Gravuras da Fraga do Pousadouro (Grijó de Parada, Bragança)

|António Orlando dos Santos|
Acompanhei, há tempo (30.nov.2017), numa visita de estudo, os alunos e professores da Universidade Sénior de Rotary de Bragança. Integrava o grupo uma colaboradora desta instituição, também arqueóloga, de nome Clara. 

Vim a saber, posteriormente, que era a Arqueóloga da Câmara Municipal de Bragança. Fazia o favor de nos acompanhar para nos dar a conhecer, primeiramente, as epígrafes romanas que se encontram em Grijó de Parada, inseridas na fachada principal da igreja e no cemitério e, uma outra, dupla, em casa de gente da aldeia que a disponibiliza ao interesse e curiosidade de estudiosos, como a Dra. Clara André.

Seguidamente, fomos visitar um sítio arqueológico que me era completamente desconhecido e ao qual, à primeira vista, não atribuí grande importância. Após as explicações da Dra. Clara, vi nitidamente o que estava, para mim, encoberto e que se fez em luz. Fez-se claro pelo discurso da Arqueóloga que, com conhecimento e paixão, nos pôs ao corrente da feliz ocorrência que levou o Dr. Luís Pereira a descobrir estas gravuras. Sedeado em Macedo de Cavaleiros, este Arqueólogo propôs-se ir a Grijó fazer um levantamento dos sítios com interesse arqueológico que se sabia existirem na localidade e arredores. Mas, deixemos, para já, a narrativa deste acontecimento e debrucemo-nos sobre a aula da Dra. Clara.

Numa viagem, relativamente curta e passado o cemitério, entrámos numa estrada de terra batida e encetámos a descida até ao rio. A utilização de um 4x4 do Director da Universidade Sénior tornou fácil o que parecia difícil e, assim, descemos quase até ao nível do curso de água. Todos, em grupo, fomos informados das dificuldades do acesso ao sítio. O caminho era apenas um carreiro irregular mas que foi vencido com dificuldade média. Parámos junto ao rio Sabor para nos reagruparmos e, seguidamente, partimos para a última etapa, depois de passarmos para a outra margem da Ribeira do Pousadouro. O sítio está a meia-encosta, numa rocha insuspeita que, aos olhos dos não iniciados, passa totalmente despercebida e tem como que uma falha, um hiato, junto ao solo, o que confere ao local o ar de abrigo, sobretudo para a chuva. Há, a cerca de metro e meio acima do solo, uma face da rocha que, não sendo cem por cento lisa, tem uma superfície com dimensões para que nela caibam imagens que hoje são difíceis de detetar a olho nu.

Não forneço as coordenadas do local porque não tenho delas conhecimento. Direi apenas que me pareceu estar a rocha voltada a nascente com parte direcionada a sul. Direi bem? Não sei. Sei apenas que há uma parte que, mesmo já sem a luz da manhã, era mais percetível aos nossos olhos. A Dra. Clara começou, então, a lição que me prendeu à pedra com todos os sentidos. Fez-nos ver que havia várias figuras ali representadas. No topo, apontando com um ponteiro, mostrou-nos o dorso de um cavalo muito bem delineado que virava a cabeça na direção do nosso lado direito.

Sobreposto a este, um outro cavalo, elegante também, e com o traço, que representa a barriga, de uma perfeição assinalável. Eu estava boquiaberto! Este espécimen é uma pequena obra de arte com a particularidade de lhe terem sido desenhados os cascos nas patas traseiras, coisa rara na arte rupestre. São, segundo a Arqueóloga, da idade das gravuras do Vale do Côa e remontam ao Paleolítico Superior. Ora, depois de nos ter mostrado os cavalos na sua beleza quase oculta, fez-nos ver, agora na Fraga Escrevida de Paradinha Nova, a gravura de um boi antigo que já não existe, pois o último exemplar morreu em 1627 na floresta polaca de Jaktorowka. Aqui chegados, é-nos fornecida a designação do bicho – auroque. O nome foi mencionado com uma leveza que, de tão agradável, me fez recordar não do dito vocábulo mas de algo que havia lido, há cerca de dois anos, num livro que me causou bastante interesse, obra de Ortega y Gasset, e que tem o título elucidativo de Sobre a Caça e os Touros. O livro está traduzido para português num labor bem conseguido, feito por José Bento.

Ora, Ortega y Gasset, na introdução ao seu trabalho, abre com o título “Ao enviar a Domingo Ortega o retrato do primeiro touro” e, na página 127, dá-lhe o nome de bosprimigenius, que era feroz. Diz, seguidamente, que os alemães lhe chamavam auerochs, que deu em auroque no seu aportuguesamento, e diz, também, que Júlio César e os romanos lhe chamavam urus. O assunto é levado muito a sério por Ortega y Gasset que lhe dedica um ensaio fascinante e afirma que os touros espanhóis, ditos bravos, que se apresentam nas touradas são descendentes dos auroques. Fascinante e insólita, tal afirmação!

Passei o fim de semana pensando no assunto. Não no facto de os touros espanhóis descenderem ou não destes atuais que têm a sua imagem disseminada por toda a Espanha e se vêem no topo de elevações, ao lado das auto-estradas ou autovias, todos negros e garbosos, recortados contra a luz ou a penumbra, conforme o tempo real em que os admiramos. Procurei na estante o dito livro de Ortega y Gasset e vi, logo nas primeiras páginas, o mencionado auroque que tão bem me havia soado.

Tive ocasião de dizer à Dra. Clara que era palavra, para mim, desconhecida mas da qual gostava, pois me soava a coisa bela e interessante. Seguidamente veio o tempo de pensar nos artistas que executaram este trabalho e a escolha do suporte e até a sua orientação para um ou dois pontos cardeais. Outra curiosidade é descobrir quem eram estes homo sapiens sapiens. Se as gravuras do Vale do Côa são contemporâneas daquelas executadas na Fraga do Pousadouro quer dizer que os seus autores teriam sido os mesmos indivíduos ou, no mínimo, indivíduos da mesma escola, o que equivale a dizer da mesma tribo que tinham vocação para tal desempenho nas artes. Aqui chegado, vieram-me à memória uns versículos do Antigo Testamento, Êxodo 31-2 a 5, que dizem Sabe que eu chamei nomeadamente a Besaleel, filho de Uri, filho de Ur, da tribo de Judá, enchi-o do espírito de Deus, inteligência e ciência e também engenho em toda a espécie de obras.

A imagem que opõe estas palavras aos desenhos que estes homens, muito anteriores a estes diálogos entre Deus e Moisés, levam-me a perguntar: seriam eles o equivalente a sacerdotes que, com a figuração dos animais, convocavam o que os transcendia para que os ajudasse a chamar a caça para campo favorável em que eles ou os designados caçadores pudessem assim abatê-los e – fazendo posteriormente o esquartejamento e a divisão das partes – se pudessem saciar e prosseguir a sua mobilidade contínua ou seriam antes sedentários que, havendo-se estabelecido neste território, tinham rituais, mais ou menos de submissão aos deuses que sempre o homem imaginou como seus protetores ou seus castigadores. A arte, por si só, é também uma hipótese. Confere-lhe uma aura de vanguarda no contexto intelectual que estava em formação no cérebro do homem, no tempo em que a caixa craniana estava a aumentar e, finalmente, o homem conseguia já usar a razão para continuar a sobreviver e tornar-se o Rei da Criação.

De algumas perguntas colocadas à gentil professora, obtivemos respostas concretas para questões concretas e também respostas que continham o desencanto da dúvida à mistura com outras que nos davam a quase certeza de nunca as conseguirmos saber. Sou mais optimista, e creio que, um dia, os estudiosos, por um acaso que ocorrerá sem que se espere, nos dirão quem eram e porque faziam estas gravuras os nossos antepassados remotos.

Da mesma maneira ocorreu a descoberta pelo arqueólogo do ex-Instituto Português de Arqueologia que, partindo de Macedo de Cavaleiros e havendo-se esquecido dos papéis que lhe serviam de base para o trabalho que executaria em Grijó, mandou a funcionária administrativa telefonar para alguém desta aldeia que pudesse dizer ao Presidente da Junta que ele estava atrasado e, respondendo um homem da terra, que conhecia cada lugar como só os nativos conhecem, lhe disse que sabia de um sítio que era capaz de lhe interessar. Foi lá o Arqueólogo com o popular e descobriu um sítio arqueológico, mas que sítio! Comparei-o com as primeiras linhas de um poema de Torga: Sei de um ninho…

Às vezes, os deuses estão connosco e ajudam-nos a apreciar a beleza da natureza e, às vezes, mostram a luz aos que porfiam para ver.

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