|Tânia Rei| |
Ao contrário da analogia bíblica, não há uma mãe zelosa, um pai adoptivo preocupado, nem sinal de estrelas, e muito menos senhores simpáticos que se fazem transportar de camelo, para dar presentes caros.
Despidinho, com os pés de fora, repousa o Coração, protegido apenas por uma reles cabana presa com cola barata, a sair por todos os lados, e uns farrapos verdes a cobrir alguns buracos, tudo comprado em conjunto numa qualquer loja de artigos chineses. O Coração foi criado para suportar todas as alfinetadas da vida. Um mártir, pois claro. E não fosse a capacidade de regeneração, todos morreríamos novos e insipientes.
Tanto cresce como se retrai, este Coração de que se fala. Incha sem grandes motivos, por coisas simples do dia-a-dia, banais. Perde o fôlego e volta a ficar pequenino quando algo não agrada, desilude ou irrita. Mas o Coração não é de lutas. Não. O Coração dá a outra face, e chora, ora em silêncio, ora em prantos dolorosos.
O Coração guarda toda a inocência que o passar largo dos anos permite. O Coração tropeça, mas rápido esquece o sangue a escorrer. Esconde a cicatriz, por mais feia que seja, puxando atabalhoadamente um remendo das calças, esfoladas nos joelhos. É solitário e pensa muito, sempre sozinho. Aprende sozinho, pois, e apesar da árdua caminhada nunca atinge a maioridade, guardando a jovialidade de um adolescente.
O Coração foi feito, em última análise, para nos roubar de uma existência sisuda, cadavérica e sem propósito. É o Coração que arranja, com pós mágicos e ofuscantes, motivos estapafúrdios para dar sentido a certas e determinadas coisas que fazemos.
Por vezes, como já disse, o Coração sofre, ai se sofre! Como nunca outro sofreu igual. Uma dor fininha, que fica na garganta, que fica ali a roer. Só que, ainda que haja adversidades sérias, nada mais importa para o Coração do que a etapa seguinte, que se adivinha mais feliz, que se avizinha de mudança.
E por isso, deitado de barriga para cima na andrajosa cabana, o Coração sorri, em tom de desafio. Não se lamenta, não se contorce de frio, não aperta o estômago com a fome. O Coração desvia ligeiramente a cabeça, para espreitar por um buraquinho da sua humilde residência, um que está tapado pelo falso musgo, e de onde se vê o céu, desenhado pelo Futuro, esse eterno mafioso, que parece só estar bem a pregar partidas. O Futuro não importa. Dali vê-se o céu. Um glorioso céu. E isso basta.