Vergonha não chega

|Hélio Bernardo Lopes|
O grande desenvolvimento das comunicações permitiu que se visse, certamente por todo o mundo, a recente sessão da Câmara dos Deputados do Brasil, em que foi votada a destituição de Dilma Rousseff. E o que pôde ver-se foi uma verdadeira sessão de loucura. 

Objetivamente, o inenarrável. Nenhum de nós, se pretender contar o que viu a alguém, consegue encontrar um modo adequado de transmitir a inenarrável sucessão de comportamentos que puderam ver-se naquele ambiente verdadeiramente desvairado.

Sabe-se agora que, de facto, se tratou de um comportamento simplesmente comandado por interesses políticos da Direita brasileira e, com toda a certeza, mundial. Uma sessão que bem poderia ter tido algo de similar em Angola, embora de um modo adequado à situação existente neste país, diferente, obviamente, da brasileira.

Se em tempos a OTAN, sob o comando dos Estados Unidos e da Extrema-Direita mundial, pôs em marcha a Estratégia de Tensão, operando atentados à bomba em algumas das cidades europeias, agora o que se opera é a Estratégia do Caos, à luz da doutrina exposta em livro por um académico norte-americano de uma mui prestigiada universidade do país.

Como facilmente se percebe já hoje, a democracia está reduzida a nada. A situação de pensamento único, com a quase completa desvalorização da vida, conduziu o mundo ao estado que todos vão podendo ver. Naturalmente, a miséria acabaria por gerar uma revolta íntima no seio das pessoas atingidas pelo desprezo do poder, hoje realmente comandado pelos grandes interesses financeiros, sem ética nem controlo. Basta ver o que está a passar-se com a deportação maciça de refugiados para a Turquia, ou o famoso caso da Mossack Fonseca, que apenas veio pôr a nu o que sempre se havia conhecido. A verdade, como já se sabe agora, é que tudo vai continuar na mesma.

Durante muito tempo pensou-se que uma alternância por via democrática poderia dar aos acontecimentos um outro rumo, mas a verdade é que casos particulares diversos já deram para perceber que, por aí, nada se mudará. Há muita gente, no seio da classe política dos países, que realmente se encontra envolta no mecanismo mundial que tem vindo a trazer a pobreza a povos de toda a parte. Sobra, pois, o potencial de revolta íntima dos cidadãos.

Acontece que existe a memória, bem como a criatividade, pelo que o recurso ao golpe de Estado militar caiu em desuso. E foi aqui que veio encaixar-se o pensamento do tal académico norte-americano: aproveitar o potencial de descontentamento existente para, por via interna, operar os tais golpes de Estado que outrora eram operados pela força militar. Foi o que se deu agora no Brasil e o que esteve à beira de ter tido lugar em Angola. E foi o que teve lugar nas ditas primaveras árabes. Como pôde já ver-se em todos os lugares em que esta metodologia foi aplicada, o que sobreveio foi ainda pior que o que estava.

Neste caso do Brasil ele é importante por duas razões. Por um lado, porque mostra que é possível destituir alguém eleito por via da atribuição de crimes nunca praticados nem alvo de acusação pelas autoridades competentes. Por outro lado, este caso brasileiro tem todo o potencial para se desenvolver pela generalidade dos países da América Latina, desde que nestes esteja presente um Governo que apoie reformas que vão ao encontro da satisfação de direitos essenciais da generalidade dos seus povos.

O que agora pôde ver-se em direto, e que tem vindo a desenvolver-se ao longo do tempo, suporta-se nisto mesmo e constitui a prova mais cabal de que a democracia, de facto, só serve se for a Direita a dispor do poder. Pude já referir, por diversas vezes, que foi isto mesmo que expliquei a um conhecido meu no dia que se seguiu ao caso dos acontecimentos do Cemitério de Santa Cruz, em Timor. É bom não esquecer que, em dado momento, no primeiro mandato de Obama, Donald Trump chegou a questionar se o presidente era, de facto, norte-americano, ou apenas um naturalizado. Tudo passou a valer.

A razão do potencial deste mecanismo – o tal criado pelo académico norte-americano – reside no grande descontentamento das populações do mundo em face da pobreza gerada pelo atual modelo imposto pelo neoliberalismo e pela globalização. Essa vasta energia de descontentamento acaba por ser canalizada para as ruas ou para uma meia dúzia de criminosos que se suporte na mesma.

O que agora se pôde ver no parlamento brasileiro não pode ser qualificado de vergonha, porque este conceito é manifestamente insuficiente. É, de facto, um verdadeiro golpe de Estado, mas operado à custa da tolerância de enorme parte da população brasileira, completamente desinteressada com o facto de estar a maior parte dos acusadores de Dilma envoltos em processos judiciais. Vergonha já não chega.

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