Relações dos chineses

Quando era pequena, lembro-me do quão fascinante me parecia ir a uma loja dos 300. As lojas chamadas assim na gíria, vá. Tinham outros nomes, mais ou menos normais, mas depois nas vitrinas estavam sempre números garrafais, que nunca chegavam a um conto (mil paus, jovens, são hoje 5 euros).

Estas lojas estavam à pinha durante a época do Natal e nas festas das localidades. Porque lá dentro havia de tudo, desde pechisbeques para servirem de presentes para a tia-avó que não se gosta ou uma taça para pôr salada. Reparem como, hipoteticamente, estamos a falar de um só objecto, o que tinha o sumo à variedade que anunciei.

Eu achava aquilo espectacular. Cada fila tinha coisas específicas. Era a secção de cozinha, da roupa interior, de casa de banho, de decoração e de bricolage. À entrada estavam as utilidades de mulher, como perfumes cheios de álcool, batons e vernizes. Havia, calhando, uma prateleira de higiene, onde se vendia Reglex, sem mais nenhuma opção.

O que me parecia incrível era a diversidade. Em boa verdade era uma espécie de centro comercial. Mais ou menos, pronto. Depois, o mercado asiático invadiu isto tudo. Muitos comerciantes sofreram, com a indignação à flor da pele, e cerraram portas. Passamos nesta fase a história das lojas de produtos baratos a ter uma nova designação: as lojas dos chineses.

Na realidade, apenas se mudou a nacionalidade dos lojistas. Porque, lá por dentro, as coisas estão bastante iguais, à excepção da musiqueta de fundo, que passou a ser cantada por mulheres de vozes fininhas como as dos anjos e umas letras muito parecidas à introdução dos desenhos animados dos anos 90. Na versão anterior não me lembro se havia ou não música de fundo. Provavelmente só tínhamos para ouvir a conversa da empregada de caixa com a vizinha do lado.

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A qualidade dos artigos continua a ser muito duvidosa. O que nunca nos impediu de comprar uns collants ou uma moldura, assim “às pressas”, dizemos, e “num desenrasque” a um preço “em conta”. Algumas coisas, ou todas, não esperamos (pois não?) que tenham um tempo de vida útil considerável. Assim, dali a uns dias já vamos ter que ir comprar mais do mesmo. O uso e o desgaste ali acusam rápido, e dizemos que, da próxima, mal aquilo se estrague de vez, vamos a um comércio a sério, da especialidade, e vamos trocar o artigo do desenrasque por um de bom material.

Mas, custa menos, está ali à mão, dá para levar mais uns collants, pelo sim pelo não, encontramos bugigangas que não sabemos bem para o que servem, apesar de terem um efeito hipnotizante, e, porque sim, levamos mais um bonequinho de colar no frigorífico, que é tão giro. Então, como nos fartamos de ver vantagens, optamos sistematicamente pela mesma solução reles. Uma altura, tive um tamagotchi, que era um animal virtual.

Estava na moda. Foi a única vez que tomei conta de um dragão. Os meus pais compraram-me um bom, que levava uma pilha de relógio maior, uma espécie de bateria. Não vos sei explicar. E, além daquilo ser caro, era diferente. Então arranjei um mais barato, que era um bicharoco não definido. E, que me lembre, não durou nada. Uma má troca que só percebi bem mais tarde, quando senti falta do meu dragão cor-de-laranja (o plástico era dessa cor, que na minha infância eram só brinquedos analógicos).

Em determinado ponto vamos achar que aquilo é que é. Que, mesmo comprando 3 vezes o mesmo artigo no espaço de um mês, estamos a fazer bons negócios. E ainda nos gabamos, pobres tolos, aos amigos. Foi o meu caso com o tamagotchi.

Tenho uma teoria que hoje vou partilhar com vocês: com as relações tendemos a fazer o mesmo. A inclinação actual é para que se cultivem relações sem qualidade, rápidas, porque estão ali à mão. Sabemos, numa clarividência que fingimos não ter, que essa ditosa relação não tem futuro. Nem nós lhe queríamos uma vida longa. Num ápice vai-se esgotar, vamos perceber que, afinal, raios, não encaixa no espaço para onde a tínhamos planeada, não é da mesma cor da nossa madeira da sala, e que metade das funcionalidades vinham já avariadas. Ou nós não sabemos funcionar com aquelas coisas, com instruções em letrinhas miudinhas, inclinadas e cuja língua à escolha mais parecida com a nossa é espanhol traçado com Google Tradutor.

O que vamos fazer? Vamos a uma superfície de competência declarada na aquisição de relações? Não. Vamos à mesma loja, procurar numa outra prateleira, porque agora aquilo está misturado e podemos não ter visto bem. Se calhar, no meio da tralha toda, está lá algo que nos interesse, de facto.

Ou então, que nos desenrasque.

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