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|Luis Pereira| |
Empurra-se uma porta e do interior nascem resquícios de vidas. Em alguns casos as pilheiras continuam com os púcaros de barro de onde sequiosos lábios deglutiram a água fresca da Fonte dos Cavalos.
O sobrado ruinoso, apodrecido, mistura-se já com o musgo e a taipa, tudo num amontoado de inertes materiais a apodrecer com os reles artefactos que ficaram esquecidos no tempo da partida. Aqui um pedaço de barro preto, ali uma tigela, e mais além uma bilha e duas talhas de barro já sem proveito. Está tudo ainda inteiro, mas quando a outra parte do telhado sucumbir, tudo se há-de metamorfosear em lixo, sem préstimo ou valor. Até mesmo as pedras das centenárias paredes desta casa se hão-de amontoar, cansadas de resistir à ausência de um aconchego interior.
A casa do Nordeste está quase morta, e com ela está a morrer um cibo do nossa alma. Houve tempo em que a casa nordestina era a célula que organizava a estrutura económica e social dos núcleos aldeãos, encerrando em si uma linguagem ilucidativa sobre um característico modus vivendi.
A arquitectura tradicional nordestina exprimia um certo pragmatismo existencial, valorizando factores puramente funcionais, em detrimento de superfluidades sem qualquer aproveitamento prático.
Mas esta casa está hoje praticamente desabitada, porque o mundo rural, o mundo agro pastoril, o mudo do bucolismo e dos ciclos agrícolas já quase também não existe.
É adquirido como provável que as estruturas habitacionais tradicionais que pontuam e elaboraram o cerne da aldeia do nordeste português, tenham a sua ascendência arquitectónica em modelos que vêm desde o período romano. A casa de um só piso resulta de uma relação do homem com o espaço de exploração agrícola, e esta estava quase sempre articulada com um núcleo familiar baseado numa economia de subsistência.
Da casa térrea a arquitectura vernácula parece ter evoluído para a casa de dois pisos, mais difundida durante a Idade Média, e que organiza já espaços em diferentes cotas com comunicação facultada por acessos assentes em escadas exteriores. O rés-do-chão era destinado às “lojas”para o gado, à arrumação de alfaias, aos silos, ou à adega; no piso do sobrado arranjava-se o espaço de forma a fazer face às necessidades funcionais e sociais do agregado familiar. Tanto num caso como no outro, a casa rural do nordeste exprimia um significado cultural de linguagem ecológica, baseada no aproveitamento racional de materiais que o meio ambiente proporcionava.
Mais do que em qualquer outro caso, este tipo de modelagem volumétrica do espaço define a habitação como uma unidade orgânica e integrada dentro do ambiente físico, satisfazendo necessidades funcionais inerentes quer à produção material, quer ao sistema das relações sociais e culturais. Por isso mesmo, Manuel Maria Diogo considera esta arquitectura como “pragmática e de alguma maneira exacta, porque nela tudo obedece a um motivo, sem aditamentos supérfluos e em função de uma utilidade perfeitamente incluída no núcleo onde se constrói e no espaço físico onde se suporta”.
A casa do nordeste exprime, melhor do que qualquer outro documento, a materialização da natureza; ou melhor, a objectivação e concretização harmoniosa da relação homem/meio. E a sua identidade e originalidade residia, precisamente, no aproveitamento dos materiais disponíveis numa proximidade espacial que não implicasse o pagamento de força de trabalho que o modesto camponês da altura não podia suportar. Da conjugação desses factores resultou a operacionalidade, a simplicidade e a beleza da casa nordestina.
Mas essa casa, actualmente, vai dando lugar a outras construções. Essa casa é hoje um testemunho caído de um tempo já sem existência. É hoje o símbolo do abandono. É uma casa arruinada, decadente, sem vida, com um semblante tão murcho como os olhos prostrados dos velhos que procuram as carícias do sol no largo soalheiro da Fonte dos Cavalos.