As viagens que já fiz (e que já não faço) de autocarro

|Tânia Rei|
Cada vez que me cruzo com um autocarro, tenho a sensação de que perdi aquela viagem. Seja qual for o destino, sinto que devia estar lá dentro, de fones nas orelhas, a contemplar a paisagem e a ir. Simplesmente a ir, para algum lado. Tenho até vontade de gritar, esbracejar, barricar a estrada. Tudo para dizer “desculpe, senhor motorista. Creio que me atrasei. Aqui tem o meu bilhete”.

Talvez isto mais não seja do que uma espécie de uma síndroma de quem por anos fez do autocarro as suas pernas. Há quem diga que odeia andar nestes transportes públicos. Eu sempre gostei. Até da sensação de saber que se tivermos vontade de fazer xixi, mesmo com uma casa-de-banho ali a uns metros, não vamos poder usá-la, porque está fechada.

Sempre gostei, porque o autocarro não é só um veículo que tem capacidade para transportar de um lado para o outro 52 (?) pessoas sentadas. Leva vontades diferentes, alheias umas às outras, que vão para um mesmo local, fazer coisas diferentes, com objectivos próprios. Algumas saem antes da última paragem, porque querem ir para locais distintos. Apenas partilham alguns quilómetros connosco, e depois, vão embora. Ou ficam-se pelo caminho, porque demoraram demasiado tempo na casa-de-banho (já que não podem usar a do autocarro) ou a comer uma sandes de presunto na estação de serviço do Pombal. E, voltando ao início do parágrafo, e da ideia, um autocarro é uma analogia para a vida. Esta vida pela qual vamos viajando, com mais pessoas ao redor. E a vida na qual nem todos nos acompanham até ao final da jornada. E na mesma vida, ainda, onde pessoas novas entram nalgum ponto de paragem do itinerário.

Na vida, tal como nos autocarros, se alguém se levanta dá nas vistas. Haverá quem grite que tal gesto é proibido na lei dos autocarros, e que pode causar um acidente. Tal e qual como quando alguém se insurge no decorrer do seu dia-a-dia. Na vida também podem aparecer os revisores, que vêm do nada tentar caçar uma multa. E, tal como nos autocarros, podemos ficar atrapalhados e por momentos esquecer que tínhamos o bilhete naquela bolsinha pequenina da malinha de levar a água e uma peça de fruta, antes de nos recompormos e mostrar-nos toda a nossa fibra, ao espetar o papelucho nas vistas do pica (ou o dedo do meio, caso não se encontre o bilhete. Creio que deve ter acontecido por aí, numa qualquer situação real).

Já vive momentos caricatos em autocarros, já experimentei a sensação de encontrar alguém que não queria, e ter que fazer conversa. Já vi filmes em autocarros. Já fiz coisas que não são permitidas, mas que toda a gente faz (como comer e não apertar o cinto). Já ressonei em autocarros, e dormi de boca aberta. Já vi outras pessoas nesta posição, e ri-me muito. Já me cruzei com gente estranha e ouvi conversas mais estranhas ainda. Já fiquei contente por ver chegar atrasado um autocarro que me havia de levar para outro sítio, onde eu desejava mesmo estar.

Agora vejo os autocarros passar, com histórias dentro que eu não sei. Não lhes aceno por vergonha, mas instintivamente olho para o relógio, para confirmar se estou dentro do horário, ainda que o desconheça. Não leio na placa luminosa para onde vão. Não importa. Eu queria lá estar, a comer bolachas ou a dormir de boca aberta. Tudo porque, para mim, andar de autocarro é a única maneira palpável de ver a vida a mexer-se, de um lado para o outro.

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN