O pobre Coração

|Tânia Rei|
Despidinho e indefeso, jaz, deitadinho numa cama tosca de palha, o pobre Coração.

Ao contrário da analogia bíblica, não há uma mãe zelosa, um pai adoptivo preocupado, nem sinal de estrelas, e muito menos senhores simpáticos que se fazem transportar de camelo, para dar presentes caros.

Despidinho, com os pés de fora, repousa o Coração, protegido apenas por uma reles cabana presa com cola barata, a sair por todos os lados, e uns farrapos verdes a cobrir alguns buracos, tudo comprado em conjunto numa qualquer loja de artigos chineses. O Coração foi criado para suportar todas as alfinetadas da vida. Um mártir, pois claro. E não fosse a capacidade de regeneração, todos morreríamos novos e insipientes.

Tanto cresce como se retrai, este Coração de que se fala. Incha sem grandes motivos, por coisas simples do dia-a-dia, banais. Perde o fôlego e volta a ficar pequenino quando algo não agrada, desilude ou irrita. Mas o Coração não é de lutas. Não. O Coração dá a outra face, e chora, ora em silêncio, ora em prantos dolorosos.

O Coração guarda toda a inocência que o passar largo dos anos permite. O Coração tropeça, mas rápido esquece o sangue a escorrer. Esconde a cicatriz, por mais feia que seja, puxando atabalhoadamente um remendo das calças, esfoladas nos joelhos. É solitário e pensa muito, sempre sozinho. Aprende sozinho, pois, e apesar da árdua caminhada nunca atinge a maioridade, guardando a jovialidade de um adolescente.

O Coração foi feito, em última análise, para nos roubar de uma existência sisuda, cadavérica e sem propósito. É o Coração que arranja, com pós mágicos e ofuscantes, motivos estapafúrdios para dar sentido a certas e determinadas coisas que fazemos.

Por vezes, como já disse, o Coração sofre, ai se sofre! Como nunca outro sofreu igual. Uma dor fininha, que fica na garganta, que fica ali a roer. Só que, ainda que haja adversidades sérias, nada mais importa para o Coração do que a etapa seguinte, que se adivinha mais feliz, que se avizinha de mudança.

E por isso, deitado de barriga para cima na andrajosa cabana, o Coração sorri, em tom de desafio. Não se lamenta, não se contorce de frio, não aperta o estômago com a fome. O Coração desvia ligeiramente a cabeça, para espreitar por um buraquinho da sua humilde residência, um que está tapado pelo falso musgo, e de onde se vê o céu, desenhado pelo Futuro, esse eterno mafioso, que parece só estar bem a pregar partidas. O Futuro não importa. Dali vê-se o céu. Um glorioso céu. E isso basta.

Na fila

|Tânia Rei|
Não há experiência social mais enriquecedora do que a que passamos as filas para a casa de banho.

Quer seja numa festa, numa semana académica ou num festival, mulher que se preze faz logo “mira” às casinhas de plástico perfiladas, para que, quando tivermos de as usar, saber o caminho sem gaguejo. Para os homens é tudo mais fácil. Já para as senhoras…

Convém ir para a fila antes de estar desmesuradamente aflita. É que é coisinha para demorar, porque parece que todas as mulheres presentes têm a mesma idade ao mesmo tempo, e é, por isso, bom ir razoavelmente descansada. Ainda antes de cravarmos uma amiga para companhia, importa também saber se não nos esquecemos de colocar na mala ou no bolso um pacote de lenços, dos de cheirinho ou normais, ou toalhitas húmidas, porque ninguém quer passar nas partes íntimas papel higiénico que, a existir, já rebolou em mais bactérias do que um piaçaba.

Aqui começa a experiência. É que nas filas para satisfazer as necessidades fisiológicas tudo pode acontecer. Um dos clássicos é a moça que nos avisa que “não há papel” (grande novidade), ou então que nos anuncia que “está tudo sujo”, ou que “cheira mal”. Podem, eventualmente, pedir um lenço de papel dos nossos, que vamos ceder, esticando o maço, para evitar qualquer contacto físico desnecessário.

Pessoalmente, as idas à casa de banho, que acontecem, pois, pelo menos em parelha, é a altura em que me apercebo que estou rouca, e, por consequência, que devo ter passado horas a falar uns decibéis acima do permito por lei, porque há música aos berros. Acontece, ainda, ver pessoas que não via há meses ou anos, e que, por obra do acaso, estão com a mesma vontade do que eu, o que me obriga a usar em esforço a voz que descobri há minutos estar a dar falência.

Outro cliché é o pessoal que tenta furar a fila, porque “estão muito aflitinhas” ou “não dá mais”. Repare-se que mesmo nestas ocasiões as mulheres não perdem a pose e a postura, e não caem na brejeirada. É, contudo, possível que haja cenas de pancadaria. Parece incoerente, mas não é. É que às vezes um “ó linda, mas achas que és mais do que as outras, é?” pode não cair bem quando o corpo começa a dar sinais de si.

Boa ocasião para perceber quem se anda a enrolar com quem, já que as amigas aproveitam aquele tempo para dialogar sobre o que está a acontecer no evento: quem disse o quê, a quem, como, quando e porquê – repórteres de WC.

Nestas filas, há sempre uma rapariga fixe, que pensamos interiormente “ena pá, que fixe ela é”, e que é quem nos diz “podes ir na boa, que eu pego-te na porta”. Até porque alguém há-de ter já gritado há meia hora atrás que a porta não tem trinco.

Uma vez dentro dos contentores, começa outro filme, em que somos as protagonistas. Começamos a jogar sozinhas o Operação, em que tocar numa pontinha do que quer que seja dá direito a ouvir uma buzina e a acender luzes vermelhas. Tentamos não pensar em mais nada, a não ser naquele momento. Muitas de nós tentarão ser cívicas, e não demorar vidas dentro da casita, sob pena de ouvir umas bufadelas assanhadas do lado de fora.

Claro que no tempo em que nos ausentamos para fazer chichi, o mundo pulou e avançou. Os nossos amigos homens já fizeram o que tinham a fazer, e, benza-os Deus, já nos arranjaram uma bebida.

O que significa que, dentro de pouco tempo, a saga começa outra vez.

Forever young

|Tânia Rei|
De todas as coisas que fiz na minha curta vida, ser adulta é a pior delas todas. A mais difícil, e a que me consume mais tempo e recursos. Já superei medos, parvoíces e amores, mas ainda não consegui perceber, em boa verdade, se já sou adulta ou não. 

Há aquela expressão dos “jovens adultos”, só que, quando olho para o Cartão do Cidadão percebo que, se calhar, me devia deixar dessas aventuras do “ser jovem”, e começar a ter outra postura na vida. Por outro lado, agora parece que com isto de haver novos paradigmas sociais, envelhecemos mais tarde. Como um elixir milagroso. E por isso, temos mais tempo para andar a vadiar no reino juvenil.

Pensei, em complemento à primeira ideia, começar a deixar os ténis de parte, e andar sempre de saia ou vestido, e de blusas sóbrias. Também não resultou. Fiquei a sentir-me tão adulta como antes.

Depois, pensei, repensei e olhei para o umbigo, mas pela parte de dentro, a que não se vê, e deduzi, pelo que lá encontrei, que sou crescida, já. “Tudo está consumado”, à semelhança daquela passagem bíblica, carregada de pesar. É que sermos arrancados do nosso lado de adolescentes dói, estica a alma até ao inimaginável.

Achar que se é adulto, e não se ter a certeza, é como ir ao supermercado comprar uma manga. Por mais que se apalpe e cheire, só quem come mangas pode perceber o que tem à frente. Nesse dia, da introspecção, senti que comprei uma manga tão verde, mas tão verde, que vai demorar uma eternidade a amadurecer.

Não sei se ser adulto é importante, ou necessário. Em boa verdade, nem sei como é. É ser responsável? Ter contas para pagar? Ganhar dinheiro para pagar as ditas contas, e comprar uma casa e um carro? É casar e ter filhos? É ser um profissional de sucesso? É começar a achar que se está velho para andar de All Star?

Não sei.

Chego à conclusão de que nem quero saber. Xô vida de adulto, xô! Pára de me zumbir aos ouvidos, de me morder os calcanhares. Fica lá bem longe! Se calhar, até é possível ser-se adulto sem sequer o saber. Algo inato, que já trazemos de fábrica, e que, a dada altura, salta como um daqueles bonecos enfiados em caixas de madeira, que têm uma mola. Depois, só temos de carregar na cabeça do boneco, para o enfiar dentro da caixa de novo, e fechar. Aposto que até tem escrito “abrir em caso de necessidade, ou depois dos 40, caso não abra até lá (deixa de ser criançola, que já é tempo)”. Felizmente, e como os 40 são os novos trinta, ainda não encontrei a minha caixa, ou as instruções.

Por isso, para já, nem procuro a caixa, que deve estar longe, e fujo do mundo dos crescidos. É que acho que já espreitei pela fechadura, e não gostei do que vi.

A fina arte de ignorar

|Tânia Rei|
A fina arte de ignorar não está acessível ao comum dos mortais. Ignorar, alguém ou alguma coisa, requer requinte, q.b de malvadez e um exagero de bem-resolvido.

O mais comum, quando alguém resolver aplicar o ignoranço, passa, simplesmente, a parecer a minha afilhada, que tem quase dois anos, e que, por isso, está na altura das birras: faz de conta de que não vê, que não ouve, que não entende, mas, na realidade, só quer é irritar a malta. Ora, se o objectivo é levar uma sapatada, está no bom caminho.

Se não era isso que tinha em mente, desista, porque tudo o que está a fazer é incitar o outro a ser mais persistente – como quando vemos um amigo, ao longe, e ficamos a acenar, por detrás de um vidro, num sítio onde está muita gente, que olha para nós com ar de pena e desprezo. Temos que ser mais criativos, abanicar os braços de forma mais persistente, pedir a um conhecido, que toca no braço de outro conhecido, que por sua vez é amigo de um primo que está emigrado em França, mas que vem cá nas férias grandes. Até que, chegamos ao ponto, ao epicentro da acção.

E nem que tudo o que consigamos seja um leve abanar de cabeça (normalmente, para a esquerda e para a direita), já conseguimos corromper o “vou ignorar-te para todo o sempre”. Missão cumprida.

Ignorar alguém não pode parecer forçado. Não pode ser como nas comédias românticas - “ri-te como se eu tivesse acabado de contar uma piada super engraçada” e “ah, nem te tinha visto!”.

Tentar ignorar em demasia também não dá bom resultado. O fazer de conta que há uma pessoa invisível ou que um assunto não nos incomoda, e então vamos andando, uma passarela, a sacudir os cabelos calorosamente. É que assim toda a gente vai perceber que estamos fulos.

Agora isto das redes sociais trouxe outra tormenta – temos de seleccionar muito bem onde damos like ou naquilo que partilhamos. Querendo ignorar alguém, certifique-se que nunca, mas nunca mesmo, coloca “gosto” num post onde conste o nome dessa pessoa – dê lá para onde der, nem que o visado tenha uma foto maravilhosa numas férias alucinantes. Bom, o mesmo se aplica à escolha de conteúdos que queremos mostrar aos nossos amigos. Sempre a ignorar, internet afora. E, tamanho é o esforço, que a incumbência acaba por não ser bem-sucedida na mesma.

O mais complicado nisto do ignoranço, é quando não conseguimos mesmo ignorar. Queremos ignorar uma pessoa, mas estamos sempre a vigiá-la pelo canto do olho. Estamos nem aí para o fulano de tal, que disse ou fez alguma coisa, mas estamos sempre a bater no ceguinho, na mesa do café ou por SMS. Ou seja, um completo afundanço.

O melhor ignoranço é o genuíno – esquecemo-nos simplesmente de alguém ou de algo, porque não nos afecta. Tudo o resto, claro está, não está em situação de ser ignorado.

A ressaca do amor

|Tânia Rei|
Para os mais incautos, recordo que no domingo foi Dia de São Valentim. Digo para os mais incautos, porque ter-me-ia também a mim passado despercebido não fossem as redes sociais, onde vi jantares, almoços, prendas das caras, fotos de casais a arrulhar e até pedidos de casamento.

Bom, apesar de não ter nada de wow! para partilhar sobre este dia (até porque acho que ninguém quer ver fotografias minhas com meias grossas e um cobertor enrolado, a fazer de iglu, enquanto vejo televisão), o que mais me deixa feliz é que no dia seguinte não tive de ouvir os relatos exaustivos sobre “o quão maravilhoso foi o dia”. Ou não. Haverá sempre o que apontar.

O dia seguinte, a ressaca do dia do amor, é do pior que podem fazer aos solteiros, ou àquelas pessoas cuja existência numa relação não incluiu surpresas espectaculares e viagem de sonho.

“E depois ele deu-me uma rosa, pegou com a mão esquerda, depois com a direita, fez de conta que não ma ia dar, mas depois!... o que é que é istooooo! Fez um truque, esticou a mão e… deu-ma! DEUUUUU-MAAAAAAAA!!!!!!”. É que, ena pá, não é preciso, a sério.

Houve quem, por motivos que desconheço, não tenha partilhado no próprio dia as imagens deste acontecimento glorioso. Então guardou para segunda-feira todas as emoções. E as redes sociais estagnaram, quero crer porque é difícil avançar num campo informático coberto de mel. É que o mel cola, e pode estragar as coisas.

Não tenho nada contra o amor e quem se ama, juro que não, e sem fazer figas atrás das costas. Acho muito bem que se viva o amor, dentro e fora do Dia dos Namorados. Só não acho bem que tenhamos de acompanhar em direto ou em diferido (os “tais” casos do the day after) as maluquices que se fazem no 14 de Fevereiro, em nome do amor.

Também foi dia, e nos seguintes, de os solteiros e em casos semelhantes, expressarem que o que é bom é andar na gandaia, sem compromissos e com a carteira mais recheada neste dia (é que se gasta muito, avaliando comes e bebes, prendas, roupas e mega produções para a intimidade). Houve quem aproveitasse, até, para mandar umas bocas foleiras sobre “podíamos ser nós, só que não vai acontecer por mais anos que vivas.”

Eu, pessoalmente, e como já disse acima, não tenho nada para partilhar. Talvez esteja só ressabiada, mas posso estar também a salvar vidas. É que, pensem nisto: o tal São Valentim foi mártir. Morreu por causas ligadas ao amor dos outros. Então, se para haver este dia já houve uma morte, justifica-se continuar a martirizar os amigos, conhecidos ou meros transeuntes com corações e cenas vermelhas? É pá, guardem a palavra “surpresa!” para o final da bola, que o campeonato sim, está emocionante.

O que eu gostava que dissessem sobre mim

|Tânia Rei|
Tenho a ideia, por diversas conversas mantidas com elementos do sexo oposto, que os homens consideram que é muito complicado agradar no amor. Por isso, tomei a liberdade de encenar uma carta de amor, ou melhor, uma declaração própria para publicar as redes sociais ou para escrever um diário fechado a sete chaves, que hoje em dia é quase a mesma coisa.

Na minha modesta opinião, se a mim fosse dirigida uma dessas missivas, gostava que fosse assim: “Ela chega, e o chão começa a amolecer. Afinal, com ela descobri que o mundo é feito de manteiga, e ela tem a temperatura certa para a derreter. Olha o mundo de frente, mas não me olha a mim de frente. Quero acreditar que não consegue, que luta contra os seus instintos para não o fazer, para que eu não veja o doce nuns olhos que querem ser duros.

Ela chega, e o ar fica pesado. O que hei-de fazer, quando todo o meu corpo me diz que preciso de lhe tocar, nem que seja para ver se tem as mãos frias, e confirmar que estão tão frias como as minhas? O toque… Evito para que não perceba a felicidade da minha pele ao sentir a dela.

Ela chega, e sei que lhe quero falar. Não tenho nada para lhe dizer. Ou talvez tenha. Tenho tanto para lhe contar. Tudo para lhe contar. Nem que o tudo seja nada, e que falemos sobre o sabor das pastilhas elásticas do Jorge Jesus, ela vai ouvir-me. Eu sei que sim. Mas, não vou falar. É demasiado complicado falar com alguém que se está a beijar languidamente em pensamento.

Ela é mais do que eu queria, e, por isso, não posso ter. Não quero ter. Não posso. Não quero. Tanto faz. É que ela nunca tem medo, sabe o que quer, e eu…só a queria a ela.

Ela aparece, e começo a ouvir uma música de fundo. Não sei que música é, porque, quem sabe, talvez nem haja nenhuma e seja só o som da voz dela. É música, falar com ela. Ouvi-la. Fazê-la falar é uma delícia. Ó se é.

Ela chega, e tenho de olhar para ela. Ver se está inteira, tal como a minha memória a perpetrou. Está sempre melhor, mais real, com um dado novo para acrescentar na minha cabeça.

Ela gosta de coisas que eu nunca gostaria. Eu gosto de coisa que ela deve detestar. Mas somos tão iguais. Curioso, ver compatibilidades nas diferenças. Ou, melhor, possibilidades nas diferenças.

E, quando ela vai embora? Lembro-me que não lhe falei, que não olhei o suficiente, que não ouvi que bastasse. Não sei se fico triste, se me falta algo ou não. Não penso sobre isso. Porque sei que, em algum lado, alguém já conspira para que ela não fuja da minha vida. Nunca mais.” Estão a ver? É simples…

Amar num tamanho 38

|Tânia Rei|
Uma época em que cada vez mais surgem movimentos que tentam provar que as mentalidades estão mudadas quanto aos estereótipos sobre o corpo e em que ser diferente não faz mal, questiono-me quanto ao lado prático da questão.

É que falar e partilhar vídeos do Youtube é muito fácil. O difícil mesmo é fazer realmente as pessoas sentirem-se bem como são. Sim – fazer com que elas se sintam. Isto porque elas até podem estar na boa com o seu físico, mas há sempre quem teime, por vezes sem querer, em incutir um espírito de “not good enough”.

Recordo-me de uma paixão arrebatadora que vivi (e que, logicamente, como vão perceber porquê, durou apenas um mês e meio) em que também fui confrontada com o facto de “ter que ser uma miúda à altura” de quem faz ginásio e come muita alface, assim como ter descoberto que pareço bonita “às vezes” nas fotos do Facebook”, ao passo que outras vezes sou “esquisita”. Por segundos ainda acreditei que era vital para a minha existência vestir um 32 de calças e ir à depilação semanalmente. Foram longos segundos, até que o meu cérebro me disse que ambos estávamos a avaliar mal a situação, porque há mais pessoas no mundo – umas irão servir para satisfazer os requisitos dele e outras irão gostar de mim tal como sou.

E esta é uma lição de vida que levo. As pessoas são como são, e se eu não gosto não tenho que fazer por gostar ou, pior, dizer ao outro como queria que ele fosse. Ser egoísta às vezes é bom, mas não nestes casos.

É que é errado achar que tem que toda a gente tem de se encaixar nos nossos padrões, ou nós nos dos outros. Assim como é errado achar que a “amiga gorda” não pode ir para casa com o rapaz mais bonito da festa, e que o “bexigoso” não pode ser super fixe e bonito. Mas o pior mesmo é que os visados se vejam com esses rótulos quando se olham ao espelho.

O problema? É que achamos que não somos tão bons quanto o resto da humanidade. O melhor exemplo é um dos tais vídeos de que falo linhas acima, e em foram filmadas as reacções de vários estudantes enquanto lhes diziam “acho-te bonito/a”. Muitos sorriram, a maioria não acreditou e alguns foram agressivos até.

A norma não deveria ser a surpresa estampada no rosto, porque alguém deveria ter dito antes “és bonito/a”. A norma deveria ser poder enfrentar o mundo com confiança, sem ter nas costas o peso de, eventualmente, “not good enough”. E hoje, em consciência, acho que amar e ser amado num tamanho 38 é tão fixe quanto num tamanho 32 – somente porque todos somos bons o suficiente.

“Ainda”, “agora não”, “quem sabe um dia”, logo se vê”

|Tânia Rei|
Estava um grupo de Indecisos em reunião. Ali jazia aquele aglomerado de pessoas, desde 1500 A.C., num banco de jardim, para organizar o Grupo Mundial dos Indecisos.

Mudaram de banco várias vezes. Alguns, desconfiados, olhavam para o banco anterior enquanto se perguntavam se a mudança tinha sido benéfica, ou se, na verdade, seria melhor voltar para a sentar-se ali ao lado.

Ninguém tinha ido jantar ainda, numa reunião que durava há horas, e que tinha sido marcada para o meio da tarde. Parte dos convocados nem sequer chegou ainda, porque não conseguiu decidir se deveria ir ou não. Foi proposto pedir uma pizza por telefone, só que não houve, ainda, consenso sobre se nos ingredientes podiam constar cogumelos.

Os Indecisos ainda não governaram o mundo porque não conseguiram definir como o fazer. Tudo o que conseguiram foi indecisar. Indecisaram durante tanto tempo, que não sabem agir de outro modo.

O Indeciso só se sente completo quando não tem certezas. Ter certeza do que quer que seja é, será, tem de ser, motivo para criar uma nova dúvida. É que algo não está bem se souberem o que querem e o que fazer.

O Indeciso vive sem saber que está a viver. Ainda não decidiu se quer mesmo viver, se deve viver, se pode viver, nem, muito mesmo, como o deve fazer.

Este individuo é tão perigoso sozinho como acompanhado. Sozinho é uma ameaça a si mesmo; em grupo é uma ameaça para a humanidade. Não reconhece, no entanto, o seu par. Todos, aos olhos confusos do Indeciso, parecerão ter mais vigor nas suas atitudes do que ele próprio. Por isso, o Indeciso é narcisista – o supra-sumo dos indecisos lá do sítio.

Nas veias do Indeciso não corre sangue. Corre dúvida. A dúvida é levada aos órgãos vitais, e por lá fica entranhada.

Ainda: é a palavra mais usada no vocabulário do Indeciso, complementada com expressões como “agora não”,” quem sabe um dia”, “logo se vê”.

Ainda não chegou a hora, ainda não chegou o dia, ainda não se viu. “Ainda estamos a decidir”, atiram por cima de um cardápio, não de um restaurante, mas de toda uma existência. Os Indecisos, que vivem na Indecisolândia, não são espécie rara, e é bom que fiquem nesse maravilhoso habitat natural. Nada é mais triste do que um Indeciso desorientado. Assumem comportamentos empolados para disfarçarem a pronúncia da Indecisolândia, só que “ainda”, “agora não”, “quem sabe um dia”, logo se vê”.

As promessas

|Tânia Rei|
Quanto tudo já foi dito, feito e sentido, o que resta para os que cá estão?
Num mundo sem novidade, sem desafio, sem gota de suor para cair, sem lágrima para chorar, sem gargalhada para arrancar, o que fica para quem quer seguir?

O ano é novo, a vida é nova. Só que não. Nesta época do ano, em que ainda se atira “bom ano” por cima do ombro em cada esquina, acompanhado de um sorriso, não consigo evitar de pensar que uma meia-noite não vai mudar as nossas vidas, a não ser que haja por aí alguém que se chame Cinderela.

Demoro sempre a digerir as passagens de ano – as festas, as bebidas, e, principalmente, as passas, que, essas sim, são indigestas. “Não há nada de novo debaixo do sol”. Não sei quem disse, porque, aposto, já na altura não era novo. Era só uma recauchutagem de outra frase, que, quase que aposto o dedo mindinho da mão direita, já vinha na Bíblia em primeira mão.

Claro que esta conversa tinha, inevitavelmente, de acabar nas famosas listas de resoluções de ano novo. Há quem as escreva, há quem as prometa ao “eu” interior e o que há mais é quem nunca as cumpra, até porque, com os excessos da noite, há quem nem sequer se lembre que tinha prometido algo ao Ano Novo.

Não sei muito bem por que é que se prometem coisas numa altura em que sabemos de antemão, não estamos sãos para tal. Por diversos motivos. Para mim, a semana que se estende entre o Natal e o Ano Novo é como um Verão curtinho. Há sempre que fazer, há euforia e festas. Em resumo, é quando como vemos aquele amigo que não víamos há anos, e a quem deixamos de falar por motivos mais ou menos lógicos. Prometemos manter contacto, trocamos números de telemóvel, dizemos o nome pelo qual devem procurar no Facebook, mas é óbvio que nunca mais nos vamos lembrar da sua existência. É a loucura do momento que fala por nós.

Eu cá não gosto de prometer. Prometer é criar uma dívida, com alguém, com nós mesmos ou com o destino. Podemos mentir a outra pessoa, a nós. Mas ao destino não, que ele é matreiro, e vai apanharmos.

Se 2015 não foi carne nem peixe, a culpa não foi do ano – decerto que foi nossa. Não se culpe 2015 de nada, nadica, nem muito menos se prometa a 2016. Tudo que foi dito, feito e sentido em 2015 pode ser replicado, ignorado ou ampliado este ano e nos seguintes, até que fiquemos saciados de Ano Novo. Bom Ano Novo!

Saber agradecer não é para todos

|Tânia Rei|
Safei-me eu ontem de uma multa por excesso de velocidade graças à simpatia de um automobilista que circulava em sentido contrário. Fez-me sinal de luzes, para me prevenir de que, metros mais à frente iria encontrar um radar. Facto.

É mais uma tirada do “mundo fofo que nos rodeia”, pois é. A camaradagem na estrada, para que a malta não caia nas mãos da justiça é algo bonito e digno de se ver. Assim como quando nos esquecemos de ligar das luzes, quando algo não está bem no carro, ou quando paramos para deixar meter alguém na fila. É fofo e torna aquele mundo melhor. Já a mim, deixa-me a lacrimejar e a cantar Louis Armstrong.

Seja como for, naquele momento, enquanto carregava no travão, pensava no porquê de não podermos ser assim em tudo. Avisar toda a gente, amigos, conhecidos, estranhos e até inimigos, de que algo não está bem.

No amor, então, nem se fala. Se há altura em que precisamos que alguém nos faça sinal de luzes é quando nos apaixonamos por alguém. Ainda assim, de que vale, se as sinaléticas capazes de aterrar um Boeing não são capazes de demover um coração palpitante?

Não custava, no entanto, tentar alertar os imprudentes amantes, que vêem no horizonte unicórnios, prados verdejantes e arco-íris, sem que tenham para isso consumido qualquer substância ilícita. Era, mais uma vez, um episódio do “mundo fofo que nos rodeia”.

Só que, ao contrário dos automobilistas, que agradecem com a mão, e que dizem entre dentes “este gajo foi mesmo bacano, pá”, os apaixonados reagem como condutores de carrinhos de choque – sempre a praguejar, com as mãos fora do volante enquanto carregam pesadamente no acelerador. Não querem conselhos de ninguém, e são bem capazes de levantar o dedo do meio ao senhor que ajuda a meter as fichas e que encosta os carrinhos sem passageiros. É comum vermos estes condutores a levar marradas de tudo quanto é lado, sem saber o que fazer, a tentar deitar as mãos a um volante que deixaram, a meio da pista, desgovernado.

Porque as mãos não têm governo quando o amor governa. A cabeça não reina quando o amor impera. As pernas têm frio quando o amor aquece. O coração, esse, não sabe o que fazer, e palpita, desesperado, no meio disto tudo.

Sabem por que é que avisamos os outros condutores? Porque não nutrimos sentimentos por quem vai na outra faixa. Caso contrário, iríamos acenar-lhe, mandar beijos e desenhar corações no vidro. E, como podem imaginar, neste cenário, andar nas estradas deste mundo seria algo muito semelhante a pista de carrinhos de choque.

As estórias

|Tânia Rei|
“E ali estava eu, sentada na mesa de uma pastelaria, com uma chávena suja de café à frente. Folheava nem sei bem o quê, que por ali estava à mão, e pensava, ledamente, sobre a existência do eu.”

Não, isto não pode ser o início de uma boa estória! O que poderia acontecer de inusitado neste cenário? Entrar um homem lindíssimo pela porta? Demasiado cliché. Um assalto à mão armada? Um ataque zombie? Uma invasão de seres alienígenas? Não, nada disto serve uma boa estória.

Há vivências que parecem que nunca poderiam ter sido experienciadas por nós, porque, sei lá!, não se enquadram. O mais estranho, é que com facilidade percebemos que uma grande fatia do queijo populacional considera que o incomum lhe bate à porta diversas vezes, como algo “normal”, “habitual”.

Para todas essas pessoas, sentencio que estão enganadas.

Todas essas pessoas seriam incapazes de cheirar sequer algo fora do normal, porque não estão para aí viradas, num mundo que se quer de clones. E à força de tanto se querer ser diferente, copia-se o vizinho do lado, em maneirismos desajeitados e que não caem bem, tudo para acumular as ditas estórias do incomum. É este, o mundo em que se caminha na rua na esperança de que, ao chutar uma pedra, saia de lá a estória da nossa vida, a que nos vai tornar famosos, nem que seja lá no bairro.

Só que isso dificilmente vai acontecer. A tendência é para que os acontecimentos do quotidiano tenham de ser mais do que isso, tenham de ser epopeias, romances avassaladores, ficções científicas daquelas mesmas boas, e BD’s e cartoonistas famosos.

Não percebo a fixação das pessoas pelas estórias rebuscadas, que soam a mentira e a filme de domingo à tarde. Eu cá gosto das coisas normais. O improvável só se quer se o desfecho for, como de rotina, bom, ou pelo menos, aceitável. Caso contrário, que o destino recolha as unhas, ou as lime, ao menos, para não arranhar os incautos moradores deste piso.

“E ali estava eu, sentada na mesa de uma pastelaria, com uma chávena suja de café à frente. Folheava nem sei bem o quê, que por ali estava à mão, e pensava, desta vez tristemente, sobre a existência do eu.”

Não deve ser a estória de uma vida, mas já é alguma coisa. O começo é o mesmo, o humor é diferente, o final é, provavelmente, idêntico. A autora deste início arrebatador levanta-se, paga o café, e sai, tão alegre, triste ou pensativa quanto entrou. E segue, na sua vidinha normal, evitando, de futuro, um punhado de estórias do extraordinário.

Parte-me o coração, só de pensar!

|Tânia Rei|



“¿Quién me va a entregar sus emociones?
¿Quién me va a pedir que nunca le abandone?
¿Quién me tapará esta noche si hace frío?
¿Quién me va a curar el corazón partío?
¿Quién llenará de primaveras este enero,
y bajará la luna para que juguemos?
Dime, si tú te vas, dime cariño mío,
¿quién me va a curar el corazón partío?”

Assim versa uma das músicas latinas da especialidade, quando é necessário responder a esta questão dilacerante. A minha grande dúvida não é quem vai curar corações partidos, até porque fosse isso possível e já haveria empregos no ramo, mas sim quanto tempo demora a curar um coração partido. Não importa saber se e quando virá alguém com super-poderes e super-cola do amor. Não. Importa perceber, primeiro, quanto tempo temos de andar de coração em frangalhos.

Haverá uma medida? Uma quantificação temporal, lá nas medições do amor? Um tempo razoável e aceitável para quem sofre de males sentimentais? Terá de ser proporcional à duração do relacionamento? E se nem houve relacionamento algum? Se foi uma paixoneta à mesa de café ou se só aconteceu na nossa cabeça? É justo que soframos por uma coisa da qual nem tivemos proveito? E se, se por outro lado, tirámos proveitos, imorais até, quem sabe? Deverá o coração ficar a doer mais? Mais tempo?

E curará o tempo tudo? Mesmo quando estamos a falar de algo tão frágil e delicado?

É que o coração é uma chávena daquelas de porcelana, daquelas que nunca podemos tirar o armário porque pode cair ou, pelo menos, lascar. Se isso acontecer, estraga-se um conjunto de seis ou de dúzia, e nunca mais se pode usar, ou usa-se manco de par, apesar de o resultado final não ser o esperado. O pior mesmo, em caso de partir e de ser de porcelana da boa, são os cacos. É uma chatice, que aquilo esmigalha tudo, tudinho. Andaremos uma vida e seguintes encarnações, até, a descobrir novos pedaços debaixo de tudo quanto é móvel.

Parte e não cola mais. Ou, se cola, fica lá a “cicatriz” bem marcada, com UHU a sair por todo o lado.

O que é remendado não volta ao original, por mais tempo de passe. Não é capaz de esconder a mácula. Por isso, em boa verdade, se o nosso coração tivesse de ser um recipiente destinado a beber líquidos (caso o amor venha assim servido, como uma boa taça de vinho), nunca poderia ser uma fina chávena de porcelana. Tinha de ser um púcaro de alumínio. É que às vezes que cai e que, levantado do chão, se sacode o pó e serve outra vez, como se nada fosse, tem de ser feito de um material resistente, e viver sem muitas mariquices.

“Tiritas pa este corazón partío”

Na rua, pelo amor

|Tânia Rei|
“O que não esperamos acontece mais vezes do que o que se espera”, escreveu o dramaturgo Plauto. E tem ele razão.


Imaginem que ontem estava eu à porta de casa, pronta para ir correr, quando me apercebi de que, antes, necessitava de voltar a subir ao segundo andar. E lá fui eu, galgando escadas duas a duas. Ou seja, em menos de dois minutos (e estou, claramente, a insuflar, dada a minha elevada destreza física), estava de regresso à rua, novamente pronta para correr, à espera da minha companhia.

Mas, o cenário que deixei não foi o mesmo que encontrei. Ali, onde há menos de dois minutos nada existia, tinha acontecido o amor. Sim, leram bem. O amor estava a desenrolar-se perto dos caixotes do lixo. Sei bem que não é um sítio romântico, e tamanha felicidade do casal pode dever-se, por exemplo, ao facto de se terem despojado de um cadáver, que assim se livraram de provas incriminatórias. Ou despejar o lixo dá vontade de dar beijos de línguas e abraços. Ou não, pode dever-se, simplesmente, ao amor.

Sejam os motivos quais forem, a verdade é que o amor demonstrado pelo casal que se beijava encheu a rua. Encheu o olho e o ar, com os falsetes dela e a voz a fingir-se de mau dele, quando inventavam que se chateavam, só para depois de agarrarem de novo aos beijos, e abraços. E foi-se espalhando pela rua, pelos muros das casas, pelos carros estacionados. À medida que se afastavam dos caixotes do lixo, a rua toda ficava impregnada com o cheiro. Não do lixo, mas do amor. Eu achei aquilo fofo – um casal que ignora que o mundo está ali, a coabitar com eles naquele momento, e que se beija, que brinca, que demonstra na rua todo o amor que muitos escondem uma vida inteira nos refegos do coração.

Uma autêntica hecatombe aos mal-amados, aos pães sem sal, aos cheios de nove horas. Porque o que não esperamos que aconteça, afinal, acontece frequentemente. Acontece mais do que o que esperamos que aconteça. E o amor aconteceu ali, diante os olhos desta que vos escreve.

Eu não esperava que acontecesse. Mas foi tudo real. Ilações simples? Despejem o lixo mais vezes, ou, pelo menos, depurem regularmente a vossa vida. O amor anda aí, à espera de acontecer. E pode não escolher sítios bonitos ou próprios.

App para sentimentos

|Tânia Rei|
Uma ideia claramente vencedora seria inventar uma app que, através da nossa interacção com o telemóvel, conseguisse perceber quando estamos deprimidos, a ponto de precisarmos desesperadamente de falar com alguém.

Ora, isto funcionaria mais ou menos assim: imaginem que estão a ter um dia horrível, daqueles em que só nos apetece ir para Marte, para nunca mais voltar. O nosso smartphone, através da dita aplicação, iria percepcionar o estado de humor, e uma luzinha vermelha acenderia um computador de um call center:

Trimmm, Trimmm “Estou?” – atendem com voz chorosa.

“Olá, daqui fala a Raquel. Está tudo bem?” (voz coloquial e impecável)

“Sim… Tudo óptimo…”

“Vá, a mim não precisa de mentir, Mariana. Quer falar sobre isso?”

“Oh, Raquel, estou mesmo deprimida hoje!”

“Hum hum. Estamos neste momento a enviar uma caixa de chocolates para sua casa, Mariana. Mas, conte mais o que se passa consigo?”

Bem, e seria mais ou menos isto. Alguém nos liga, e nos mima, e ouve as nossas mágoas. Funcionaria para tudo que se possa imaginar!

“Fui despedida.”

“Não se apoquente, Mariana. Estamos já a enviar currículos para outras empresas. Vá lá, anime-se, amiga!”

Ou…

“Acabámos tudo. Desta é de vez!”

“Hum, ok (som de alguém a teclar apressadamente). Já alterámos o seu estado civil no Facebook e apagámos todas as fotos em comum. Neste momento os nossos técnicos estão a providenciar uma frase bem lamechas, de um escritor famoso qualquer, para colocarmos no seu status e anunciar ao mundo o quanto está triste, mas confiante no futuro.”

E…

“Queria tanto sair hoje! Estou farta de ver casais aos beijos, e eu sem ninguém.”

“Certamente, Mariana (som de teclas novamente). O Roberto passa hoje em sua casa às 20h. Prefere massa ou japonês?”

Hoje era só isto.

Para quem está farto de sentir como um simples humano, deveria de haver uma solução electrónica, disponível na Play Store.

Diário de um ressabiado

|Tânia Rei|
Passam dias, meses, anos.
Passam, ou, pelo menos, irão passar. É que se calhar só passaram umas horas, e estamos a insuflar tudo. Não sabemos ao certo o que pensar, e todos os pensamentos são, ainda que ao de leve, homicidas.

Passam dias, meses, anos. Séculos! Milénios, por Deus!

Ou não. Talvez tenha passado menos de um minutos desde a última vez que pensámos sobre o assunto corrosivo. É o tal assunto, o tal que nos tem trazido ressabiados.

E pensámos, falámos com amigos. Pensamos mais um pouco. Passam dias, meses, anos. Não, que disparate! Passaram apenas 30 segundos, e voltamos a pensar. Na resposta, não há nada. Nem queremos já, em boa verdade. Neste ponto nós somos mais nós, e vamos mandar abaixo de Braga quem disser o contrário. Peito à bala! Estamos por tudo! Ai, agora? Agora não dá.

Anda o relógio, e passam mais dias, mais meses, mais anos. Assim parece, só que, sabemos bem, é mentira. Não se passa nada, em abono da verdade. C’um mil diabos! É que, literalmente, não se passa nada. E devia passar, porque assim íamos ficar menos agastados, íamos ter mais tópicos para juntar à lista que nos traz ressentidos.

É nesta parte que começamos a citar frases. As frases, bonitas e com todo o sentido, só que não foram escritas por nós. Saramago destaca-se na lista: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. (…).“E eu estou lá para escrever? Ou para fazer alguma coisa? Só me quero enrolar em posição fetal, e esperar que o mundo acabe”. Sabemos que é coisita para demorar, dado o número de falsos alarmes que há na História. Mas, nunca se sabe quando vai cair um meteorito. E o danado bem que podia cair na cabeça de alguém, e parti-la a meio, como um melão da Vilariça, maduro de mais.

Maduro? Espera lá! Calma aí! É que passaram dias, meses e anos, e nada aconteceu. É fruta podre, é o mal encarnado, é… , olha, nem sei, mas é. E há-de ser.

É que passam dias, meses, anos, sempre a martelar no mesmo! Irra. Falamos com voz arrastada, rosnamos, ficamos de mau-humor. E, para quê? “Olha, falar é fácil. Queria ver-te no meu lugar.”

Está a chover, e agora?

|Tânia Rei|
Se há um ano atrás vos escrevia mais cedo e sobre a rentrée, desta vez volto ao ataque, depois de quase dois meses de meditação, para vos dirigir algumas palavras, agora já em pleno Outono.

E adianto o assunto: é sobre algo que acontece por esta altura, normalmente, e que é bastante apreciado por muito e odiado por outros. Bem mais esclarecidos, aposto eu, prossigo em tom melancólico e ritmado para vos confirmar que vamos falar da chuva.

Este fenómeno natural, enviado por entidades superiores, tema de canções e dono de rituais, que incluem dançar de forma estranha, desencadeia nos humanos sentimentos não menos estranhos do que dançar com os braços a abanar e bateres de pé sem música electrónica. É que, mais do que nos fazer ir buscar as galochas e os guarda-chuvas, a chuva é um hipnotismo climatérico que nos faz agir por impulso. Ora pensem lá bem quantas vezes ouviram amigos, colegas de trabalho, familiares, ou meros desconhecidos, a dizer que a chuva dá sono (e que, por isso, gostam de dormir com o barulho da chuva a cair), que têm medo da chuva, que a chuva lhes deixa o cabelo em alvoroço, os constipa, os deixa tristes, românticos ou moles. Imensas vezes, com certeza.

Nos filmes, quando os casais discutem para fazerem as pazes minutos mais à frente, há sempre um dilúvio que lhes agarra os fatos ao corpo e lhes põe as franjas dos cabelos a fazer de caleiras. Nos de terror, a mesma coisa, mas com pessoas a fugir de carro, debaixo de um dilúvio semelhante. Nas tramas históricas, chovia sempre nas últimas batalhas, ou imediatamente a seguir. Noutros, de rir, há cenas que imitam o drama, com chuva à mistura.

Por causa destas cenas cinematográficas, há horrores de pessoas que sempre sonharam beijar alguém à chuva, ou simplesmente mandá-lo à fava no mesmo cenário, apenas e só pela carga emocional associada. Dias de sol são bons para beber cerveja, dias de neve para brincadeiras afoitas, dias de geada para ficar em casa. Dias de chuva são para o que nós quisermos. Pensem nisso dos meses que aí vêm.

A chuva lava, apaga fogos, rega culturas. Mas a mesma água pode levar muros, alagar estradas e moradias, levar barcos para longe, para onde nunca mais voltem, sem amarras. A chuva é um cenário criado naturalmente, mas somos incapazes de a encarar como meras gotas descondensadas, a sair de nuvens cinzentas. E, de todas as coisas que poderia destacar nesta estação do ano, digam lá se a chuva não era a mais límpida e transparente da qual vos poderia falar?

Aprender a lidar com que já não está…

|Tânia Rei|

…quem não está na nossa vida, porque continua a existir noutro plano, diferente.



Seguiu outro rumo, ou nós seguimos outro, ou, às vezes, nem sabemos bem. Apenas estavam, e deixaram de estar. É a vida, pois. Era assim que tinha de ser, não havia outra maneira. Talvez houvesse (há sempre uma segunda escolha, mas isso agora não vem ao caso).

E como se lida com alguém que sabemos que existe, que respira e que vive, que já existiu, respirou e viveu connosco, e agora, quando olhamos para o lado, apenas vemos um lugar vazio?

Não faço ideia. Mas gostaria de saber. Gostaria de ser eu a descobrir a fórmula para tal, e vendê-la-ia em frasquinhos pequeninos e caros, que nunca ganhariam poeira.

O silêncio de um vivo é bem pior do que o silêncio de um morto. Dói mais, porque sabemos que continuamos a ouvir somente o eco na nossa voz por falta de vontade do outro lado de verbalizar palavras de resposta.

E damos por nós a perceber que há lembranças, partes passadas na nossa vida, que agora, noutros tempos, deixam de fazer o mesmo sentido quando contadas. Tudo porque temos de explicar quem é a dita pessoa que figura nessa memória. Imagino que para quem nos está a ouvir, e a fazer a projecção mental, estejamos acompanhados de uma pessoa sem rosto, ou só por um amontado de pixéis, tal é a falta de vontade de descrever, de pensar, de reviver.

Também os pormenores dessas pessoas, das que estiveram e que já não estão, se vão desvanecendo. Não há necessidade de decorar os amigos não-comuns, as histórias de família e as datas de casamento dos primos. Esquecem-se hábitos, roupas, cheiros e manias. Há coisas que ficam, que ignoramos, que entranhamos e que damos como nossas. Não são, mas, quem precisa de o saber?

Dizem que os amigos são para sempre, mas não são. Como poderiam ser, se, no final das contas, nada é para sempre? Ao fim e ao cabo sempre soubemos que assim seria.

E muda o canal por onde corre a água, muda o curso do rio, fazem-se albufeiras e corre-se para desaguar no mar – vai-se sozinho, com os de sempre e com os novos que fomos encontrando na margem. É que, afinal, o importante é ir.

No meu tempo havia cassetes

|Tânia Rei|
Agora que o Wareztuga encerrou, depois de ser descoberto alojado na Roménia, e numa altura em que a Internet ainda sangra (não se via tamanha tragédia desde que o MegaUpload nos deixou), tenho pensado muito na altura em que para ver um filme era preciso muito mais do que comprar chocolates ou pipocas e abrir um link.

Em tempos antigos, que parecem ter sido há séculos, para ver um filme era preciso levantar o rabo do sofá e ir a um videoclube. Ora, um videoclube era um saudoso sítio onde havia cassetes VHS e gomas. Depois passou a haver DVDs e gomas. Mais adiante, alguns passaram a ter material porno e gomas. Por fim, ou passaram a ser casas de gomas, ou encerraram.

Este era um sítio onde éramos obrigados a ler – por muito que o título do filme fosse apelativo, tínhamos de virar a tampa para ler o verso, a sinopse, para saber sobre o que era a película. Não havia trailer em todo o lado, nem críticas cinematográficas. E não havia a opção de, se não gostássemos, simplesmente fazer “retroceder” e escolher outro. Não, que aquilo era pago, e sabe-se lá o tempo que muitas vezes tinha de se mendigar aos pais umas moedas para ir alugar um filme.

Outra grande diferença era o facto de, se quiséssemos rever o filme, no tempo do VHS, tínhamos de rebobinar tudo, e, mediante o tempo de duração do filme, era coisinha para demorar. Pelo menos, dava tempo para ir fazer chichi, beber água e encher as mãos com as ditosas gomas. Na altura, não via séries, mas nem imagino como seria. Certamente, havia mais edições a sair com os jornais e daquelas colecções em que o primeiro número é barato, mas depois fica caríssimo, e continuamos a comprar com pena de não terminar.

Nesta altura, além das cassetes e DVDs que se vendiam na feira, que eram gravados no cinema (as chamadas versões CAM nos primórdios da pirataria, que só funcionavam uma vez ou duas, no máximo, e que era a única forma também de vermos filmes que ainda estavam no cinema), para vermos um filme fora do horário da TV (quando passavam filmes na televisão dois dias por semana), só havia uma outra alternativa, que era comprar cassetes virgens e gravar numa tarde de domingo num canal qualquer, o que era sempre uma adrenalina, porque podíamos mudar de canal e, no entretanto, o intervalo acabar. Logo aí, perdíamos uma parte do filme, irrecuperável, até que passasse novamente na televisão. Era uma adrenalina não só por este motivo, mas também porque se a cassete fosse roscofe corríamos o sério risco de ter uma gravação de qualidade duvidosa, e só íamos saber isso volvido o filme toda e volvida também a cassete toda para trás.

Voltando aos videoclubes, era giro era ir com muita gente, para escolher em grupo. A malta separava-se por ali, cada um para sua secção, e depois era gritar o mais que pudéssemos para argumentar por que é que devíamos ver uma comédia e não um de terror, e por aí adiante. Era também mais complicado ter acesso a determinado tipo de filmes, por culpa da idade ou do constrangimento que era levá-los ao balcão.

Havia cartões de sócio, para ser mais barato o aluguer, e era, pois, necessário devolvê-los no tempo extipulado. O que acontecia também, quando havia filmes da moda, era ter que esperar que houvesse cassetes e/ou DVDs disponíveis, porque nem toda a gente cumpria as datas de entrega.

Nesta altura, um filme não era descartável. Era uma preciosidade. Quem os tinha em abundância, até os exibia em prateleiras. O cinema não estava lá sempre, nós é que íamos saber dele, e o levávamos para casa por alguns dias ou horas. Eram outros tempos, e, em pouco tempo perdeu-se tempo para apreciar um bom filme, e só ficou o tempo de comer gomas e abrir links em blu-ray e full HD.

Pêlo menos é Verão

|Tânia Rei|
Para os mais distraídos, já começou o Verão. Sei bem que tem passado despercebido porque tem chovido, trovoado, nevado (no Evereste, certamente) e está vento, o que para ir estender a toalha ao sol é uma chatice.

Bom, distracções à parte, está aberta a época veraneana, o que significa patuscadas com os amigos, cervejas, bebidas estranhas que queremos experimentar, protector solar no tabliê do carro, corridas para manter a forma, chinelos de enfiar no dedo, noite a rebolar na cama com o calor e poucas horas de sono, dada a quantidade de festas que há. Para as mulheres, e para muitos homens mais modernos, é uma época também de tortura absoluta, porque é necessário conter a camadona de pêlos que teima em sair de todos os interstícios corporais.

Depois, temos que optar – ou andamos ao natural, e assumimos que ter tufos de pilosidades de vários tamanhos, cores e feitios é normal; ou marcamos depilações em Janeiro, já a contar com a crescente procura.

Há quem faça tudo em casa, mas, convenhamos, há parte e alturas em que só um profissional nos pode dar uma mãozinha, quando não ajuda a vista ou a posição em que temos de nos colocar para chegar a determinado ponto, e em que dava jeito ter menos quatro costelas ou ter praticado contorcionismo desde pequenos.

Para toda a mulher, há um momento marcante de vida, que é quando percebe que andar com as pernas ao léu como quando tinha seis anos deixa de ser “fofo” e para a ser “grotesco” aos olhos do povo, e que o fato de banho começa a ficar demasiado preenchido, a ponto de transbordar. E depois chegam as hormonas adolescentes e as loucuras da época, e ninguém quer ouvir “ah, é a tua perna, caramba! Pensei que era o Tareco”. Para os rapazes, deve ser chato quando há tanto pêlo que saltam as camisas e se metem nas casinhas dos botões, ou parece tentaram roubar um tapete, mas metade do artefacto fica de fora.

Contudo, e numa altura em que, felizmente, apelam para que sejamos naturais, há movimentos e pessoas que testemunham uma vida sem lâminas, cera quente ou cremes. Sim, há mulheres que já desistiram de rapar as pernas, as axilas e, certamente, outras partes do corpo, em nome de uma vida sem pudor corporal, onde podemos vestir uma saia, um vestido ou uns calções sem pensar que só tínhamos hora no salão de estética para a semana. Porque deixa de importar para esta pessoas o que os outros pensam sobre elas.

Isto leva-me a pensar que, por exemplo, os namorados tendem a não se importar com os pêlos das namoradas, e vice-versa. E que, li algures (e parece-me verdade) uma mulher bem resolvida não precisa de estar depilada para aproveitar um encontro escaldante. Aí os pêlos não interessam, porque estamos a confiar que quem nos olha para os ditos está a olhar para a pessoa por detrás da felpa.

Ou seja, esta nova tendência é como estabelecer uma relação de intimidade e confiança com todo o mundo. Há pêlos a cobrir o dedo grande do pé, mas que importa? Olhemos antes para os sapatos, ou aquilo que conseguirmos ver do rosto. Vivamos menos o pêlo e vivamos mais o Verão.

A contar estrelas

|Tânia Rei|
Há uns dias, em mais um jogo das redes sociais, fui informada de que era uma “contadora de estrelas candentes” profissional, responsável por me certificar que os sonhos dos outros se tornam reais. Sou só eu que acho isto fofo?

Se a ideia chega a Hollywood, vamos ter mais um filme de chorar baba e ranho e com muitas nomeações da Academia. Até estou a imaginar o final – ele morre porque vê uma estrela cadente e deseja que era tenha uma vida longa e feliz, em detrimento da própria felicidade (claro que antes já tinha havido uma crise nas estrelas, que tinham deixado de cair com a mesma frequência, e por isso tornam-se tão raras que era necessário ter contadores profissionais para não perder nenhuma. Eu sei, estou a deixar fugir uma carreira de argumentista).

Bom, claro que na vida real tal não seria possível. Não acho que a queda de estrelas esteja em causa. Não sei quantas caem por dia, mas penso que ainda haja um rácio saudável. Já quanto à realização de desejo, prefiro manter o misticismo/romantismo/fofismo e acreditar que, se não os tornam verdadeiros, pelo menos dão um empurrãozinho. Apenas não acredito que seria possível alguém “apanhar” estrelas para outra pessoa, porque o ser humano é tão egoísta que não ia pedir desejos para outro.

Ora, poderiam dizem que este trabalho, por ser à noite, seria muito bem pago, e, por isso, qualquer um desempenharia bem este papel. Eu acho que não. Basta pensar nas vezes em que desejamos coisas completamente alheias ao trabalho durante as horas de expediente. E se um destes desejos coincidisse com a queda de uma estrela, lá se ia a oportunidade de um cliente. Ou se havia uma troca de desejos? Havia depois pessoas com super-poderes que só queriam ser ricas, e super-heróis que só queriam era uma casa com piscina e um Ferrari na garagem.

Se pedir para nós é difícil, nem quero pensar como seria gerir uma empresa deste calibre. Desde a definição dos requisitos para pedir desejos até à tabela de preços. Claro que pedir desejos por encomenda tinha de ter requisitos, ou então alguém poderia desejar o fim precoce do petróleo ou uma explosão no sistema solar, e era uma grande chatice. E alguns desejos seriam impagáveis. Por isso ia haver um aumento dos empréstimos no banco e a venda de objectos em ouros.

Mas estou a fugir ao lado romântico da questão. Quando, debaixo de um céu de Verão vemos uma estrela cadente, brilhante como um farol, não pensamos em dinheiros, em viagens ou em casas com piscina. Pensamos, sim, naquele amor que não é correspondido ou que queríamos manter para sempre. As estrelas são românticas, e visto ao perto, com telescópios especiais, têm forma de coração. As estrelas morrem e caem para guardar segredos eternos de amantes. Não aguentam a vida solitária que levam, lá em cima, talvez, o que pode ser outra causa de colapso.

E, o melhor de tudo, é que o céu é de todos. Todos podem contar estrelas e pedir desejos, sem que seja preciso contadores profissionais de estrelas cadentes para intercederem por nós. Por isso, se já tentou de tudo, não custa pegar num banquinho e em alguma paciência, e tentar a sorte, a contemplar o firmamento.

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