Democracias a esmo

|Hélio Bernardo Lopes|
Quando terminou o último conflito mundial, o número de Estados independentes era muito reduzido, quase se restringindo aos ambientes europeus e americanos – no continente americano. A Ásia também apresentava já Estados independentes, mas tudo estava ainda muito longe do que hoje se conhece.

Em completa consonância com a anterior realidade, o número de Estados com democracias funcionais era ainda mais reduzido. Passaram a viver-se democracias nos Estados europeus – não todos –, bem como nos países que, no entretanto, como consequência do início das descolonizações, surgiram no âmbito da Comunidade Internacional.

Em mui pouco tempo, constatou-se, de um modo progressivo, que essas novas democracias, tal como praticadas nos seus cenários mais consolidados, foram passando a Estados autoritários e suportados no culto das personalidades que haviam conduzido às novas independências, para, num ápice, se transformarem em autênticas ditaduras. Invariavelmente, a pena de morte foi colocada na ordem jurídica desses países.

Um pouco mais à frente, tais Estados autoritários viram surgir no seu seio guerras civis verdadeiramente sangrentas. Inicialmente motivadas por fatores ideológicos, aos poucos foram-se suportando em elementos religiosos. Precisamente o que hoje tem lugar em países diversos do mundo e um pouco por todo o lado.

Olhando com atenção, são hoje raríssimos os casos de verdadeiras e sentidas democracias a funcionar, por exemplo, no continente africano. As guerras civis, já ao longo de décadas, têm vindo a desenvolver-se em muitos desses Estados, com resultados fratricidas e, em muitas situações, com plenas recriações nacionais. E mesmo nas democracias suportadas num mínimo de tradição, como se dava com a África do Sul, o resultado da (suposta) plena democracia conduziu à completa deceção para com a mesma e a cenários de potencial guerra de raças.

No meio de tudo isto, o caso de Angola, em mui boa medida, é até deveras singular, porque dos acontecimentos militares iniciais – um verdadeiro horror – conseguiu-se passar para um tempo de estabilidade político-social, agora com garantias fortes de poder conduzir-se a uma situação bem mais próxima da estabilidade suportada numa democracia.

Ninguém pode duvidar de que existem em Angola enormes distorções de todo o tipo, de que a mais referente será, porventura, a terrivelmente desigual distribuição da riqueza gerada. Uma riqueza que se suportava, até há pouco, nas mui raras riquezas naturais existentes naquele país. Uma realidade que a crise mundial e mudanças tecnológicas importantes – talvez também graves para extensas regiões da Terra – veio pôr em causa.

Um dado é certo: até há pouco existia paz em Angola, o território vinha conhecendo acréscimos razoáveis de desenvolvimento, mas estavam também presentes as limitações próprias de uma democracia ainda jovem e que saiu, não há muito tempo, de uma guerra civil fomentada, em grande medida, por interesses estrangeiros. Ainda assim, estava-se muitíssimo melhor que no Zimbabué, na Guiné Equatorial, na Eitreia ou numa miríade de outros Estados do continente africano. Simplesmente, as populações angolanas, na sua generalidade, não vivem pior que as sul-africanas. Na África do Sul a realidade da revolta social é a mesma. A grande diferença está nisto: os que contestam a situação angolana não o fazem com a África do Sul.

Nestas circunstâncias, surge a questão: como aproximar Angola, ainda mais, do dito Estado de Direito Democrático? A resposta não é, de facto, muito difícil: por via de pressão diplomática, mormente de Portugal e das Nações Unidas, mas usando de boa-fé e sendo sempre tão realista quanto possível. E também é certa esta outra realidade: um golpe político que derrube a atual ordem constitucional em Angola, com elevadíssima probabilidade, conduzirá a uma situação pior que a atual. O que se tem vindo a ver no leste europeu e no norte africano dão essa garantia, havendo ainda que juntar a toda esta realidade o completo descrédito que se abateu sobre a bondade da generalidade das (ditas) democracias.

O Papa Francisco, há menos de um mês, criticou os que levantam muros, interpretado que foi como estando a referir-se a Donald Trump. A verdade, porém, é que não faltam hoje muros por toda a parte do mundo. O tempo da globalização trouxe consigo a quase completa adulteração do valor da pessoa, acabando por retirar prestígio e credibilidade à própria democracia. E por isso não pode alguém dotado de boa-fé deixar de olhar com estranheza que uma União Europeia que procede contra os refugiados da Síria como se vai vendo, venha agora mostrar-se compungida com acontecimentos recentes de Angola e com um suposto mau funcionamento ali do Estado de Direito Democrático e Social, que é como agora, por razões táticas, por cá se diz.

Se se prestar atenção, por exemplo, ao que agora foi dito pelos advogados de José Sócrates, fica-se com a ideia de que também em Portugal o Estado de Direito estará em autênticas bolandas. E se a isto se juntar o que se tem vindo a passar no Brasil, onde já hoje é indubitável que se está perante um verdadeiro golpe de Estado constitucional – e ilegal –, percebe-se que o caso angolano não pode facilmente ser criticado pelos políticos portugueses ou brasileiros, por exemplo. Nem pelos silenciosos jornalistas, comentadores ou analistas que vão pululando pelas nossas televisões.

O recente caso de Luaty Beirão e dos seus colegas trouxe-me ao pensamento o caso do casal Rosemberg. Os nossos intelectuais desse tempo sempre por aqui asseguraram tratar-se de um casal de inocentes, maltratado e torturado pelo FBI de Hoover. Tal como se havia abatido sobre as testemunhas que teriam contado a verdade dos factos. Nada seria verdade na acusação, horrorosamente sucedida pela execução do casal na cadeira elétrica. Um caso em que esta interpretação se manteve viva por muitas décadas. Pois, há menos um ano, um filho do casal veio esclarecer a História: os pais, de facto, eram espiões da antiga União Soviética.

O mesmo sucede com o recente julgamento de Luaty Beirão e dos seus colegas. Num Estado de Direito Democrático do Primeiro Mundo – Estados Unidos, Espanha, Reino-Unido, França, Alemanha, etc. –, se as autoridades encontrassem o filme que se pôde agora visionar, a condenação seria, quase com toda a certeza, muito pior que a agora atribuída. Mas surge aqui uma questão: será Angola um Estado de Direito Democrático? Pois a resposta é muito simples: depende de quem procura responder a esta pergunta e do que possa convir a certos interesses. Assim, por exemplo, um poeta condenado na Arábia Saudita a muitas chicotadas por escrever poesia, mais ou menos crítica, não consome um infinitésimo do tempo de antena das nossas televisões. E só agora, depois da chamada de atenção de José Pacheco Pereira, as nossas televisões começaram a dar um eco ligeiramente maior aos atentados nos Estados islâmicos. Mas nem pensar em manifestações de vinte ou trinta pessoas no Rossio. É informar, esquecer e seguir.

Em face desta realidade, Angola está incomensuravelmente mais próxima do Estado de Direito Democrático que a Arábia Saudita, o Iraque, o Afeganistão, a Nigéria, a Líbia, o Egito, etc., etc.. Ou que o excelente Chile de Pinochet, que Thatcher tanto apreciava, e que recebeu honras militares no seu funeral. E tudo na maior das calmas dos ditos democratas do tempo. O Estado Português, nesse tempo, nem pestanejou... Para já não referir a trágica Cimeira dos Açores, ao redor da destruição das armas de destruição maciça que existiriam no Iraque de Saddam Hussein. O tal Iraque que é hoje uma democracia internacionalmente reconhecida.

Termino deste modo: se Artur Mas fosse descoberto num filme como o que agora surgiu sobre Luaty Beirão, a justiça de Espanha pespegava-lhe uns vinte ou trinta anos de prisão. E tudo acompanhado do pleníssimo silencio dos Estados da União Europeia e da própria Igreja Católica. Quem pretender uma Angola melhor, pois que lute por ela no âmbito da ordem constitucional hoje em vigor. A transformação que se pretende, para ter êxito, terá sempre de ser lenta, cautelosa e praticada com boa-fé.

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