O discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa

|Hélio Bernardo Lopes|
Como teria sempre de dar-se, agora que Aníbal Cavaco Silva deixou de exercer o cargo de Presidente da República, tive de acompanhar as diversas manifestações do Dia 25 de Abril. Fi-lo desde o início e, graças às atuais tecnologias, pude acompanhar tudo o que sobre o tema passou pela nossa grande comunicação social.

Como ponto central estava o discurso que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa iria proferir na Assembleia da República. E, sendo um discurso muito expectável, foi também bastante abrangente, que consigo não transportou nada de verdadeiramente novo, permitindo, pelo que disse e pelo que não disse, apreciar o potencial de decisão política do atual Presidente da República. Neste sentido, este texto, para poder ser cabalmente compreendido, terá de ser longo, de molde a integrar o leitor na plena interpretação do que foi dito neste Dia 25 de Abril pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Pelo acaso da vida, Marcelo Rebelo de Sousa viveu sempre no âmago na política. Sempre adorou a política, o culto da sua História, e o desenvolver de raciocínios e conjeturas sobre a coisa pública, tanto no plano nacional como no internacional. Estudando os clássicos, a filosofia e vivendo uma opção religiosa oriunda da educação recebida, tudo acabou por contribuir para a aquisição de um invulgar grau de liberdade na apreciação da vida política geral. A carreira no Direito completou este quadro.

Tudo isto foi depois mostrado aos portugueses através de um simbiose única entre política e comunicação social, operada ao longo de décadas, para mais através de quase duas nas televisões. Por este leque de circunstâncias, é hoje possível perceber que Marcelo Rebelo de Sousa foi sempre, e é, um liberal. Um liberal naquele sentido que era o da posição política de Francisco Sá Carneiro, que nunca foi, de facto, um social-democrata.

Embora não recorde agora com garantia, é quase certo que Marcelo Rebelo de Sousa terá votado em Soares Carneiro contra Eanes, em Freitas do Amaral contra Mário Soares e em Cavaco Silva contra Jorge Sampaio. É mui elevada a probabilidade de ter sido esta a realidade, sobretudo, em face do seu constante apoio às posições políticas do PSD – não tanto do CDS/PP – nos seus milhares de comentários políticos. Foi por ser esta a razão que, num comentário meu para com um seu colega académico, salientando que ele errava em tudo, sendo catedrático, enquanto eu acertava em quase tudo, não o sendo, dele ouvi esta resposta: ah, mas é que o Marcelo está ali a defender o partido dele! Ora, esta realidade não mudou.

É também essencial recordar que as críticas à anterior Maioria-Governo-Presidente eram incomensuravelmente menos contundentes que as de Manuela Ferreira Leite e José Pacheco Pereira. Até que as de Luís Marques Mendes ou Rui Rio. Não eram corretivos, antes ligeiros abanões. E foi sempre essa razão que retirou a esses comentários real importância e impacto político. Apenas Pedro Santana Lopes e Rui Gomes da Silva se deixaram levar pelos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa. Uma realidade a que Sócrates nunca aderiu.

A campanha eleitoral recente que conduziu Marcelo Rebelo de Sousa a Presidente da República mostrou o que se está hoje a passar: o mecanismo dos afetos. Sendo absolutamente essencial, é da maior importância que os portugueses não esqueçam o estado de pobreza que atingiram com a anterior Maioria-Governo-Presidente, mas também que tal é sempre um horror, com ou sem afetos. Com ou sem grandes atribuições de galardões a personalidades do PS. Os portugueses não vivem disso.

Nessa campanha eleitoral o académico António Sampaio da Nóvoa assegurou, logo na apresentação da sua candidatura, que os portugueses seriam sempre auscultados em tudo o que se prendesse com futuras perdas de soberania, o que Marcelo Rebelo de Sousa nunca garantiu. E aí temos nós o tratado entre os Estados Unidos e a União Europeia, feito às escondidas, sem que o tema seja exposto aos portugueses e por estes avaliado. Nada, pois, de ouvir os portugueses.

Já no desempenho das suas novas funções de Presidente da República, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem mantido as melhores relações com o Governo do PS de António Costa. E

uma das nuances introduzidas pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi o conceito de Estado Social de Direito. Nunca este conceito foi utilizado pelos seus predecessores, de pronto introduzindo, de um modo subliminar, a ideia de que os Direitos Sociais dos portugueses poderão estar agora seguros com um Presidente da República como Marcelo Rebelo de Sousa.

Acontece, porém, que o Estado Social não é uma brincadeira para os portugueses. O Estado Social, que a anterior Maioria-Governo-Presidente procurou destruir a todo o custo, constitui a garantia do Direito às reformas já atribuídas, o Direito de acesso ao saber, independentemente de se ser rico ou não, e o essencialíssimo Direito a poder tentar salvar a vida, através do acesso rápido e sem problemas, a cuidados de saúde. Tudo isto já vigorava quando surgiu a anterior Maioria-Governo-Presidente.

Claro está que esta realidade só pode ser operada através do esforço de todos e para todos. Qualquer outro critério conduzirá sempre a exclusões sociais terríveis. A verdade, porém, como se vai vendo, é que a Direita – PSD e CDS/PP – continuam a bater-se em defesa da continuação do desastre humanitário a que conduziram milhões de portugueses. Mais: já todos se aperceberam de que essa Direita deseja hoje, intimamente, o desastre da atual governação, o que será sempre muito facilitado pela nefanda e antidemocrática ação do poder da oligarquia europeia.

Pelo lado do Bloco de Esquerda, do PCP e d’Os Verdes, a decisão de hoje é a de sempre: manter, de facto, o Estado Social, ou, como agora o designa o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, o Estado Social de Direito. Resta saber, porém e com clareza, se o PS de António Costa assim vai proceder, ou se vai deitar-se a seguir a forte moda do momento, e que é a de mudar a estrutura pública da Segurança Social, ou seja, pôr-lhe realmente um fim. O que o PS vier a fazer marcará, definitivamente, o futuro político do PS aos olhos dos portugueses.

Para já, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem vindo a bater-se pelo Serviço Nacional de Saúde, embora esta realidade seja incontrolável ao nível dos cidadãos, ou seja, o contrário da Segurança Social e das reformas e pensões. Não têm faltado palavras e atos envolvendo o setor da Saúde, bem como o envolvimento de personalidades marcantes do PS ou mesmo, como agora se viu, a simpatia e gratidão para com os Capitães de Abril e o Povo. Simplesmente, os grandes problemas para os portugueses não são esses, antes a as reformas e as pensões, o acesso ao saber e o acesso garantido a cuidados de saúde. Tudo o resto vale, ao pé destas realidades, muitíssimo pouco. Mas vamos, então, ao discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Foram muito fortes e frequentes as referências a Abril, e mesmo a saudação aos Capitães de Abril, que ali estavam de novo. E até saudou o Povo, referindo que converteu a Revolução de Abril no Estado Social de Direito. Uma afirmação – esta última – que só simbolicamente corresponde à realidade, porque a Direita desde sempre tudo tentou para inviabilizar toda a mui boa estrutura do Estado Social que a Esquerda havia criado. E foi por ser esta a realidade que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa considerou que toda a revolução é feita de várias revoluções, concluindo que a Constituição de 1976 assumiu o compromisso possível…

Logo de seguida, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa referiu terem surgido, em pouco tempo, quatro desafios cimeiros: descolonização, democratização, integração europeia e construção de uma nova economia.

Quanto à democratização, as coisas estiveram longe de ser lineares, sendo bom recordar as explicações do Conselheiro de Estado Domingos Abrantes sobre o modo como António de Spínola recebeu Álvaro Cunhal e os que o acompanhavam e o que desde logo lhes disse. Já por essa altura a democracia era para ser tomada, segundo a Direita, com os adequados limites...

Sobre a descolonização, a verdade é que ela foi o desastre mais que expectável à luz de uma revolução em curso de desenvolvimento. Além do mais, como se vai podendo ver, os seus resultados estão a anos-luz de terem sido assim tão excelentes. Mesmo nos dias que passam.

Já a integração europeia nada tinha que ver com a Revolução de Abril. Nunca teve. Nem mesmo o conceito de Europa era o que depois se tentou criar, mas suportado na base de uma cobiça de dois ou três, ao ponto de se ter posto mesmo em causa a soberania dos Estados mais pequenos e a própria democracia. Um falhanço. Mas um falhanço que só decorreu da vontade (muito mal) iluminada dos fracos políticos que temos tido. E também do enorme desinteresse de sempre dos portugueses pela política.

Em contrapartida, objetivamente, ainda hoje se desconhece o que é essa nova economia a que se referiu o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso, uma vez que o futuro do mundo é decido secretamente e nas costas dos povos. Nunca nada foi exposto do que se pretendia e, por isso mesmo, também nunca se puderam pedir contas a ninguém.

De pronto o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tratou a mudança da economia, em ciclos muito diversos, desde os tempos de há quarenta e dois anos. A verdade é que o anterior Presidente do Conselho, numa das suas Conversas em Família, teve um dia a oportunidade de chamar a atenção para que Portugal, sem as províncias ultramarinas, ficaria reduzido a uma província da Europa. Cabe já hoje ao leitor aquilatar da verdade desta previsão. E devo dizer que nunca da mesma duvidei, logo quando a escutei. Estou convicto, porém, de que, ao menos durante muitas décadas, assim não terá pensado o atual Presidente da República. A verdade é que há sempre quem acredita que a nossa Seleção de Futebol até pode, trabalhando bem, ganhar o Europeu ou o Mundial da modalidade. Sonhos com um caríssimo preço...

Muito interessante é a história que conta dos seus alunos, a quem, vezes sem conta, lhes chamou a atenção para o tempo que não conheceram e para o que foi o percurso que para todos eles é já pré-história. Simplesmente, isso não conta. Ou antes, conta o mesmo que explicar-lhes que com D. Afonso II nem vacina existia para o tétano. O que conta é se os portugueses a tinham há cinco anos e dela se veem privados hoje. Dada a natureza das coisas, é isto que aos tais alunos importa.

De resto, de há muito expliquei, até por diversas vezes, que, sobretudo para os portugueses, nas décadas de sessenta e de setenta a primeira derivada da função esperança pessoal no futuro apresentava sinal positivo, ao passo que hoje – ainda hoje – essa função derivada apresenta sinal negativo. Ou seja: naquele tempo de sessenta e setenta sabia-se, à noite, já na cama, que o dia seguinte não seria pior. Hoje, nas mesmas circunstâncias, sabe-se que o dia de amanhã será pior. Tem-se uma democracia, mas os resultados dos eleitores portugueses são tratados como passatempo pelos mandantes da Europa. Vivemos, de facto, de mão estendida, seja perante a China, a Europa ou Angola.

Logo um pouco à frente, lá nos veio o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa com o discurso de certa Direita católica que por aí anda – e que nunca aceitou cabalmente os partidos e por isso nunca nestes militou –, com a perigosíssima ideia da introdução do caos político na vida do País, defendendo que tem de se repensar o fechamento no sistema de partidos e nos parceiros sociais, recriar formas de aproximação entre eleitores e eleitos, ser mais efetivo no combate à corrupção e mais transparente na vida política.

Quanto à União Europeia, bom, a sua abordagem foi simplesmente inexistente. E bem podia ter deitado mão das mil e uma observações e condenações do Papa Francisco, indo mesmo mais longe. A verdade é que, tal como se deu sempre com o PS, ao nível da Europa o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa lá acaba por aceitar tudo. Por exemplo: nem uma palavra de exigência de clareza e de discussão sobre o tratado entre os Estados Unidos e a União Europeia, negociado às escondidas dos povos e que lhes irá custar uma autêntica neoescravatura. Mas sempre – sempre! – com as (inúteis) eleições livres...

Finalmente – mais uma vez –, os consensos. E em que setores? Bom, num leque de três, mas terminando na… Segurança Social. Uma verdadeira mina para a negociata imoral que o Papa Francisco tantas vezes tem referido ser hoje a marca dominante nas sociedades ocidentais. Sim, porque o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não referiu que o tempo que hoje se vive no mundo é o de guerra religiosa, o da ação de cerco dos Estados Unidos à Rússia e o da omissão de auxílio da União Europeia a refugiados. E também o da Mossack Fonseca, onde, afinal, ninguém parece ter feito nada do que se tem vindo a desvendar. As offshores, como teria de ser, vão continuar...

Foi um discurso inteligente, mas para a grande maioria da população, ou para uma meia dúzia que tudo esquece ao redor da concessão de um qualquer louvor. Mesmo que justo. Mas para uma minoria que esteja atenta, o discurso tem de ser medido pelo que não abordou e pelo que potencia. Se concitou apoio tão geral, para que lado acabarão as coisas políticas por cair?..

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