Nem tudo se resume ao Direito

|Hélio Bernardo Lopes|
Tive ontem a oportunidade de tomar conhecimento de um texto de opinião de José Souto de Moura, hoje juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e que desempenhou em tempos as funções de Procurador-Geral da República. 

Um texto ao redor da hipotética legalização da eutanásia, tema que poderá vir a ser discutido dentro de algum tempo na Assembleia da República e sobre que corre já uma petição pública em sua defesa e com uns bons milhares de apoios.

O texto de Souto de Moura suporta-se, acima de tudo, numa perspetiva absoluta da vida e na sua interpretação à luz do Direito Português, logo a começar pela Constituição da República. E é aqui que falha cabalmente a tomada de posição do seu autor. E porquê? Bom, porque nos dias que correm nada está mais errado que fazer suportar esta defesa com base no Direito. Tenho esta opinião em face da eutanásia, como em relação às reformas, impostas e assumidas pelo Estado, mas sobre que este mesmo passou por sobre, logo que assim lhe conveio, à luz da aplicação da ideologia triunfante desde o fim do comunismo na antiga URSS.

José Souto de Moura tem que ter presente que a palavra pátria está hoje reduzida apenas a um vocábulo, mas sem consubstanciação em termos de vivência íntima. Só se tem pátria se esta existir, e com a natural e lógica independência dos seus detentores de soberania, desde que livremente aceites. E não fui eu, nem a generalidade dos cidadãos, que criou toda esta relativização de conceitos. Mesmo sem ligarem muito à vida pública, a generalidade dos portugueses de há muito percebeu que o nosso dito Estado de Direito Democrático é mera fachada, consubstanciada numa outra expressão, mas sem realidade objetiva. Basta olhar o caso das reformas para logo perceber que as garantias do Estado, nos dias de hoje, valem quase nada. Mas podemos olhar para o acesso aos cuidados de saúde, ou aos serviços de justiça, ou ao saber, para logo se perceber que tudo isto é já só História. O Direito Português garante tudo isto, mas ninguém lhe liga nas forças conservadoras da sociedade.

José Souto de Moura tem a obrigação de olhar o que vai pelo mundo e tomar conhecimento, por exemplo, daquele documentário que ontem mesmo eu visionei com o meu neto, ao redor de uma cidade de tendas em New Jersey. Ou no que se vem passando com os refugiados que vêm demandando a famigerada União Europeia, em face do cinismo e da hipocrisia dos políticos europeus. Ou do que está já a passar-se com o subcontinente americano, para também não referir o descalabro a que chegaram os povos africanos. O preço de mentiras sucessivas, sempre supostamente à luz do Direito aplicável.

O antigo Procurador-Geral da República tem de perceber esta coisa simples: com o andar das coisas do mundo de hoje, onde o deus dinheiro é o único presente e bem acima da pessoa, a eutanásia teria de chegar. Eu mesmo, que não sou juiz conselheiro, expus esta realidade, mais que previsível, em carta que escrevi ao cardeal José Saraiva Martins, enviada para a sua terra natal, sabendo que se encontrava lá. Em síntese, eu escrevia nessa carta que VEM AÍ A EUTANÁSIA.

Passaram já muitos anos sobre uma conversa havida na Cerdeira do Côa, logo após o jantar, passeando na estrada com o meu amigo, Manuel Diniz da Fonseca. E foi dele que pude escutar estas palavras: os católicos preocupam-se muito, com razão, com a defesa da vida intrauterina, mas nada ligam à vida extrauterina. E era – é, aliás – a realidade que se conhece à saciedade. Quase tudo se fica por palavras ou conversa. Veja-se, por exemplo, como caiu logo em saco roto a ideia do Papa Francisco de que cada paróquia recebesse uma família refugiada. Foi um ar que lhe deu...

José Souto de Moura tem que ter presentes dois dados essenciais neste domínio: nem os portugueses são loucos, nem os subscritores da petição iriam da Direita à Esquerda por efeito de um novo vírus. A realidade das coisas é outra, e situa-se no conhecimento de que o valor da vida, com o triunfo do imoral neoliberalismo e da globalização, vale hoje muitíssimo pouco. Vê-se isso com os refugiados: ainda se lhes tenta salvar a vida, mas esta pode depois vir a ser perdida, sem problemas, por via do abandono à sua sorte. E não vale a pena vir com a treta dos cuidados paliativos, porque todos sabem que estes nunca chegarão.

Por fim, os argumentos jurídicos apresentados por Souto de Mora. A verdade é que têm pouca importância, porque poucos desconhecerão que nas aplicações do Direito uma cor pode ser preta, branca ou vermelha. E pode até assumir outras cores, porque o Direito é, objetivamente, o tudo em nada. Com um pouco de experiência da vida, mormente em Portugal, esta é uma lição muito simples de assimilar. Exemplos? Que é feito das condenações dos que, nos bancos, conduziram essas instituições ao estado que se conhece, com a generalidade dos portugueses a terem de pagar? E sempre sem consequências dignas de registo!

O tempo do recurso à eutanásia teria de chegar, tal como salientei na minha carta ao cardeal. Se a vida passou a valer menos que o dinheiro, natural é que surjam descontentes com ela e não estejam dispostos a sofrer sem horizontes. Os portugueses, da Esquerda à Direita, não são loucos e os mais atentos já puderam ver o que sucedeu à ideia do Papa Francisco, no sentido de que cada paróquia recebesse uma família refugiada. Nem o Vaticano recebeu uma delas na sua segunda paróquia!

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN