Trágica vergonha

|Hélio Bernardo Lopes|
Os sucessivos acontecimentos que vêm tendo lugar com a tragédia dos migrantes que demandam o espaço da União Europeia, de parceria com a atitude de Donald Trump no domínio da imigração que procura os Estados Unidos, mostra bem como o Ocidente, de um modo extremamente geral, está na base do sofrimento das vítimas que nos vêm pressionando e se vêm vendo abandonadas à sua sorte em crescendo.

A chegada dos europeus ao continente africano, tal como à grande região do Médio Oriente, se poderá ter deixado novas realidades que se possam ter mostrado úteis e conseguirem até manter-se nos dias de hoje, deixaram, porém, uma terrível mancha de dependência, uma ausência de bases para um adequado desenvolvimento e o suporte cultural para a implementação profunda de uma estrutura de corrupção que inviabilizaram completamente uma real condução da soberania dos povos em causa.

É interessante reparar em certa conversa de Salazar com amigos seus, que chamaram a sua atenção para o facto de estarem diversos países europeus, também longínquos detentores de territórios em África e noutras partes do Mundo, a concederem independências a muitos desses territórios, mostrando-se, no mínimo potencialmente, defensores de um tal caminho. Por rápido, Salazar salientou que tais Estados da Europa dispunham de capacidade para explorar esses territórios em regime neocolonial, condição a que Portugal não satisfazia.

Este diálogo é interessante, porque mostra que a concessão das independências africanas, no mínimo, foi feita com má-fé política, já que tinha como objetivo atribuir uma aparência de poder soberano, a ser exercido por políticos inexperientes, psicologicamente subordinados aos antigos colonizadores, na sua generalidade potencialmente suscetíveis de se tornarem correias de transmissão dos grandes interesses dos Estados colonizadores. O resultado está cabalmente à vista.

Nos dias que vêm correndo, tem sido possível assistir ao modo como os países ocidentais que foram os principais exploradores dos territórios tornados independentes voltaram a intervir nos mesmos, operando golpes de Estado, promovendo guerras sangrentas, aliciando tais países para a compra de material militar, promovendo refregas religiosas, etc.. Como teria de dar-se, desenvolveu-se um sofrimento sem limites, completamente fora do suscetível de ser imaginado pela generalidade dos ocidentais, eles também a caminho de um empobrecimento lento mas sustentado, como usa dizer-se nestes dias.

As guerras assim criadas, naturalmente em nome da democracia e dos sempre badalados Direitos Humanos, gerou a destruição muito vasta de valor nesses Estados aparentemente soberanos e criou terríveis guerras civis de geometria variável ao ritmo semestral. Em contrapartida, trouxe, por igual, o terrorismo ao espaço europeu, tal como sucessivas ondas migratórias por razões que sempre se reduzem à tentativa de salvar a vida. Nuns casos para fugir à morte quase certa da guerra, noutros para procurar o essencial trabalho que permita subsistir.

Ao início, com o fantástico cinismo dos poderosos, a União Europeia e os seus Estados pareceram dar uma ideia de humanismo solidário. Um ou dois, porém, de pronto se demarcaram de tal iniciativa solidária, invocando, entre outros, fatores religiosos. Num ápice, porém, começaram a surgir novos Estados em número lentamente crescente. A verdade, todavia, é que quase todos pensavam de igual modo. De molde que, para lá de terem ficado a Grécia e a Itália como os únicos países que arcaram com a plena responsabilidade por tudo o que pudesse aportar às suas margens, acabou mesmo por poder ver-se a Alemanha negociar com a Turquia de Erdogan no sentido de servir esta como tampão contra novas levas de migrantes a demandarem a União Europeia.

Esta infeliz iniciativa alemã acabou por ser seguida pela Itália, desta vez tentando conseguir o mesmo, mas através da Líbia que os europeus de hoje ajudaram a criar. Bom, para já, não resultou. Agarrando-se a questões menores, os mais sensíveis à defesa dos Direitos Humanos e da vida deitaram-se a salvar o maior número possível de migrantes à deriva, conhecedores de que entrega-los à (dita) guarda costeira líbia era uma outra forma de os condenar à morte. Dentro da melhor tradição europeia, poderão os autores deste ato solidário e muito humano ficar à mercê de uma (dita) justiça que só tem como incumbência conseguir a sua paragem em termos de boa vontade.

Na sequência de tudo isto, veio agora a saber-se o que os políticos europeus de hoje já conheciam: milhares de migrantes, entretanto parados na Argélia, viajaram de autocarro até ao início – ou fim – do deserto do Sara, aí deixados com a incumbência de regressarem aos seus países... Achei graça às palavras de Miguel Sousa Tavares na sua entrevista de ontem à RTP 3, quando nos contou acreditar, logo após a Revolução 25 de Abril, que iria nascer um novo Nuremberga! Será que Miguel consegue imaginar uma escala de valores que permita comparar o que encontrou quando esteve na Comissão de Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa em face do que está a passar-se com o que vem gerando os migrantes que demandam a Europa? E será que António Guterres imagina o que quer que seja sobre o horror que se está a gerar, de novo a partir da Europa, naturalmente acompanhada dos Estados Unidos, ao redor deste genocídio contra concidadãos nossos do mundo e de partes as mais diversas?

Por fim, a mais recente tentativa de branqueamento de uma situação claramente criminosa, infelizmente levada à prática pelos que mandam e sempre mandaram no mundo: criar uma (aparente) rede de postos de apoio seguro para migrantes, mormente sob o comando do ACNUR, mas fora do espaço da União Europeia... Se tudo isto não envolvesse uma tragédia humanitária em larga escala – autêntico crime contra a humanidade –, seria caso que nos perdêssemos de rir com esta mais recente ideia dos políticos europeus, que simplesmente percebem, há muito, o que ontem referiu Ricardo Pais Mamede, na RTP 3: o problema do mundo é o da escassez de recursos e não de pessoas, onde o seu número não para de crescer, mormente no espaço do Islão. Uma trágica vergonha para a União Europeia, para os seus Estados e para quem realmente continua a mandar no mundo.

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