Torcer a História

|Hélio Bernardo Lopes|
Contra o que é em mim usual, determinei-me a ler a entrevista de José Milhazes à edição de ontem do i, sendo meu dever salientar a excelente qualidade do entrevistador, que colocou uma série corretíssima de questões muito lógicas e oportunas, numa atitude infelizmente muito rara no jornalismo português. E foi esta realidade que me levou a escrever este texto, também por via das fantásticas respostas, ou explicações, do entrevistado.

Em primeiro lugar, José Milhazes conta que foi para a União Soviética com dezoito anos, após se ter candidatado, e recebido uma bolsa da União de Estudantes Comunistas. Porém, refere que não se candidatara para ir para a URSS, tendo ido porque assim decidiu o PCP: o partido mandou e eu obedeci.

É uma referência que aparenta conter um sabor piadético, assim como se o PCP dispusesse das pessoas sem o seu consentimento. Era – e é –, de facto, assim com o voto de obediência dos que seguem a vida sacerdotal, mas até mesmo aqui se pode parar quando se entende ser esse o caminho correto.

Em segundo lugar, também refere que a Rússia é um país enorme, com um modo diferente de viver e pensar, em que as pessoas agem de outra forma, apesar de também nos referir que um português e um russo, colocados lado a lado, se entendem muitíssimo bem. Há aqui uma espécie de contradição, embora sem grande importância. De resto, conheço, apenas de vista e ao sábado, mulheres russas, em geral bonitas, elegantes e bem vestidas, mas que de tanto nos conhecermos de vista já nos cumprimentamos.

Em terceiro lugar, entra finalmente no livro publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Um livro que não deverei vir a ler, dado que é muito apertado o intervalo de expectativas desconhecidas sobre o seu conteúdo. Nada é mais simples de estimar que o conteúdo desta obra de José Milhazes.

Em quarto lugar, refere que existe uma grande falta de informação sobre a Rússia, e por vezes há já estereótipos criados que dificultam ainda mais a compreensão daquele país e do seu povo. Também acredito que muita gente ainda pense que na Rússia se comem crianças, e não faltará gente conhecida e culta a debitar o perigo putinista, que deverá ser, nos dias que correm, o verdadeiro grande risco para a paz no mundo. E se existem concidadãos nossos a perorar sobre este perigo, bom, os jornalistas da nossa grande comunicação social são nessa modalidade autênticas singularidades mundiais. Jornalistas e políticos, do Centro à Direita.

Em quinto lugar, uma nota muito interessante, porque José Milhazes, pleno de razão, salienta que não existe uma Europa, existem países europeus, e todos eles têm as suas diferenças, sendo que a Rússia é um país tão europeu como Portugal, com as suas especificidades, mormente o seu gigantesco território. Pois é verdade, caro leitor, aqui está uma facto raramente referido entre nós, e que eu tantas vezes tenho apontado.

Em sexto lugar, Milhazes determinou-se a só tratar certos temas, mas por razões de espaço. O problema é que as situações tratadas são só casos em que a Rússia é colocada como a culpada, nunca os mil e um casos em que o Ocidente o foi. Bom, embora não tenha lido o livro, nem vá lê-lo, a verdade é que a pergunta do entrevistador ao redor desta questão confirma cabalmente o que acabo de escrever. Sem espanto, José Milhazes diz ser coisa conhecida o facto da existência de uma corrente de revisionismo histórico que sublinha tanto a ajuda ocidental que se esquece do papel soviético na derrota do nazismo. Conhecida? Mas por quem? Será que José Milhazes discorda da evidência referida por José Pacheco Pereira sobre o império da bola em Portugal? Sei eu, mais uma ou duas centenas e pouco mais. As deturpações históricas oriundas desse revisionismo são passadas de modo subliminar, nos noticiários, nos textos de jornal e em documentários televisivos.

Em sétimo lugar, o caso mais fantástico desta entrevista. Claro está que o pacto germano-soviético foi essencial para os líderes soviéticos, uma vez que no Ocidente tudo foi sendo tolerado aos nazis, ao mesmo tempo que se procurava levá-los a avançar sobre a Rússia comunista. E foi o Ocidente que acabou por pagar a fatura da sua criminosa maquinação. E muitos outros, como se sabe.

Mas José Milhazes vai ainda mais longe, ao salientar a inexistência de um acordo de não alargamento da OTAN, que possa ter sido estabelecido entre a URSS e os Estados Unidos. Pode até nem ter existido, e é até natural que Gorbachev, no mínimo, tenha sido um idiota político. Mas a verdade simples de perceber é que entre dois amigos não é preciso estar a colocar armamento e alargamentos junto à fronteira atual da Rússia. A grande diferença, que José Milhazes também aqui não referiu, é que os Estados Unidos sonham ser os senhores do mundo, coisa que a grande estratégia russa não comporta. O sonho da pilhagem das riquezas russas com impacto económico está mais vivo que nunca.

Em oitavo lugar, o segundo máximo desta entrevista de Milhazes: discutir a questão do cerco russo não é sério, tendo em conta a capacidade de destruição das armas modernas, porque não significa nada ter um míssil na fronteira da Rússia dada a capacidade de destruição das armas existentes, até porque os mísseis que estão na fronteira da Rússia também são visados em poucos minutos. Bom, será agora o momento da Rússia colocar os seus mísseis na Venezuela, ou no Equador, ou no Brasil, porque para Milhazes tudo isso nada tem de mal. E tanto assim que os Estados Unidos nem levantariam obstáculos...

Em nono lugar, José Milhazes coloca esta pergunta verdadeiramente santa: que interesse poderão ter os Estados Unidos em atacar a Rússia? Pois, basta ouvir as vozes de reputados senadores e generais e almirantes, porque a resposta está lá. Mas existe uma razão maior e mais forte, o que se percebe recordando o louco general Curtis Le May: os líderes americanos, tal como boa parte da sua sociedade, são loucos. Vivem aos tiros a cada dia que passa, havendo até um candidato presidencial republicano – e não é Trump – que promete destruir a máquina de cobrança de impostos. De molde que se me suscita esta dúvida: será que Milhazes ainda não se deu conta do estado de loucura da sociedade norte-americana?

Em décimo lugar, o entrevistado brinda-nos com este mimo: há uma coisa que é fundamental, é que se os outros fazem asneiras, não se deve repetir os mesmos erros, sendo essencial olhar o Direito Internacional. Mas não foi o nosso próximo Presidente da República que nos contou que, desde o seu segundo ano de Direito que sabe que o Direito Internacional Público só se aplica ao sabor dos interesses dos poderosos?

Por fim, tudo o que está a passar-se, o caso do alargamento da OTAN, o caso da Jugoslávia, o da Síria, etc.. Bom, nada é da responsabilidade do Ocidente, e em particular dos Estados Unidos. Pelo contrário, a existirem erros, ou responsabilidades, foram sempre russas. Ou, vá lá, quase sempre. E também não deixa de ser muito significativo que José Milhazes se mostre tão favorável à forma, em detrimento da livre escolha dos povos. E porquê? Bom, porque esfrangalharíamos completamente a Europa. Mas qual Europa? A minha União Ditatorial dos Estados Decadentes Europeus, (UDEDE)? A Europa que procura deitar abaixo um Governo e a sua política, só porque o programa não coincide com os interesses que a comandam? A Europa onde uma criança inglesa sem dinheiro para pagar uma refeição escolar é servida com pão? Ou em que uma deputada negra é tratada como empregada da limpeza pelos seus colegas, aborrecidos com a atual entrada de tudo para a política?

Enfim, tenho que ficar por aqui, porque o texto já vai longo e só consegui aflorar metade da entrevista com real interesse para ser dissecada. Para lá de cansar o leitor, estou também já cansado. O que é desagradável, porque a entrevista foi-me fazendo sorrir, embora pouco. Nada de gargalhadas. As voltas que a vida dá.

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