Três entrevistas

Hélio Bernardo Lopes
Escreve diariamente
A recente passagem do quadragésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril provocou o surgimento de uma autêntica catadupa de entrevistas concedidas por concidadãos nossos de relevo na nossa vida social, bem como de mil e um textos sobre aquela efeméride, notando-se, naturalmente, relatos de experiências particulares e diferentes, mas também pontos de vista sobre o que esteve e está em jogo. É sobre três dessas entrevistas que aqui procuro tratar alguns excertos das mesmas.

A primeira entrevista que agora abordo é a de Pedro Rebelo de Sousa ao i. É uma entrevista de quase nulo interesse, mas onde são focados alguns aspetos que entendo justificarem uma palavra breve.

Em primeiro lugar, o entrevistado refere que a nossa Constituição é gigantesca e acaba por ser um monumento obsoleto no século XXI. Que é extensa, bom, é um facto. Mas que se constitui num monumento obsoleto no Século XXI, já é apenas uma opinião. Simplesmente, Pedro Rebelo de Sousa defende uma Constituição o mais simples possível, como a que existe noutros países e que não os tem impedido de ter uma democracia que funciona, uma economia que funciona.

Muito sinceramente, esta última passagem já nem me chega a surpreender, embora deva ser tratada. E porquê? Bom, porque o entrevistado, como desde sempre nos nossos meios de cultura mais elevada, afere o que está em jogo a partir do que há lá por fora. E tanto assim é, que logo refere que aí nunca a democracia ou a economia deixaram de funcionar. É espantoso como alguém com cultura continua a dar o exemplo alheio como referência a ser seguida em Portugal e como acredita que o hábito faz o monge, que é, no fundo, o que se contém nestas palavras de Pedro Rebelo de Sousa: se com um texto constitucional pequeno muitos vivem bem, nós também viveríamos, pelo que devíamos adotar, por igual, um texto desse tipo.

Em segundo lugar, lá volta o mesmo tipo de raciocínio, mas agora ao redor do sistema eleitoral: devíamos inspirar-nos no sistema eleitoral anglo-saxónico. Talvez Pedro Rebelo de Sousa não tenha escutado a resposta que João Cravinho deu a Mário Crespo, ao redor de certo tema: pois é, Mário Crespo, mas é que na Inglaterra há ingleses, enquanto em Portugal há portugueses. A uma primeira vista, para Pedro Rebelo de Sousa, o hábito faz o monge. Foi a pensar deste modo que aderimos à Europa e adotámos o euro, com os resultados que se vêem e mais pressentem.

Em terceiro lugar, o entrevistado diz que ele, em 1977, tal como a juventude hoje, também não tinha emprego. O estágio para o exercício da advocacia não era remunerado, pelo que ganhava a vida com traduções. E os que não podiam viver dos pais faziam como hoje, iam à vida. A verdade é que os estágios de advocacia também não devem ser hoje remunerados, não se percebendo muito bem a razão de não ter emprego em 1977, porque eu mesmo, que tive dissabores na sequência de Abril, logo consegui colocação fácil e na minha área, fosse a política ou a da Engenharia Civil. Mais: em 1978 ainda me foi oferecida a direção do Laboratório de Ensaios em Modelo Reduzido de uma grande empresa pública, com a obrigação de nela assegurar o suporte na utilização do Método dos Elementos Finitos. Entraria com a categoria de chefe de divisão ou à sua beira. Não faltava trabalho.

E, em quarto lugar, o entrevistado refere que em 1977 era monitor-assistente na faculdade e ganhava miseravelmente, porque se tirasse uns mil ou dois mil escudos por mês era uma festa. Bom, caro leitor, acho esta revelação extraordinária, porque eu comecei a ganhar como monitor, no Técnico, cerca de quatro mil escudos, acumulando com o vencimento de tirocinante no LNEC, e que era que quatro mil e quinhentos escudos. Como pude já escrever num outro texto, Mário Lino, já estagiário para especialista, ganhava dez mil e quinhentos escudos. A casa por mim alugada, já casado, no início de 1973, tinha a renda mensal de três mil e trezentos escudos, ganhando a minha mulher perto de três mil escudos como educadora de infância. Como casal, auferíamos cerca de onze mil escudos por mês.

Esta referência de Pedro Rebelo de Sousa ao redor do seu vencimento como monitor-assistente, certamente ditada de memória, seria suficiente para matar o valor da peça. A segunda entrevista é a de António Pedro Vasconcelos, também ao i. É uma entrevista muito interessante, sobretudo, por vir de quem sempre se posicionou à esquerda.

Em primeiro lugar, mostra-se hoje muito pessimista, tem razão quando reconhece que a democracia faliu – e será que não bateu palmas com o fim do comunismo na Rússia?...–, já se deu conta de que há um descrédito total, à esquerda e à direita, e culpa a esquerda social-democrata por ter deixado avançar a direita. Aliás, chega mesmo a salientar que a esquerda tem muitas responsabilidades no que se está a passar hoje, e também que o PS português é uma tragédia e não faz oposição ao estado de declaração de guerra em que vivemos. Por fim, volta a ter razão quando reconhece que a eleição de Soares, em 1985, foi um momento decisivo e a primeira tentativa da direita de fazer um ajuste de contas com o 25 de Abril. De facto, foi já a segunda tentativa, porque a primeira havia sido a de fazer eleger António Soares Carneiro.

E, em segundo lugar, António Pedro defende que tudo o que se está a passar entre nós constitui um plano arquitetado para destruir tudo, para provar que não há dinheiro para pagar a Segurança Social e a Saúde, que é preciso vender tudo. E reafirma: há um plano ideológico por trás disto, reduzindo as pessoas a salários de miséria. Pois, a minha opinião é que tem razão, mas que não retira as devidas conclusões: a democracia, tal como nela terá acreditado, não existe. Os resultados da sua aplicação também dependem da cultura da população. E a nossa, como se sabe, nunca foi muito dada à crença na democracia. De um modo ou de outro, como mais ou menos contenção, viveu-se aqui sempre a sociedade do desenrascanço. E é o que já está a dar-se. Ou António Pedro Vasconcelos vive o seu dia-a-dia desatento ao que decorre logo à sua volta? A terceira entrevista que abordo aqui é a de Vasco Pulido Valente, igualmente ao i. Uma entrevista a que não dedicaria um minuto de atenção, mas que li por via de estarmos a viver o tempo da efeméride que referi ao início.

Em primeiro lugar, o entrevistado minimiza completamente o plano operacional do Movimento das Forças Armadas, salientando logo, em benefício da sua hipótese, que a PIDE devia ter sido um ponto estratégico se o Movimento das Forças Armadas tivesse sido conduzido por alguém com alguma inteligência e sabedoria política.

Sem pretender ser deselegante, parece-me que há nesta afirmação uma certa atitude manienta, mas que revela esta realidade, que creio ser ainda hoje muito desconhecida: a Direção-Geral de Segurança, por razões históricas, de estrutura e por via da defesa das antigas províncias ultramarinas, tinha um grande contacto com centenas de oficiais das Forças Armadas. E, de um modo ou de outro, sempre as colocou como suporte histórico do próprio regime da Constituição de 1933.

Aconteceram, porém, dois factos. Por um lado, a Direção-Geral de Segurança estava contemplada no plano de operações, mas que falhou no respeitante a quem dela estava incumbido. Por outro lado, o que se pôde ver foi que, afinal, a Direção-Geral de Segurança não se meteu a obstruir o movimento militar que teve lugar. Aliás, já assim tinha sido, de um modo muito geral, com o que se passou em 16 de Março, salvo casos muito excecionais. O que estava em jogo era da alçada das Forças Armadas, domínio onde a Direção-Geral de Segurança sempre se determinou a não intervir. Não o podia nunca fazer. É um não problema.

Em segundo lugar, Vasco tem razão quanto à escolha de Spínola para Presidente da República, até porque estava a anos-luz de poder enfrentar as ventanias que, de um modo ou de outro, teriam de vir a surgir. Simplesmente, há coisas que vão acontecendo por si mesmas e que vão sendo introduzidas na narrativa dinâmica em desenvolvimento. É essa a razão das discrepâncias surgidas, com frequência, ao redor de certos factos históricos. Em terceiro lugar, Pulido Valente mostra uma razão inútil ao redor das condições de vida antes da Revolução, ao referir-se à classe média e média-alta: a vida da classe média, média-alta antes do 25 de Abril, era sempre concentrada na poupança, em que ir ao cinema ou ao café era um acontecimento. Não é verdade.

Eu podia citar já aqui colegas meus de liceu e de universidade, filhos de notários, de comandantes da TAP, filhos de coronéis, de comissários da PSP, ou de um dono de leitaria, que saíam sempre ao fim de semana ao cinema. Todos eram sócios do Benfica, a cujos jogos nunca faltavam, incluindo os do Dia do Clube, em que tinha de pagar-se um bilhete de sócio.

Alguns destes meus colegas tinham férias de Verão na Caparica, na Linha do Estoril ou em Sesimbra. Algumas das famílias em causa tinham até segundas casas. Um tio meu – o chamado tio do grupo, como se dizia –, que trabalhava na Companhia do Gás, mesmo em frente aos Armazéns do Chiado, com uma mulher dona de casa e três filhas – primas do grupo, portanto –, tirava, todos os anos, uma quinzena de férias na Caparica. E podia citar aqui casos infindos. Nada era como Vasco refere naquela sua afirmação.

Em quarto lugar, Vasco defende que Salazar se manteve porque era uma ditadura conservadora, não tocou nos interesses instalados. E logo salienta: foi por isso que Salazar recusou sempre o desenvolvimento económico. E completa esta parte com estas palavras: nos discursos oficiais sempre disse que a pobreza é a grande liberdade. Ora, eu tenho em casa os sete ou oito volumes dos discursos de Salazar e não recordo de uma frase desse tipo. Em todo o caso, se foi dita, foi-o raramente e num sentido cristão, não de miséria como fonte de liberdade.

Ora, quando Salazar sobraçou a chefia do Governo talvez existissem interesses instalados, mas eram quase nulos, tal como o poder que detinham sobre a soberania. Claro que se a sua liderança fosse revolucionária e de esquerda, bom, seria esmagado. Simplesmente, isso nada tem que ver com os interesses instalados, porque ainda hoje – naquele tempo era o mesmo –, se os portugueses concedessem sessenta por cento dos votos ao PCP, Portugal seria de imediato isolado. Fico espantado com o facto de Vasco Pulido Valente acreditar que a democracia, no Mundo dos humanos e nacionais interesses, pode realmente ser praticada!

Com toda a lógica – já Vítor Gonçalves abordou o tema com Otelo –, o entrevistador mostra-se crente de que o regime teria de possuir apoio popular, o que era uma evidência para quem estivesse atento e não se deixasse arrastar pelo sonho. Tal como hoje, o português, era tal como o tenho caraterizado: não viu, não ouviu, não sabe, não pensa, obedece. Uma coisa é o que cada um pensa para si ou fala com os seus mais amigos, outra a manifestação exterior desse pensamento. E naquele tempo, tal como hoje, o português não quer chatices, aguenta, barafusta, mas nada faz de concreto. E isto, em minha opinião, é um modo de não pôr em causa o que está, ou seja, de assim apoiar o que está. De resto, também na sua entrevista ao i, Amadeu Garcia dos Santos foi bem claro e conclusivo: aguentámos a II República tranquilamente.

Mas onde Vasco Pulido Valente tem imensa razão é quando diz que o Estado Novo era fundado no Exército, na Igreja e nas polícias. Também tem razão quanto aos queixumes de Salazar face à Igreja, logo em 1958, mas eu não posso aqui explicar muito do que conheço e seria de interesse para Vasco Pulido Valente sobre este tema. Com elevada probabilidade, Vasco também conhece o mesmo, mas não referiu. Também não referiu.

Em quinto lugar, achei graça à bancarrota em prestações, porque nós teremos então vivido sempre nesse estado desde aquele empréstimo só terminado há pouco. A verdade é que com Salazar, e mesmo depois de Abril, nunca se ouviu falar nessa imagem da bancarrota em prestações. Mas é uma expressão cheia de graça e de que já me fartei de falar com gente conhecida ou amiga. Bancarrota em prestações.

Em sexto lugar, Vasco volta a ter razão quando diz que a Europa nunca existiu, sobretudo a partir de 1989 e antes disso não existia muito. E continua com razão quando refere que nós recebemos uma vasta solidariedade da Europa, e que foi a nossa incapacidade de administrar esses fundos e a nossa desorganização como sociedade política que nos levou a este estado. Simplesmente, apesar de ter razão, há um ponto que lhe faltou referir: a corrupção largamente praticada com os dinheiros europeus está diretamente ligada ao modo português de estar na vida. Não existem os políticos, que são maus, e os cidadãos comuns, que são bons e vítimas. Há, isso sim, uma cultura hoje alicerçada em nove séculos de História.

E, em quinto lugar, uma conclusão que é, infelizmente, rara entre nós: a mesma receita aplicada a países diferentes e a culturas diferentes não dá efeitos iguais. Imagine agora o leitor, depois de já ter visto o resultado a que chegou a União Europeia, o que se pode esperar da globalização, de parceria com o neoliberalismo...

E por aqui me fico, depois de tentar dar uma ligeira achega ao que foi tratado nestas três entrevistas. Espero ter tido um mínimo de êxito. Ainda assim, não resisto a referir a pergunta de certo jornalista, no Porto Canal, à candidata Mariza Matias, há dias: se nós vivemos da exploração de territórios fora do hoje nosso, como substituir agora a riqueza que era proveniente desses territórios? Bom, a candidata do Bloco de Esquerda acabou por não responder. É um problema raramente abordado, mas que é a chave do infortúnio criado, para mais com o modo português de estar na vida.

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