A Eutanásia

|Hélio Bernardo Lopes|
Já decorridos uns bons anos, tomei conhecimento, por um dos noticiários televisivos da hora do jantar, que o cardeal José Saraiva Martins se encontrava em Portugal e na terra em que nascera. Conhecedor da mesma, e perante o que estava a ter lugar em Portugal, determinei-me a escrever-lhe, certo de que na sua aldeia os CTT sempre lhe entregariam a minha carta.

O centro da minha mensagem andava ao redor da eutanásia, tema sobre que escrevi por esses dias, em face do que estava a iniciar-se Portugal, o meu texto, VEM AÍ A EUTANÁSIA. Tornou-se-me evidente que o desenrolar do modelo neoliberal, acompanhado da globalização, tudo envolvendo a destruição do acesso universal aos cuidados públicos de saúde, sempre teria que vir a potenciar o recurso a um mecanismo como o da eutanásia.

Os anos passaram e com eles passou, por todos nós, a trágica intervenção política da anterior Maioria-Governo-Presidente. Sempre em nome da salvação do Serviço Nacional de Saúde, o Governo de Passos e Portas determinou-se a, progressivamente, ir criando sucessivas condições que sempre teriam como consequência o desmoronar do referido serviço. Desde a iniciativa privada à medicina dita social, aquele Governo acabou por quase destruir o essencialíssimo Serviço Nacional de Saúde.

Sem operar contas rigorosas, antes me atendo a um raciocínio por mero sentimento, estou em crer que um milhão e meio de portugueses com capacidade material para aceder a cuidados privados de saúde é suficiente para justificar o valor do negócio da saúde privada. Para o restante dos portugueses acabariam por sobrar os escombros do histórico Serviço Nacional de Saúde, já então com altíssimas taxas moderadoras e com pressões de todo o tipo sobre os profissionais de saúde, pagos também ao preço da chuva e quase sem limites no tempo de trabalho. Bom, o resultado tornou-se visível e doloroso.

Com uma sociedade extremamente envelhecida, com uma população com baixíssimos rendimentos por via do trabalho possível e sem cuidados públicos de saúde acessíveis, naturalmente que o mecanismo da eutanásia acabaria por impor-se. Esbracejariam em sentido oposto os nossos costumeiros concidadãos, em geral com tudo garantido no domínio em causa, mas a grande maioria acabaria por apoiar, fosse do modo que fosse, o mecanismo da eutanásia.

Pois, a minha previsão já aí nos chegou, através de um manifesto em defesa da despenalização da morte assistida, assinado por bem mais de uma centena de personalidades das mais variadas áreas da sociedade. Gente que vai da direita à esquerda, em geral com referências católicas ao nível da educação recebida, tenha sido em casa ou na escola.

Desde que este manifesto se tornou público levei o seu conteúdo e a ideia que veicula à conversa com familiares, amigos e conhecidos, não tendo encontrado um único que tenha recusado a ideia subjacente ao que é exposto naquele. Embora conheça gente que garantidamente recusará, ao menos na conversa, o caminho defendido no manifesto.

Inquestionável é que a eutanásia vai claramente contra o sentido essencial do valor da vida. Simplesmente, o capitalismo selvagem, entretanto implantado nas atuais sociedades, teria sempre que relativizar fortemente o valor da vida. Basta olhar o modo completamente malandro como os poderes europeus, e mesmo os seus povos, vêm atuando em face dos refugiados. Ou olhar, por exemplo, para a pobreza que varre hoje o continente africano, até extensas partes da Ásia e do subcontinente americano, ou a falhada mudança no espaço do Islão. Tudo, no fundo, consequência do modelo que só serve para promover uma minoria, enriquecida à custa de uma extensíssima maioria.

Esta mais recente ideia – a de legalizar a eutanásia – é similar à aplicada nos Estados Unidos, por decisão do Supremo Tribunal Federal, mandando libertar cerca de oitenta mil detidos. Só na Califórnia. E tudo por razões financeiras. Sendo certo que a esmagadora maioria destes antigos detidos não o deveria ter sido, a verdade é que manter gente presa custa dinheiro, tal como manter vivos muitos velhotes, para mais adoentados e carenciados de cuidados de saúde.

Seria difícil não acertar no que escrevi naquele meu artigo, tal como na carta que então enviei ao cardeal José Saraiva Martins, mas a verdade é que esta ideia de legalizar a eutanásia acaba por ajudar à destruição do Serviço Nacional de Saúde, porque se muita gente se determinar a recorrer àquela prática, as exigências para um serviço em condições vão caindo por terra. Bastará recorrer à eutanásia. Uma tragédia. Uma tragédia que é parte da grande tragédia que o mundo está hoje a viver, desde que os grandes interesses capitalistas se viram donos do mundo.

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