Falta de atenção

|Hélio Bernardo Lopes|
Num destes dias – ontem ou anteontem –, Pedro Santana Lopes foi entrevistado para o programa radiofónico da Renascença, FORA DA CAIXA, e onde teve a oportunidade de abordar os casos recentes de terrorismo islâmico, expondo alguns dos seus pontos de vista e certas preocupações suas. 

Em todo o caso, pareceu-me existir por parte do nosso ex-Primeiro-Ministro alguma falta de atenção à plenitude da realidade que está subjacente aos recentes atentados e a tudo o que os seguiu. Vejamos, então, alguns dos aspetos que estão em causa em quanto se tem vindo a passar.

Em primeiro lugar, Pedro Santana Lopes referiu que os ataques terroristas registados em Paris refletem um choque de diferentes culturas civilizacionais. A uma primeira vista, portanto, Pedro Santana Lopes parece aceitar a ideia de que existe hoje em dia, mesmo um pouco por todo o mundo, um confronto entre diferentes culturas civilizacionais, que é, em mui boa medida, o que defendeu Huntington e em que eu sempre acreditei. Em segundo lugar, o antigo líder do nosso Governo salientou que, nestes casos de supostas ofensas a aspetos religiosos, não há condenações porque os tribunais e a sociedade, em geral, dão cada vez mais valor à liberdade de expressão, de pensamento, de opinião, mesmo prejudicando o respeito que é devido muitas vezes ao bom nome, à dignidade da pessoa humana, aos valores das suas crenças e das suas convicções.

Simplesmente, se fosse outro o caminho, nós teríamos uma extrema dificuldade em definir o que se poderia dizer e o seu contrário. A caraterística essencial das sociedades ocidentais, de suporte judaico-cristão – existem cambiantes –, é o amplo grau de liberdade hoje existente no seu seio. Se tal grau de liberdade não estivesse presente, nós teríamos proibido AS HORAS DE MARIA, e teríamos impedido as mais diversas obras, por exemplo, sobre os acontecimentos de Fátima. Até sobre a vida de Jesus. Muito provavelmente, não se poderia criticar uma encíclica ou outro documento pontifical. A própria denúncia da pedofilia de tantos padres de há muito teria sido proibida, porque estaria a pôr em causa a imagem da Igreja Católica. Etc.. Dan Brown não teria podido editar as suas obras, nem Rushdie teria visto os seus Versículos Satânicos dados à estampa.

Em terceiro lugar, Pedro Santana Lopes refere que a primeira reação de quem olha para um desses cartoons é sentir uma agressão à sua fé, às suas convicções. Bom, a ser assim, tratar-se-á de uma reação estritamente pessoal, que a educação e a cultura, a poderem ser acessíveis, devem ajudar a ultrapassar. Porque a não ser assim, qual é a alternativa válida para Pedro Santana Lopes? Proibir sátiras ou outros escritos sobre temas religiosos? E até onde? E com que consequências, logo mais adiante, para a ampla liberdade que se conseguiu nas sociedades ocidentais? Sinceramente, acho uma perspetiva muito arriscada...

E, em quarto lugar, a completa cedência do Ocidente perante os islamitas, em que se constituiria seguir pelo caminho agora apontado por Pedro Santana Lopes. Os irmãos Couachy, tal como Coulibaly, eram simplesmente uns doentes e uns frustrados. Doença e frustração, em boa medida ajudada pelo Ocidente, ao longo de muitas décadas, que agora se transformaram em criminosos supremos, mas vistos pelos seus como mártires.

Parece-me espantoso que se possa condenar um jornaleco sem grande qualidade, quando crimes muito piores são praticados em Estados nunca tocados pelas armas ocidentais. Acho verdadeiramente espantoso que se pretenda limitar o direito de fazer o Charlie Hebdo o que sempre terá feito, quando se assiste, com a maior calma, às hediondas violações de Direitos Humanos um pouco por todo o lado, muito em especial, em Estados que se reclamam do Islão. Mesmo que o utilizem de um modo adulterado. O próprio Secretário-Geral das Nações Unidas, não há ainda muito tempo, reconheceu que nunca os Direitos Humanos foram tão violados. Refere-se, claro está, às décadas posteriores ao fim das grandes ditaduras, na Europa e no subcontinente americano.

Claro está que os terroristas agora detidos na Bélgica, em França, na Alemanha, na Turquia, no Iémen, etc., não o eram por causa dos cartoons do Charlie Hebdo. Eles defendem uma outra civilização, e que passa pela destruição do tipo de sociedade que se edificou no Ocidente. Ricos como são em petróleo, eles bem podiam conceder às mulheres os mais amplos direitos naturais e desejáveis, como o de estudar, o de poder conduzir, etc.. Pelo contrário: eles, que nos põem em causa – agora até deitaram mão das infelizes palavras do Papa Francisco! –, violam os mais expectáveis princípios que estão na base da ampla liberdade que permite aos cartonistas do Charlie Hebdo um amplíssimo usufruto do direito à asneira e à completa inutilidade.

A uma primeira vista, nesta entrevista recente de Pedro Santana Lopes à Renascença faltou a atenção essencial à completa violação das mais elementares liberdades praticadas nos Estados que se reivindicam do Islão – bem ou mal –, logo a começar pelo Princípio da Liberdade Religiosa. E será que Pedro Santana Lopes conhece capazmente a cabalíssima cedência das autoridades francesas, já desde há um bom tempo, às mais anormais exigências de grupos de extremistas muçulmanos residentes em França?

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