Visão distorcida

|Hélio Bernardo Lopes|
Não deixa de causar-me alguma admiração o modo distorcido como se olha a vida da Rússia dos nossos dias, ao mesmo tempo que se finge não ver casos muitíssimo graves que vão tendo lugar por paragens diversas do mundo. 

Uma realidade que marca, infelizmente, a vida política portuguesa, mormente no domínio da nossa política externa. Uma marca tanto mais forte quanto a nossa política externa é hoje conduzida pelo PS, partido desde sempre ligado à grande estratégia dos Estados Unidos – o caso supremo em Portugal.

Ora, hoje mesmo, o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, salientou que houve uma alteração radical na política externa russa, com a anexação da Crimeia, com a interferência dos assuntos internos da Ucrânia e mais recentemente com uma série de comportamentos hostis. Uma afirmação em larga medida verdadeira, mas sobre que se impõem duas referências: nunca o mesmo seria dito, em condições similares, sobre os Estados Unidos e evita-se referir o que se situou a montante daquelas ações russas.

Aquele nosso ministro, por exemplo, não se determinou a referir o cerco à Rússia progressivamente operado pelo Ocidente, sob comando dos Estados Unidos, com cabal violação do que havia sido acordado após a chegada de Gorbachev ao poder. E nem pestanejará perante o dito por não dito dos Estados Unidos, por exemplo, ao acordo estabelecido por estes com o Irão.

Do mesmo modo, Santos Silva esquece, como teria sempre de dar-se, o golpe de Estado operado pela Alemanha na Ucrânia, assim derrubando um governo democraticamente eleito, substituindo-o por outro mais ligado aos interesses ocidentais e claramente contrário aos interesses russos. Imagina-se o que não seria dito se tudo isto tivesse sido operado sob batuta russa... E, como natural consequência deste tipo de tomadas de posição, olha-se apenas para o caso da Crimeia, como se não existisse a História. É a diplomacia e o alinhamento incondicional com Washington em movimento.

Por fim, a tal série recente de comportamentos hostis que a Rússia vem praticando. Conhecendo o que está implícito nestas palavras, justifica-se perguntar se tudo o que Julian Assange e Edward Snowden revelaram ao mundo se pode igualmente considerar como atos hostis do Governo dos Estados Unidos? Se acaso o foram, a verdade é que do Estado Português nem uma palavrinha se ouviu. Sempre bons alunos... E o que dirão hoje Salazar, Marcelo e Cunhal de todo este comportamento dos nossos detentores de soberania – da que resta, claro está?

Acontece que o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros até se congratula com o facto de os últimos dias terem mostrado que todas as partes envolvidas têm procurado evitar qualquer escalada. Simplesmente, essa escalada está à espreita, porque já se percebeu que a tal saída dos Estados Unidos da Síria será continuada por uma acrescida guerra por interpostos aliados, certamente comandados por Israel e Arábia Saudita.

Claro está que logo que volte a estalar a guerra na Síria, num ápice o Governo Português, naturalmente alinhado, sempre de modo incondicional, com os Estados Unidos – recordar a ação de Durão Barroso e o silêncio de Jorge Sampaio no caso da Cimeira das Lajes –, passará a de novo apontar o dedo às perturbações russas e iranianas.

Chegado um tal dia, de novo o Governo Português apontará o comportamento do Kremlin como obrigando a uma (nova) adaptação da Aliança Atlântica e da União Europeia às ameaças assim supostamente surgidas de Leste. Uma realidade que traduz uma visão profundamente distorcida dos acontecimentos mundiais e que só por acaso poderá desembocar num porto de paz para o mundo.

Quando agora observo este tipo de tomadas de posição dos políticos portugueses de hoje, e recordo a firmeza de valores e de atitude soberana do meu tempo de liceu e de universidade, não deixo de colocar esta pergunta: esta malta, naquele tempo, andou a bater-se, afinal, em nome de que valores? Enfim, uma tristeza.

Por fim, uma notinha, por acaso muito ligada ao meu filho. Conversando com certo embaixador amigo, minha mulher expôs, em certo dia, por mera casualidade de rua, a ideia do filho de seguir a carreira diplomática. Num ápice, por via de um sorriso espantado, dele recebeu esta reação: ele que não pense nisso, porque é uma vida de permanente farsa, sempre obrigados a dizer o que pode até nem se pensar! Enfim, é a vida...

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