A guerra

|Hélio Bernardo Lopes|
Houve um tempo em que o Papa Francisco repetia com frequência que se vivia uma guerra mundial em pedaços. E um outro em que nos apontou que a atual estrutura económica das sociedades era a de uma economia que mata. E também um terceiro em que, com a ajuda da diplomacia vaticana – a portuguesa foi importante, mas subsidiária –, conseguiu colocar António Guterres como Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. 

Hoje, como já se percebeu à saciedade, mormente em Portugal, nenhuma destas tomadas de posição de Francisco teve um ínfimo de impacto. E de Guterres, como se vai vendo, quase não se fala. Objetivamente, a eficácia da sua ação é praticamente nula.

A GUERRA RELIGIOSA
Ao contrário do normalmente referido, a verdade é que continua a desenrolar-se no mundo (e por quase toda a parte) uma guerra com suporte religioso. É assim na Palestina e é também assim na Polónia. Uma guerra que hoje mostra a sua principal faceta na violência conduzida pelo Ocidente contra o Islão, para o que basta ver o que está agora a dar-se com Nicolas Sarkozy, depois do que a França e outros fizeram à Líbia. Mas também à Síria, que era um país calmo, malgrado não se viver ali uma democracia. E quem diz Líbia e Síria, diz os mais diversos lugares do mundo onde, sem mais nem menos, a guerra religiosa produz inenarráveis sofrimentos. Até uma galardoada com o Nobel da Paz se vê hoje também envolta numa outra guerra religiosa.

A tudo isto soma-se uma perigosa realidade destes dias: a juventude está a afastar-se do Cristianismo, o que só pode assegurar que uma guerra de cristãos contra os que mais crescem poderá estar para vir. Pela natureza das coisas, uma tal guerra terá de ser extremamente violenta e claramente global. De resto, sendo uma guerra religiosa, será sempre terrível, deixando marcas que se projetarão por gerações.

A GUERRA CULTURAL
Também no sentido inverso da realidade desde sempre mostrada pela História, construiu-se o mito de que a cultura dos povos é suscetível de ser vivida sem peias, assim como se falantes de línguas diversas pudessem conviver sem quaisquer problemas, ou na base de que o número não conta, dado estar presente o império do dito Estado de Direito e como se a comunidade pudesse ser tudo não sendo realmente nada.

Em nome da tolerância, esqueceu-se uma regra também essencial à construção histórica das mais diversas sociedades: a lei dos grandes números. Um português no Nepal é um amigo simpático, mesmo um convidado amigo. E dez portugueses são uma excursão. Mas portugueses em número de um quinto da população nepalesa é uma perigosa e perturbadora invasão. As culturas das sociedades são sempre como líquidos não miscíveis. Sempre assim foi e nem mesmo o desenvolvimento científico e tecnológico e a amplitude cultural conseguiram alisar esta realidade. Uma realidade desde sempre conhecida, mas que uns quantos iluminados, certamente com boa vontade e excelentes propósitos, têm tentado fingir não existir.

Por tudo isto, o mundo também hoje assiste a uma guerra de culturas, por muitos designada de civilizações, onde também incluem, talvez primacialmente, a antecâmara religiosa. Até no domínio da gastronomia existem limites dificilmente ultrapassáveis, seja por via de princípios fundamentais, seja pelas limitações derivadas de habituações prolongadas, elas também presas a hábitos e rituais diários deveras enraizados.

A GUERRA DOS INTERESSES
A guerra, porém, derivou sempre dos interesses materiais em jogo. E nunca derivou tanto como hoje, apenas limitada na sua materialização, por via da posse de armas nucleares por Estados diversos do nosso mundo. Estes interesses estão hoje fortemente potenciados, fruto, muito acima de tudo, pelo desenvolvimento das tecnologias, e como consequência da degradação dos valores ligados aos aspetos religiosos, sobretudo os presentes no continente de onde partiram os descobridores do resto do mundo.

É no continente europeu, agora colonizado pela loucura da tortuosa União Europeia, que se situa boa parte da guerra dos grandes interesses que mantêm na miséria e na pobreza povos diversos do mundo, incluindo já os próprios europeus. Em boa medida, esta guerra dos interesses acabou já por desvalorizar o simbolismo e o real valor da democracia e das suas instituições. O que sempre existiu quase deixou de ter valor, surgindo, do nada, autênticas incógnitas que bem podem vir a tornar-se terríveis armas tóxicas. É o preço que se está a pagar por ter adotado o valor económico, os negócios e os lucros de uma ínfima minoria como o centro da ação dos políticos de hoje, realmente ao serviço da grande estratégia destes interesses deixados instalar.

A NOVA GUERRA DOS IMPÉRIOS
Sobretudo por via do fantástico desenvolvimento da China, acompanhado de uma intervenção ampla de empresas e pessoas um pouco por todo o mundo, as velhas potências coloniais europeias de primeira grandeza, juntamente com a Alemanha, mas com o Reino Unido e a França à cabeça, estão a deitar-se como que a reconstruir os seus históricos impérios. Se a guerra tem agora de estar parada na Europa, sobra o exterior, sobretudo África, o subcontinente americano e muitos lugares da Ásia.

Começa agora a perceber-se que as velhas e principais potências coloniais europeias, depois de terem semeado a violência, a exploração e a guerra pelos territórios do mundo a que chegaram em séculos passados, bem poderão vir a defrontar-se entre si nesses novos lugares de intervenção futura. É o regresso à corrida aos impérios, muito para tentar limitar o prejuízo da grande vaga chinesa e um mínimo risco de negócio armamentista por parte da Rússia. E não deixa de ser doloroso assistir às limitações que derivaram para Portugal de se determinar macaquear o que as grandes potências coloniais se determinaram a fazer. Por isso escrevi um dia que os outros descolonizaram porque quiseram, ao passo que nós descolonizámos porque eles quiseram.

ANTÓNIO GUTERRES
Por fim, António Guterres, uma espécie de recorde absoluto de Portugal no plano da sua intervenção internacional. De um modo imensamente geral – terei sido uma exceção neste domínio –, nunca se referiu em Portugal o papel da diplomacia vaticana na eleição de António Guterres para o seu atual cargo. Nem se terá percebido o real valor da reiterada afirmação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a cuja luz, quase com toda a certeza, se não candidataria ao Presidente da República se António Guterres o tivesse feito. Um tema – este último – que deixo ao cuidado do leitor.

Acontece que, como usa dizer-se popularmente, a realidade tem muita força. E foi o que se tem visto com o desempenho político de António Guterres e das Nações Unidas: o mundo pouco mudou e no que mudou foi para bem pior. Objetivamente, a verdade das palavras do Papa Francisco, de que se vivia uma guerra mundial em pedaços, é cada vez mais verdadeira, mas agora já acompanhada dos preparativos que bem poderão levar a um conflito mundial com armas nucleares, incluindo o domínio da própria Europa. A luta pela manutenção do domínio imperialista do mundo pelos Estados Unidos não para, sobretudo, por se perceber que a China, afinal, conseguiu ultrapassar os limites que foram estimados no período que se desenrolou entre Nixon e George Bush – o pai. E também por ter surgido ao leme dos destinos da Rússia um patriota que se recusou sempre a vender as fantásticas riquezas da sua pátria a pataco.

Perante tudo isto, objetivamente, António Guterres faz o que sempre poderia ter-se esperado do seu consulado: está e expõe problemas do mundo, muitas vezes publicamente. As coisas, porém, vão de mal para pior. Infelizmente, as palavras de António Guterres têm ainda muito menores consequências que as do Papa Francisco.

Estamos hoje à beira da guerra. Desta vez, da guerra nuclear. Uma guerra que o Ocidente deseja à luz da ideia de que talvez ainda valha a pena. Porque se essa guerra não tiver lugar, ou fosse perdida, a liderança mundial dos Estados Unidos seria secundarizada. E só Deus sabe por quanto tempo, como pensam os falcões norte-americanos. É isto que está a passar-se e, como se percebe, com um cenário destes à vista, não há Guterres que resista. De facto, é imensamente maior a probabilidade de virmos a ver o mundo envolvido numa guerra nuclear nos próximos cinco anos, que levarmos com o Palácio Celestial chinês em cima, lá para a zona de entre Porto e Minho. Quem me poderia fazer crer, ao tempo da minha juventude universitária, que ainda viria a assistir a um estertor como o que se aproxima velozmente de cada um de nós?

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