Na Antárctida, do lado errado da placa de gelo

Sou de Campinho, Reguengos de Monsaraz. Mas desde o final de 2015 que estou na Antártida, ao serviço da British Antarctic Survey, na base Halley VI, a estação de investigação científica mais a sul. Por isso passei o último Inverno do lado errado de uma grande fenda na placa de gelo onde a estação estava instalada.

A primeira aurora que vi, logo no início do Inverno passado, que por acaso foi uma das mais intensas dos últimos tempos
A fenda está a propagar-se com alguma velocidade mas a estimativa é que ainda tenhamos uns bons anos até que ameace a integridade da placa. Sei isso porque fiz parte da equipa que todos os meses ia até à ponta da placa com um GPS de alta precisão e uma unidade de GPR (radar de penetração no solo) para determinar a expansão lateral e longitudinal da placa. Brincar com GPSs e GPR a 30 graus negativos e na escuridão total foi das aventuras mais interessantes que por aqui passei.

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Neste Verão foi accionado um plano ambicioso nunca antes tentado: mudar as 1200 toneladas de base para uma outra localização, 24 quilómetros para Nordeste, um módulo de cada vez, de modo ficar do lado "estável" da placa, caso a fenda nos pregasse uma partida nos próximos anos. Este projecto teve bastante atenção nos media britânicos   e tivemos a mesmo a BBC a filmar aqui dois documentários, um em cada um dos verões que aqui passei.

No entanto a placa de gelo de Brunt trocou-nos as voltas mais uma vez. No final de Outubro descobrimos outra fenda, que apareceu durante o Inverno, perpendicular à primeira e a norte da estação. Está-se a propagar a cerca de 500 metros por dia e deve fazer colapsar parte da placa antes do fim do ano. Quando isso acontecer, é impossível prever o comportamento do resto da placa, pois o jogo de pressão do gelo muda radicalmente se a parte norte da placa desaparecer.

Ricardo Almeida
Ainda assim, avançou-se com a mudança da estação para a nova localização, projecto que foi concluído com grande sucesso. A estação neste momento está no lado estável da placa. Se fosse só uma fenda, como no ano passado, arriscava-se mais um Inverno em Halley. Mas com duas fendas, e uma delas a alta velocidade, é demasiado arriscado deixar um grupo de pessoas isoladas aqui durante parte de 2017, numa altura em que uma evacuação exigiria um mês de logística e uns bons milhões de libras.

Estamos agora a desactivar todos os projectos científicos que requerem intervenção humana constante, como os radares de que tomei conta no ano passado, pois não fica aqui ninguém para o fazer. Por aqui ficarão apenas umas estações meteorológicas autónomas e uma rede de GPS, que vai monitorizar o desenvolvimento da placa durante o Inverno. Este último projecto também é da minha responsabilidade e por isso vou ser um dos últimos a abandonar Halley.

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Desde 1956 que Halley funcionou ininterruptamente como uma das principais estações científicas do programa antárctico britânico. Foi aqui que em 1985 se descobriu o buraco de Ozono, revelação que deu origem, quatro anos mais tarde, ao protocolo de Montreal que baniu os CFCs a nível mundial. 2016 foi o último inverno de continuidade. Com sorte as fendas fazem o que têm a fazer e, se a estação sobreviver, os Invernos podem regressar a Halley em 2018. Ou podemos ter que esperar 10 anos. Nesta altura é tudo muito incerto ainda. Está a ser uma aventura a 1000 à hora. Só quando chegar a Portugal é que vou ter tempo para respirar fundo e contar o que aqui se passou como deve ser.

Ricardo Almeida Técnico de investigação, Halley Research Station, Antárctida 
Conteúdo fornecido por Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

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