Com décadas, mas muito atual

|Hélio Bernardo Lopes|
Tive já oportunidade de contar duas histórias passadas ao meu redor, já lá vão muitos anos – décadas –, envolvendo a temática do racismo. O tempo que passa, de parceria com a mais recente manifestação racista de Donald Trump, precisamente contra quatro representantes dos Estados Unidos, mas também o que se vem noticiando sobre Beatriz Gomes Dias, candidata do Bloco de Esquerda a deputada à Assembleia da República em outubro próximo, determinaram que volte hoje a contar as duas histórias passadas ao meu redor.

A primeira história desenvolveu-se em torno de uma conversa com certo assistente meu, logo no meu primeiro ano de Engenharia Civil. Um assistente de quem era muito amigo, igualmente bastante mais velho que eu – tinha idade para poder ser meu pai – e com quem dialoguei em certo dia, no meio de um descanso em certa aula prática, sobre as possibilidades de se poder vir a operar, ao longo do tempo, o que ali designou por miscigenação. A dado passo da conversa, tocando a política, o meu assistente amigo perguntou-me, assim com um ar de dúvida íntima e em voz baixa: olha lá, tu acreditas que a miscigenação é possível?...

Malgrado o meu gosto pela política, sempre participando nas conversas ao redor do tema, a verdade é que a pergunta acabou por gerar em mim uma dúvida, levando a que não conseguisse dar uma resposta clara e em que acreditasse. Não sendo um racista, manifestando à superfície das minhas intervenções um sentido claro de justiça, a verdade é que a minha dúvida se constituiu, afinal, numa impressão negativa ao redor da tal possibilidade.

A segunda história envolveu uma certa revolta íntima da minha parte. Numa outra aula desse mesmo primeiro ano académico, fazia eu parte de um grupo de quatro alunos, dirigidos por uma assistente em certa turma prática. Tratava-se de uma jovem muito fina, da melhor sociedade, com origens familiares ligadas a grandes figuras da História de Portugal. Conhecendo o seu nome completo, ninguém deixava de perceber estas longínquas raízes. Era, naturalmente, uma concidadã monárquica.

A bonita e competente jovem assistente dirigia-se a mim sempre cheia de simpatia, fazendo perguntas simples e que permitiam brilhar. Em contrapartida, com o jovem guineense do grupo o seu semblante mudava, perdendo qualquer réstia de sorriso, mostrando mesmo dureza, sem o olhar de frente e sempre fazendo perguntas mais difíceis de responder.

Esta situação, ao final da segunda aula prática, começou a gerar em mim uma reação íntima de revolta, também me colocando esta dúvida: como seria eu olhado pelo meu colega, ali calando e consentindo naquela dualidade de critérios, completamente inaceitável? Na semana seguinte, lá chegou a terceira aula prática. Bom, o resultado foi a repetição do que já antes tivera lugar.

Finda a aula, já no corredor, expliquei aos meus três colegas que se nos impunha mudar de turma. E gizei a explicação a dar ao regente da disciplina: eu e o guineense tínhamos uma incompatibilidade de horários com uma outra disciplina, pelo que se nos impunha passar para uma outra turma prática. Bom, tudo correu como esperado e desejado.

Note-se que em cada turma prática existiam diversos grupos de alunos, pelo que a anterior assistente continuou a manter as suas aulas, evitando sempre nós um qualquer encontro com ela ao final de uma das aulas. E também convém referir que os nossos dois restantes colegas, que sempre viram o mesmo que eu, mesmo não aceitando aquelas atitudes, também nunca tomaram a iniciativa de as evitar, nem questionaram a razão da mudança. Eu propus esta, aprovei a decisão e mudámos…

Ora, o Bloco de Esquerda decidiu escolher a nossa concidadã, Beatriz Gomes Dias, portuguesa há quase meio século e natural do Senegal como candidata a deputada à Assembleia da República por Lisboa.

Esta nossa concidadã concedeu há dias uma entrevista ao Público, tendo de pronto surgido reações diversas de ódio. Nada, pois, que não fosse de esperar, dado que a sociedade portuguesa sempre se mostrou como fortemente racista. Uma realidade antiquíssima, estrutural, que nunca desapareceu e que volta agora a ressurgir com mais força na sequência da eleição de Donald Trump para a Casa Branca.

Diz agora Beatriz Gomes Dias que as negras que nascem em Portugal são estrangeiras no seu próprio país. E tem toda a razão. Infelizmente, não posso aqui expor uma conversa de que tomei conhecimento – o facto passou-se mesmo –, que a quase todos deixaria verdadeiramente atónitos, talvez até sem que se conseguisse dar crédito ao que eu vim a saber.

De molde que surge a questão: que fazer? A verdade é que não sei. Não acredito que a ação da escola seja eficaz, embora haja muito a implementar neste domínio. A verdade, porém, é que não é assim evidente que os professores sejam todos claramente antirracistas. Muitos não o dirão, nem farão nada em favor da ideia racista, mas terão sempre a tendência para calar sobre o tema. E mesmo os alunos que possam aderir a um sentimento antirracista, talvez possam encontrar em casa algum freio que possa conduzir a uma atenuação dos valores que haviam sido adquiridos.

Tenho para mim que o principal fator com impacto social será o da presença de concidadãos nossos, oriundos de etnias diversas, no desempenho de cargos públicos, mormente no domínio político, que é aquele que se poderá mostrar mais sensível à tal ideia colocada, no fundo, por aquele meu antigo assistente.

A verdade é que a realidade relatada por Beatriz Gomes Dias está longe de ser só nossa. Olhemos os Estados Unidos, o Brasil e tantos outros Estados, e logo nos daremos conta de que se trata de uma repugnante situação mundial. Para já não referir o estado em que se encontram os povos e os países africanos. Entre outros.

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