A bunkerização da Europa

|Hélio Bernardo Lopes|
O cinismo assentou de tal modo arraiais na política, desde a nacional à mundial, que foi ontem possível ouvir de Angela Merkel, na presença do Vice-Presidente dos Estados Unidos, que defendia, tal como o seu Governo, a boa qualidade do jornalismo e a liberdade dos jornalistas, assim gozando, com o sorriso cínico que se lhe viu, o próprio Donald Trump.

E isto apesar de se saber, desde sempre, que comunicação social, setores do poder judicial e serviços secretos sempre conjugaram esforços a fim de operar espionagem política e perseguição mediática e judicial. Foi sempre assim e pela generalidade do Mundo. De resto, ainda hoje estamos à espera de saber quem foram os nossos políticos e os nossos jornalistas – no mínimo...– que também se encontravam envolvidos com os Papéis da Mossack Fonseca. Talvez venhamos a saber lá para o Dia de S. Nunca... Danger et peur obligent.

A verdade objetiva é que o Parlamento Europeu aprovou há dias mais uma medida destinada a operar a bunkerização da União Europeia. Vai esta agora operar um controlo apertado das suas fronteiras exteriores, e mesmo para cidadãos de Estados da União Europeia, tanto à entrada como à saída. Uma autêntica bunkerização da União Europeia, completamente ao arrepio daquela célebre tomada de posição, a cuja luz a Europa não poderia tornar-se uma fortaleza... As palavras e o vento.

Ao mesmo tempo, numa tentativa de defenderem o seu direito à autodeterminação e à independência, muitas centenas de milhares de catalães participaram, num destes dias, numa manifestação em Barcelona a favor do acolhimento de refugiados que chegam à Europa, fugindo de conflitos nos seus países, tentando salvar a vida e em condições mínimas para poderem relança-la.

Estes refugiados, infelizmente, são as mais recentes vítimas das malfeitorias operados pelos Estados do Ocidente – sobretudo a Europa, no tempo colonial, e os Estados Unidos, no período posterior –, que sempre desprezaram os seres humanos dos locais aonde chegaram, explorando hoje os seus recursos a um nível neocolonial nunca imaginado, e mesmo negociando gente e seus órgãos. Até uma nova escravatura acabou por regressar, mormente desde que a globalização potenciou o modelo neoliberal. Tudo vai, como pode hoje ver-se, de mal a pior.

Teve, pois, toda a razão o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, ao pedir há dias, em Munique, o fim da ordem mundial dominada pelo Ocidente, manifestando a esperança de que o mundo venha a escolher uma ordem mundial democrática – uma ordem pós-Ocidente –, em que cada país seja definido pela sua própria soberania. Bom, seria uma mudança deveras singular, depois da exploração maciça, ao longo de séculos, de povos de todo o mundo.

Tudo isto, porém, ajuda a compreender o crescente desinteresse dos europeus pelo dito projeto europeu – o nome correto é barco à deriva –, porque a todos é dado perceber o cabalíssimo cinismo político dos atuais dirigentes europeus, que mais não conseguiram que minguar ajuda e proteção militar aos Estados Unidos, e construir um autêntico mas inútil bunker para os seus povos. Povos que, de um modo muito geral, nunca puderam pronunciar-se sobre o que realmente pretendem para si e para os seus países.

Infelizmente, este mecanismo de fugir à realidade, evitando discutir os temas realmente importantes, é precisamente o que se encontra por detrás da última proposta do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa sobre a eutanásia: discuti-la a fundo primeiro, tirando todas as dúvidas, e decidir depois. É algo do tipo dos tais dez mil refugiados que Portugal iria receber, ou daquela ideia de Francisco, de cada paróquia receber uma família refugiada... Bom, sempre se diz alguma coisa, embora se faça depois quase nada. Em contrapartida, sobre a bunkerização da União Europeia nenhum dos nossos políticos, com exceção do PCP e do Bloco de Esquerda, se determinaram a pedir uma discussão ampla antes de decidir. Como os povos europeus não são parvos, lá lhes vão crescendo a desilusão e o desinteresse.

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