Nem no Estado Novo!

|Hélio Bernardo Lopes|
Foi sem grande admiração que há dias pude ler, num grande diário nacional, que há cerimónias religiosas a decorrer em escolas públicas, numa situação em que, por vezes, professores, alunos e funcionários são convidados a participar, ficando os alunos cujos pais recusam tal colocados de parte, com outras atividades.

Embora esta realidade não me tenha causado admiração, a verdade é que este meu sentimento se fica a dever à objetiva degenerescência que constato no funcionamento das nossas instituições, muito em especial no que diz respeito ao cumprimento da Constituição da República e da legislação geral. A este propósito, convém recordar uma história comigo passada no meu sétimo ano liceal e que creio ter já exposto num outro texto.

Nesse ano era reitor do meu liceu o Dr. Mário Mora, professor de Matemática. Este nosso professor não tinha descendentes e havia sido, ao longo da sua vida, ateu. Com graça, constato que, em pleno Estado Novo, tal condição não o impediu de se tornar professor efetivo e de ter sido nomeado reitor do nosso liceu, que era até um liceu misto.

Tendo já tido lugar o Concílio Vaticano II, com as celebrações religiosas a serem já realizadas como agora se dá, o meu reitor acabou por ser aliciado – é esta a realidade – a estar presente num cursilho de cristandade. Como seria de esperar, saiu de lá mudado, no seu íntimo para melhor, embora numa trajetória essencialmente humana, ou seja, com falhanços. E um desses falhanços foi uma manifestação ditatorial do fanatismo que de si se apossara.

Em certo dia, teve lugar no ginásio do liceu, pelo final do turno da manhã, uma missa por alma do falecido professor de Educação Física, Serradas Duarte, de quem era eu muito amigo. Com grande espanto e revolta, vim a saber que Mário Mora havia mandado encerrar os portões, de molde a que os alunos tivessem que assistir àquela cerimónia. Bom, senti-me revoltado, porque sempre me pareceu ser coisa natural que uma prática religiosa tenha de submeter-se à livre vontade e decisão de cada um.

Num ápice, arrebanhei uma trintena de colegas e por ali fomos em direção à reitoria. Após alguma obstrução do chefe dos contínuos – apesar de ser eu a capitanear o grupo –, a verdade é que o reitor assomou à porta do seu gabinete, mandando-nos entrar e fechar a porta. Lá dentro foi-nos dizendo: ó Hélio, mas as missas em português são tão bonitas! Imagina-se facilmente o diálogo.

Ora, este diálogo foi interrompido, a dado instante, pelo padre Alberto Neto – o padre da Capela do Rato, que viria mais tarde a ser assassinado –, que de pronto se voltou para o reitor e lhe disse: Senhor reitor, peço perdão, mas eu mandei abrir os portões do liceu, porque a Igreja não obriga ninguém a estar presente numa missa. Repare-se, pois, que quem quisesse ia, quem não quisesse, até poderia sair do liceu. Isto passou-se no Estado Novo, o tal tempo do fascismo.

Hoje, temos a dita democracia, mas constatamos que, apesar do Estado ser laico, escolas públicas realizam missas no seu seio, impondo aos que as não queiram presenciar que fiquem numa sala como que de castigo. Trata-se, indiscutivelmente, de um retrocesso em matéria de Direitos Humanos. Ora, o que diz a isto o Governo? Pois, o Ministério da Educação refere tratar-se de uma tradição, alegando que só vai quem quer! Algo inacreditavelmente, o Ministério da Educação finge não ter conhecimento de que a colocação dos alunos que não forem à missa numa sala se constitui numa discriminação objetiva, que pode até ter consequências sociais, escolares e psicológicas diversas. Ao Governo, porém, há que juntar os sindicatos de professores, a Associação Nacional das Escolas, a Associação Nacional dos País, os próprios deputados. E mesmo a comunicação social quedou-se pelo JORNAL DE NOTÌCIAS. E com nada mais que uma notícia, embora merecedora de colocação na primeira página da edição em causa.

Por fim, esta saída de Jorge Ascensão, que lidera a Confederação Nacional das Associações de Pais: não temos nada contra esta situação, desde que ninguém seja prejudicado!! Uma inacreditável resposta, porque a discriminação de jovens, colocados numa sala, só porque não quiseram estar presentes numa celebração religiosa, já se constitui num evidente prejuízo para esses jovens. Uma situação semelhante à que teve lugar no julgamento da nossa concidadã Leonor Cipriano, onde foi visionado um filme realizado durante a investigação, e que não podia ser ali passado. Perante a reação do advogado – o filme já tinha sido visionado –, o presidente do tribunal informou os membros do júri de que, na sua deliberação final, não deviam ter em conta o que haviam visto no filme. Simplesmente impossível.

Este caso agora noticiado tem lugar no tempo do dito Estado Democrático de Direito, a que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem vindo a juntar a condição de Social. De resto, desde que o Presidente da República surgiu com a iniciativa de dar corpo à sugestão de Abdul Vakil, que logo se percebeu o renascer de um potencial de pressão e de oportunidade em matéria religiosa. E falam tantos católicos do princípio da liberdade religiosa...

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