todos estamos convencidos do contrário, mas o tempo derrete a matéria mais áspera que a natureza criou. E talvez por isso em todas as épocas emudecemos as casas onde viveram e vivemos, até as transformarmos em pedaços de quase nada , como em quase nada se transformam as vidas que lhes deram as antigas formas. Hoje, agora, no instante, o tempo não nos diz nada, porque estamos sempre ocupados a olhar o circo da vida.

Mas perante uma aldeia derruída sentimos o movimento dos fantasmas e o arfar das pedras onde cristalizaram os últimos suspiros dos homens e das mulheres que a habitaram.

Depois há o cemitério, esse último reduto e guardião da história, mas quando abandonado um local, abandonamos também o culto dos mortos. E a pouco e pouco também as lembranças desses homens e mulheres de outrora. Morremos. É assim que se morre. É assim que “desnascemos”. E já como espectros sem áurea, agonizamos na memória dos vindouros e finalmente findamos.

Hoje estou aqui, perante casas que já não o são. Um moinho sem nada, um engenho já podre. Apeteceu-me aqui vir para imaginar, para ver as ruas com gentes desenhadas na loucura desta perseguição que faço ao passado. Não conheço ninguém, nunca conheci ninguém e já não há quem se lembre de quem aqui tenha vivido.

Mas posso observar as pessoas, ouvi-las, ver aquele grupo de crianças que brinca à sombra do castanheiro; o homem que passa de enxada ao ombro, a mulher de caneco sobre um rosto de xisto. E de repente os sons, todos os sons que ouvi logo que parido pelas seis horas de uma tarde de abril. E todos aqui estão, como desabrochados de um filme antigo mixado com o choro de crianças, o balir de ovelhas e o latir de cães engasgados de fome. Até quase respondi ao simpático “boa tarde” daquela mulher que passou de lenço na cabeça e rosto granjeado a sol e geada.

O silêncio entranha-se-me no corpo, encharca-me os poros do cérebro. São agora sete horas da tarde. Ecoa por todo o lado este silêncio medonho, em sereno conflito com os debilíssimos gemidos que brotam de entre os derrubes das pedras onde sucumbe o passado. Esta aldeia teve tanta vida, tanta gente e hoje é isto: silêncio, arqueologia!

Vim aqui porque gosto de ler. Sempre os livros. Sempre os livros presentes e a determinar esta minha banal e insignificante existência. Os livros, esses “malditos objetos” que não me deixam sossegar o pensamento. Vim aqui porque precisei de assemelhar. Precisei de comparar a minha imaginação, a realidade destas ruínas, com a imaginação e a realidade vertida no magnifico livro de Julio Llammazares, onde se fala de extinção, de esvaziamento, de finitude.

“A Chuva Amarela” é já um livro antigo que estava ancorado na fila das intenções de leitura que tenho para fazer. Finalmente deitei-lhe mão e logo ao fim das duas primeiras páginas o monólogo do último habitante de um povoado abandonado do Pirineu aragonês prendeu-me a atenção. Também ele, esse tal último habitante, agora aqui está, em Gavião, mas com o nome de José.

José olha-me daquela porta entreaberta, com os pés assentes no derrube do telhado que aconchegou o seu lar. José fala-me da solidão. Foi o último a partir. Há sempre um último a partir. Resistiu. Resistiu o quanto pôde e já sem sequer poder continuou a resistir. Também enlouqueceu com o silêncio sepulcral que lhe encheu os últimos anos da vida. José fala-me agora da solidão que está em toda a parte desta região e que da região apenas mantém a prosápia do seu nome. Fala-me desta solidão que impregna as pessoas, as casas, as palavras, as árvores, o sol e as próprias sombras.

Em “ A Chuva amarela” José não fala só de “Ainielle”, fala também de nós, de Gavião, de Trás-os-Montes.

Por isso vim até aqui. Para confrontar, para sentir, para escrever. E enquanto o sol varre o rosto deformado da aldeia, as sombras vão lambendo lentamente Gavião. Depois, a pouco e pouco, surge o anoitecer. E agora, “A chuva Amarela” impregna-se na minha alma e esta pardez granítica acaba por me desassossegar.

A casa é como um ninho

|Luis Pereira|
Quando chego o cenário é sempre o mesmo: abandono. Corro como andarilho estas aldeias quase nada onde testemunho um processo lento e sedimentar de extinção. Casas derruídas. Casas quase envergonhadas por já não servirem de albergue a sentimentos e dores, a alegrias e privações.

Empurra-se uma porta e do interior nascem resquícios de vidas. Em alguns casos as pilheiras continuam com os púcaros de barro de onde sequiosos lábios deglutiram a água fresca da Fonte dos Cavalos.

O sobrado ruinoso, apodrecido, mistura-se já com o musgo e a taipa, tudo num amontoado de inertes materiais a apodrecer com os reles artefactos que ficaram esquecidos no tempo da partida. Aqui um pedaço de barro preto, ali uma tigela, e mais além uma bilha e duas talhas de barro já sem proveito. Está tudo ainda inteiro, mas quando a outra parte do telhado sucumbir, tudo se há-de metamorfosear em lixo, sem préstimo ou valor. Até mesmo as pedras das centenárias paredes desta casa se hão-de amontoar, cansadas de resistir à ausência de um aconchego interior.

A casa do Nordeste está quase morta, e com ela está a morrer um cibo do nossa alma. Houve tempo em que a casa nordestina era a célula que organizava a estrutura económica e social dos núcleos aldeãos, encerrando em si uma linguagem ilucidativa sobre um característico modus vivendi.

A arquitectura tradicional nordestina exprimia um certo pragmatismo existencial, valorizando factores puramente funcionais, em detrimento de superfluidades sem qualquer aproveitamento prático.

Mas esta casa está hoje praticamente desabitada, porque o mundo rural, o mundo agro pastoril, o mudo do bucolismo e dos ciclos agrícolas já quase também não existe.

É adquirido como provável que as estruturas habitacionais tradicionais que pontuam e elaboraram o cerne da aldeia do nordeste português, tenham a sua ascendência arquitectónica em modelos que vêm desde o período romano. A casa de um só piso resulta de uma relação do homem com o espaço de exploração agrícola, e esta estava quase sempre articulada com um núcleo familiar baseado numa economia de subsistência.

Da casa térrea a arquitectura vernácula parece ter evoluído para a casa de dois pisos, mais difundida durante a Idade Média, e que organiza já espaços em diferentes cotas com comunicação facultada por acessos assentes em escadas exteriores. O rés-do-chão era destinado às “lojas”para o gado, à arrumação de alfaias, aos silos, ou à adega; no piso do sobrado arranjava-se o espaço de forma a fazer face às necessidades funcionais e sociais do agregado familiar. Tanto num caso como no outro, a casa rural do nordeste exprimia um significado cultural de linguagem ecológica, baseada no aproveitamento racional de materiais que o meio ambiente proporcionava.

Mais do que em qualquer outro caso, este tipo de modelagem volumétrica do espaço define a habitação como uma unidade orgânica e integrada dentro do ambiente físico, satisfazendo necessidades funcionais inerentes quer à produção material, quer ao sistema das relações sociais e culturais. Por isso mesmo, Manuel Maria Diogo considera esta arquitectura como “pragmática e de alguma maneira exacta, porque nela tudo obedece a um motivo, sem aditamentos supérfluos e em função de uma utilidade perfeitamente incluída no núcleo onde se constrói e no espaço físico onde se suporta”.

A casa do nordeste exprime, melhor do que qualquer outro documento, a materialização da natureza; ou melhor, a objectivação e concretização harmoniosa da relação homem/meio. E a sua identidade e originalidade residia, precisamente, no aproveitamento dos materiais disponíveis numa proximidade espacial que não implicasse o pagamento de força de trabalho que o modesto camponês da altura não podia suportar. Da conjugação desses factores resultou a operacionalidade, a simplicidade e a beleza da casa nordestina.

Mas essa casa, actualmente, vai dando lugar a outras construções. Essa casa é hoje um testemunho caído de um tempo já sem existência. É hoje o símbolo do abandono. É uma casa arruinada, decadente, sem vida, com um semblante tão murcho como os olhos prostrados dos velhos que procuram as carícias do sol no largo soalheiro da Fonte dos Cavalos.

Museus e Cultura: a ligação que falta

|Luis Pereira|
Desde cedo se pode ser formatado pela ideia de que os espaços museológicos são lugares de penumbra e de coisas velhas, onde não se pode falar, onde não se pode tocar, onde não se pode sorrir.

E por ser tão sisuda essa ideia de que um museu é como um cemitério, onde apenas mora o silêncio e as memórias de um tempo passado que se invoca em legitimação de tudo o que já foi, é que a maioria da nossa população provavelmente entende estes espaços como pouco significativos ou de pequena importância.

No fundo, uma grande parcela da nossa sociedade encara um museu como uma coisa pouco interessante mas, enfim, talvez necessária. Pouco interessante, porque a maioria das pessoas nunca lá vai, nem pondera algum dia lá ir; necessária porque apesar de tudo permite alimentar um certo ego do ser-se. Do ser-se de dentro de um grupo, de ser-se igual ou consciente da partilha de certos vectores assumidos como comuns a uma identidade, mesmo que essa identidade não se consiga descodificar nos seus conceitos mais elementares e muito menos explicar-se.

Poderíamos gerar uma interminável discussão sobre as causas que estão na origem do desinteresse social do nosso povo pelos museus, enquanto espaços identitários e de preservação da cultura e da memória das comunidades, mas certamente que esta seria uma daquelas conversa que nos remeteria para um "saco sem fundo", onde as “doutas” conclusões correriam o risco de ser mais abundantes do que as razões mais mundanas, objectivas e verdadeiramente reais que estão na origem de tal problema.

Na verdade o que falta é essa atitude rotineira e quotidiana de conceber um museu, ou qualquer outro equipamento cultural, como um espaço de normalidade, um espaço criador e dinamizador de riqueza, um espaço criador de emprego e de oportunidades, um espaço de aprendizagem, de brincadeira, de convívio e de partilha Eu que tenho por hábito analisar os fenómenos sociais e culturais mais pelo lado empírico do que propriamente pelo lado teórico e/ou retórico, concebo para mim que a causa mor desta questão reside na pátria. Ou seja, reside nessa nativa tendência de considerar a cultura como um atributo de enfeite, como um "snob" floreado que é colocado sempre nas orlas do Orçamento de Estado e dos desinteresses da maior parte das autarquias locais.

Tenho para mim que se a cultura*, - pelo menos ao longo das quatro décadas em que fomos construindo esta nossa sociedade democrática -, tivesse auferido, vá lá, e para ser pródigo no idealismo, de 2,5% do valor total de cada Orçamento de Estado, hoje esta realidade seria completamente diferente e o país também. Teríamos um povo muito mais instruído, mais exigente, mais cívico, mais crítico, mais erudito e, consequentemente, mais visitantes ao nosso património com uma mais perfeita consciência do papel cultural, social e mesmo económico dos museus e de todos os outros espaços similares que representam e respondem pela nossa herança material e imaterial.

Elencada a principal razão deste problema que me parece não ter uma solução no imediato, a curto ou a médio prazo, deve ainda sublinhar-se que a escola, quer a pública, quer a privada, também pouco tem ajudado a modificar, a renovar ou a reabilitar esta ideia antiga e passadista de museu. Para sermos mais objectivos, a escola pouco se interessa por museus e quando algum professor se lembra de visitar algum é muito provável que a iniciativa se transforme numa grandiosa e frustrante seca para os alunos.

E isto porque falta o elementar. E o elementar é a educação sustentada por hábitos culturais que se iniciem logo desde o berço, em casa, e depois se prolonguem pela escola, pelos diversos processos formativos e por toda uma vida inteira.

Na verdade, o que falta é essa atitude rotineira e quotidiana de conceber um museu, ou qualquer outro equipamento cultural, como um espaço de normalidade, um espaço criador e dinamizador de riqueza, um espaço criador de emprego e de oportunidades, um espaço de aprendizagem, de brincadeira, de convívio e de partilha; enfim, um espaço educativo, formador, guardião e gerador de identidade e  de orgulho comunitário.

O que falta, a bem dizer, é cultura*, mas é também justo sublinhar que essa falta de cultura não é um problema cuja resolução dependa apenas da alteração do comportamento e da atitude individual de cada um dos cidadãos. No fundo, esta questão resume-se a uma circularidade de causas com origem fundamentalmente política e cuja reincidência gerou um conjunto de nós cegos que agora são difíceis de desatar.

*A palavra cultura não é aqui, e na maior parte do texto, empregue com um significado que envolva o seu mais puro conceito antropológico, sendo maioritariamente empregue para expressar o significado complexo de gestão política, formativa, social e de erudição que a palavra também possui.

Os pensamentos são como as cerejas, agora que estamos no tempo de fazer as hortas

|Luis Pereira|
Quem não gostaria de abandonar o décimo quarto andar do prédio onde habita por apenas 5 minutos para vir colher uma alface à horta que cresce viçosa ali ao lado? Pouca gente o consegue fazer, mas no mundo urbano há cada vez mais um maior número de pessoas que o faz, simplesmente porque cultivam uma pequena horta no sopé do prédio onde habitam.

Em Portugal o número de pessoas que praticam uma agricultura urbana sustentada ainda é muito residual, mas a Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO) estimou que em 1998, em todo mundo, cerca de 800 milhões de pessoas praticassem a designada agricultura urbana, o que representa 15 por cento de toda a produção de alimentos actualmente processada a nível do nosso planeta.

O fenómeno das hortas urbanas não é recente e acompanhou o processo de industrialização e urbanização crescente a que a Europa foi sujeita desde o séc. XVIII. Foi nos países da Europa do norte que a actividade se expandiu, principalmente a partir de meados do século XIX. A Alemanha e a Dinamarca foram e continuam a ser os dois países pioneiros neste tipo de agricultura urbana.

Em Portugal o fenómeno foi sempre muito residual, mesmo nos principais centros urbanos como Lisboa e Porto, principalmente por serem duas cidades com baixos índices de industrialização e porque até há poucas décadas atrás estavam marcadas por um ambiente rural que se quedava muito próximo do tecido urbano propriamente dito.

A asfixia dos bairros residências, o crescimento desordenado que com maior ou menor intensidade se processou nos corpos urbanos das nossas cidades, mesmo nas de menores dimensões, comummente designadas como cidade de província, levou ao aparecimento de alguns exemplos, embora sempre muito residuais, de hortas urbanas.

A actividade, diga-se, também nunca foi muito apoiada pelo poderes políticos instituídos. Gonçalo Ribeiro Telles, um conhecido arquitecto paisagista do nosso país, e uma das principais vozes que defende a instalação de hortas familiares nas grandes cidades faz questão de sublinhar que, por exemplo, na Alemanha «uma pessoa jovem recebe, não dinheiro para cultivar, mas sim capital para se instalar; geralmente, esse jovem é adoptado ou adopta um casal de idosos, vai viver na sua propriedade, e faz o que esse casal costumava fazer no que respeita à agricultura». Esta é uma forma eficaz de transmitir os saberes dos mais velhos para os mais novos, ao mesmo tempo que existe uma clara compensação social ao promover este convívio inter-geracional.

Se nos debruçarmos sobre a realidade portuguesa deparamos ainda com uma incipiente e tímida experiência neste domínio. Ribeiro Telles radica o ainda pobre movimento da agricultura urbana em factores de ordem sociológica e mental. Diz o arquitecto que actualmente, na actual conjuntura sociológica, «as pessoas que estão instaladas na cidade nunca iriam aceitar essa mudança para o ambiente rural» porque, frisa o arquitecto, «em Lisboa, as pessoas estão convencidas que a paisagem urbana tem de ser constituída por prédios, e que o resto simboliza um atraso», sublinha.

Contudo, o fenómeno começa a ser perceptível, com maior ou menor intensidade, em diversas cidades portuguesas. Cada vez mais o poder local concebe estes espaços de agricultura familiar como uma forma sustentável de gerir a malha urbana, uma vez que permite multiplicar e fazer proliferar mais espaços verdes sustentados directamente pelos habitantes, uma requalificação mais abrangente da paisagem urbana e a redução de emissões químicas nocivas para o ambiente.

Os novos adeptos das hortas urbanas são geralmente pessoas ligadas a uma infância passada no campo; pessoas que têm a necessidade económica de complementar com um recurso extra o abastecimento de frutos e vegetais da unidade familiar ou ainda pessoas com altas preocupações ecológicas e ambientais e mesmo sociais, uma vez que a horta urbana poderá constituir-se como um excelente instrumento para fomentar projectos de inclusão social, sendo, simultaneamente, susceptível de desenvolver entre os cidadãos uma sólida consciência ambiental.

Pensa-se que o fenómeno das hortas urbanas possa crescer de forma exponencial nos próximos anos, tendo em conta os problemas económicos e financeiros que caracterizam a actualidade e, por outro lado, os medos cada vez mais crescentes em consumir produtos hortícolas de crescimento padronizado e sujeitos a padrões e lógicas de produção altamente formatados.

De qualquer  forma  o conceito e a acção com vista à implementação de uma produção agrícola sustentada tem que inevitavelmente se constituir como o caminho do futuro. É inevitável e urgente abandonar de forma definitiva as prateleiras dos super e híper mercados, onde os produtos agrícolas são apresentados de forma muito atraente, mas com um ciclo de produção e crescimento assente numa massificação química com repercussões desastrosas no ambiente e na nossa saúde.

Por outro lado é importantíssimo valorizar o trabalho das pequenas unidades de produção familiar e tornar viável o pequeno investimento na agricultura das pequenas propriedades agrícolas de que a nossa região é prolífica. Se não faz ou não tem possibilidades de fazer uma horta, então compre no pequeno produtor, aposte nos produtos que saem das entranhas da terra que você vê cultivar, quantas vezes de forma ainda tradicional, correcta e sustentavelmente, por pessoas idosas e que necessitam de um complemento adicional de receita para o seu equilíbrio financeiro.

É por isso que o Decreto-Lei n.º 85/2015 ontem publicado em Diário da República se constitui como de fundamental importância, não só para os  produtos vegetais, como para todas as restantes produções que até aqui sofriam de uma grande incapacidade de escoamento, avassaladas por imposições e restrições e mais restrições.

A iniciativa em criar os designados mercados de proximidade, também chamados mercados locais de produtores, constitui uma oportunidade para todos nós, habitantes do interior, para mudarmos os nossos hábitos de consumo, beneficiando ao mesmo tempo a nossa carteira e a nossa saúde.

Esperamos agora que as iniciativas da sua implantação se multipliquem em cada concelho, de forma a podermos usufruir de bons e saborosos produtos.

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