A Entrevista de Miguel Sousa Tavares

|Hélio Bernardo Lopes|
Contra o que eu poderia esperar, acompanhei com grande gosto a entrevista de ontem, à RTP 3, de Miguel Sousa Tavares. Um interessante varrimento sobre aspetos diversos da sua mancha de vivências, mas também opiniões sobre temas variados. Dos mais antigos, aos mais recentes – em número muito restrito neste último caso. Vejamos, então, alguns dos tópicos abordados por Miguel Sousa Tavares.

Em primeiro lugar, a sua passagem pela Escola Primária de Jazente. Contou-nos o Miguel que era a única criança da turma – seriam meia centena de pequenotes – que ia calçado para a escola. Alguns levariam tairocas em madeira, mas muitos outros iam, permaneciam na escola, e voltavam para casa descalços. Depreende-se que seria assim ao longo de todo o ano letivo.

Não ponho em causa a palavra do entrevistado, mas a verdade é que tenho dúvidas sobre o alcance desta amostra. Tenho dúvidas porque nunca conheci nenhum rapaz ou rapariga da minha geração que se visse na contingência de viver de um tal modo. Jovens dos mais diversos quadrantes sociais, desde os de Cascais ou do Estoril, aos da envolvência de Campo de Ourique, determinada pelo Casal Ventoso, Fonte Santa, Terramotos e parte antiga de Santa Isabel. De resto, tenho fotografias das turmas a que pertenci, sendo que em nenhuma é possível ver, ou depreender, uma tal realidade.

Acontece até que em Campo de Ourique, no mínimo, existiam três vilas, lugares onde viviam famílias muito pobres, embora, de um modo muito geral, com trabalho. Ora, eu conheci, e brinquei, com mil e um rapazes dessas vilas, nunca tendo encontrado nenhum que, no dia-a-dia, se visse na contingência de andar descalço. Coisa já diferente era ter de jogar a bola na rua, onde era frequente muitos jogarem descalços, a fim de não correrem o risco de destruir o calçado, entretanto colocado em bom porto.

Depois de casar – já até dois anos antes –, conheci Almeida, tendo constatado as marcas de uma pobreza forte, mas nunca em condições de obrigar os jovens, ou quem quer que fosse, a andarem descalços no dia-a-dia. Mas lá está: já depois da Revolução de Abril participei num jogo de futebol absolutamente informal no estádio da freguesia. Sem equipamento, determinei-me a jogar a guarda-redes, mas de pronto tirei sapatos e meias, porque se o não fizesse seria grande a probabilidade de ter de os enviar ao sapateiro. Em resumo: não pondo em causa o testemunho do Miguel, a verdade é que nunca vi nada de comparável, com uma turma de meia centena de jovens, sem condições para usarem sapatos, exceto num caso. Em segundo lugar, o que se terá passado com Francisco Sousa Tavares e Salgueiro Maia.

Contou-nos o entrevistado que seu pai saiu de casa ainda de madrugada, tendo encontrado, por acaso, Salgueiro Maia. É bem possível, só que nessa altura ainda não se colocava a questão do Quartel do Carmo. Ninguém, nessa madrugada, sabia onde se encontrava o então Presidente do Conselho. Tratava-se, isso sim, de tomar os ministérios militares – Marinha e Exército –, que se situavam no Terreiro do Paço. Só muito mais tarde – já de tarde – surge Salgueiro Maia no Largo do Carmo, dado conhecer-se, já então, a presença de Marcelo Caetano no edifício do Comando-Geral da GNR, liderado pelo general Adriano Augusto Pires. Dúvidas que deverão derivar da falta de minúcia do relatado pelo Miguel.

Em terceiro lugar, o caso geral da Direção-Geral de Segurança e polícias predecessoras. O espanto de Sousa Tavares, ao ver no que tudo ia dar no domínio da antiga polícia, só pode ter derivado de um sonho que tomou, ao longo da vida, mormente na infância e na juventude, como sendo uma realidade. Quase com toda a certeza, Miguel Sousa Tavares terá acreditado que nada do que se passava em Portugal era minimamente similar ao que decorria nas democracias europeias. De resto, acabou mesmo, mormente ao redor da pobreza, por reconhecer que não pôde nunca comparar com o que se passava, nesse tempo antigo, noutros Estados da Europa. Ainda assim, mesmo não tendo podido estar nesses países, teria sempre de conhecer certas realidades, como a pobreza nas cidades inglesas, a miséria do sul italiano, a enorme pobreza espanhola, a perseguição aos comunistas nos Estados Unidos, o desmembramento familiar também neste país, etc.. E em todos estes países as agências de segurança do Estado deitavam mão de métodos terrivelmente desumanos. Métodos que deixavam a DGS e polícias predecessoras ao início de uma carreira para carrascos torturadores. De resto, a PIDE chegou a tirocinar com a GESTAPO e com a CIA, embora só se refira sempre a primeira.

Em quarto lugar, o caso das escutas telefónicas. A verdade é que a Direção-Geral de Segurança, no dia 25 de abril de 1974, disporia de umas sessenta linhas telefónicas na Central da Trindade. Tinha-as também nos TLP do Porto, mas em número menor. Em contrapartida, era praticamente impossível operar escutas através da rede dos CTT – servia o resto do País –, por razões que já expliquei e que continuaram a manter-se, por décadas, depois da Revolução de Abril. Só agora, já fruto das novas tecnologias de comunicação, as coisas são diferentes e muito universalizadas em todo o Portugal. Em todo o caso, com uma diferença: é incomensuravelmente superior o potencial de escuta telefónica com o atual Estado de Direito Democrático (e Social). E aqui é importante reter o que o entrevistado ali nos diz da globalidade da prática ao redor das escutas telefónicas nos dias de hoje em Portugal.

Em quinto lugar, o caso da decisão de Aníbal Cavaco Silva sobre dois antigos inspetores adjuntos de segurança. Essa decisão, como se sabe, suportou-se numa proposta do então Presidente do Supremo Tribunal Militar. Simplesmente, o militar em causa só tomou a iniciativa que pôde ver-se em face da ideia que fizera da personalidade política do então Primeiro-Ministro. Tal iniciativa, em minha opinião, nunca teria tido lugar com Eanes, Sampaio, ou mesmo Mário Soares. Embora, neste último caso, eu admita que a iniciativa pudesse seguir o seu caminho, desde que tivesse sido concedida a Salgueiro Maia a mesma prebenda.

Em sexto lugar, o caso dos juízes dos Tribunais Plenários. O que Miguel Sousa Tavares não referiu é que alguns desses magistrados acabaram mesmo por chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. E também não referiu o silêncio que se abateu sobre tal caminhada. Já em democracia e com amplas liberdades, a verdade é que quase ninguém levantou um dedo a toda esta realidade dos juízes dos Tribunais Plenários: nem os magistrados, na sua globalidade; nem a classe política, ao mesmo nível; nem a grande comunicação social.

Em sétimo lugar, o caso do concurso sobre O MAIOR PORTUGUÊS DE SEMPRE, com a traição que teria comportado, para os milhares de emigrantes, a votação vitoriosa em Salazar. Defendeu o Miguel que os que assim procederam não sabiam o que foi o Estado Novo de Salazar, e que o apoio dos portugueses constituiu um silêncio cobarde e uma traição à imensidão que teve de deixar Portugal para poder vencer na vida. Enfim, mostra, deste modo, estar longe da realidade social e cultural portuguesa, ou não ser capaz de a reconhecer.

Tive a oportunidade de assistir à vaga de fundo na votação em Salazar, desde novos a velhos, de gente com estudos a gente pouquíssimo letrada, de portugueses que emigraram aos que o não fizeram, de retornados a permanentes. Sousa Tavares já consegue reconhecer o apoio cúmplice dos portugueses em Salazar e no Estado Novo, mas parece não conseguir perceber que o concurso se suportou, precisamente, no conhecimento de que Salazar sairia vencedor, num tempo em que Abril era já só História.

Parece que Miguel Sousa Tavares dedica um capítulo do seu novo livro a coisas muito pouco cristãs que encontrou, precisamente, no colégio jesuíta de Lisboa que frequentou. Até refere padres que recomendavam à Direção-Geral de Segurança jovens destinados a prosseguirem a sua carreira naquela instituição policial. Simplesmente, tudo isto era incomensuravelmente menos e menos grave do que o que entretanto veio à superfície ao redor da própria Igreja Católica Romana, desde o caso do dito Banco do Vaticano, ao da pedofilia e ao do rapto de crianças recém-nascidas, dadas como mortas – o grande problema de agora é a IURD...–, a fim de serem negociadas com famílias garantidas para a Igreja e para o regime franquista. No mínimo, porque a realidade mundial ultrapassa o pensável...

Foi uma entrevista interessante, mas que nunca referiu esta realidade tão de hoje: afinal, com democracias a esmo e de todo o modo e feitio, o mundo chegou a níveis de horror que nos trazem, em crescendo, o contorno de um desastre humanitário. Temos democracias – ou já não as temos?...–; temos liberdades, direitos e garantias – ou temo-los já completamente em definhamento?...–; temos os novos Estados saídos das descolonizações, mas com a mais cabal miséria dos seus povos, mormente no continente africano; temos a guerra religiosa em franco desenvolvimento, mas que quase todos negam, cinicamente, sem olhar a meios; temos o regresso do racismo e da xenofobia, mas sempre com mil e um a clamarem por novas conquistas; e temos uma comunicação social (quase) completamente enfeudada aos grandes interesses mundiais, ou plenamente envolta na violação de normas legais e fundamentais de uma sã e ética convivência em sociedade. Hoje, nós temos, lamentavelmente, a mais cabal insegurança na vida em sociedade. O resto são sínteses, muitas vezes interessantes, para serem expostas em entrevistas com esta, de Miguel Sousa Tavares.

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