A tempo inteiro

|Tânia Rei|
Em tempos imemoriais, cada um de nós havia de se especializar em alguma coisa. Só fazíamos aquilo, de forma absolutamente irrepreensível. Tínhamos a experiência de anos, de situações complicadas, que para as resolver não nos valeram livros nem tutoriais no Youtube.

Havia tempo, e percebia-se a real necessidade de ser alguma coisa, precisamente, a tempo inteiro. Claro que, como todo o bom português, podíamos ser versados noutras coisas, mas isso não exigia o tal tempo. Usávamos os sobrantes, o buraco do relógio em que queríamos descontrair, ou fazer coisas diferentes daquelas em que éramos extremamente bons.

Agora, tudo mudou, e deixou de haver essa disponibilidade. Quem mais perdeu foi o amor. Não há tempo para amar a tempo inteiro. Um amante a tempo inteiro é como a figura da dona de casa, que podia assumir esse papel, e abdicar de uma carreira para ser mãe, limpar a casa, ir ao salão de cabeleireiro às sextas à tarde e tomar chá com as amigas aos sábados antes de fazer o almoço, somente para reclamar da vida e, óbvio, contar as últimas do Luísinho e da Mariana. Esta figura só existe, e só existiu em boa verdade, nas telenovelas. Ainda assim, é uma analogia rápida.

Não temos tempo para suspirar de meia em meia hora por alguém. No máximo, uma vez por semana, e com hora marcada, como o chá com os amigas. Não temos tempo para imaginar a outra pessoa em situações promíscuas, durante as reuniões de trabalho aborrecidas. Não temos tempo para sorrisos parvos no trânsito, quando nos lembramos do sorriso da outra pessoa, que nos disse algo tão engraçado. Da mesma forma, não teremos sequer tempo para mandar um berro enfurecido ao automobilista que nos apitou. Ficou verde o sinal, e nós não vimos. "Nunca te deves ter apaixonado, ó palhaço!". Temos que ser trabalhadores, colegas, amigos, padres, mecânicos, personal stylist, festeiros, críticos, e ainda donas de casa (sejamos mulheres ou homens), e, quando der, ficamos apaixonados. Só um bocadinho, vá lá, que já é certo e sabido que, na manhã seguinte, temos que fazer. Não podemos ficar ali, a pingar mel.

Não há é tempo para gostar de alguém a tempo inteiro. Que disparate! Vamos gostando, quando a agenda assim o permite. Assim são as exigências do novo mundo, em que quem ficou a perder, além de todos nós, pois, foi o amor, que viu o horário reduzido, e nem tem um sindicato que lhe possa valer.

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN