Morreu o Leandro Vale. O silêncio incomoda!

|Luis Pereira|
Morreu o Leandro Vale, sabiam? Talvez não saibam, é natural. Afinal quem tinha por missão de levar a mensagem calou-se num torpe e incomodativo silêncio, num triste e lamentável silêncio, que tão transparente é.

É transparente este silencioso descuido de não noticiar, porque deixa transparecer a translúcida concepção do jornalismo pacotilha que me incomoda, como me incomoda, e tanto me incomoda, este silêncio gerado à volta da morte de Leandro Vale.

Morreu o Leandro Vale, sabiam? Talvez não saibam, porque não houve o raio de um meio de comunicação local ou regional ou nacional, ou...sei lá… planetário, que o tivesse noticiado. Quer dizer, houve apenas um jornalinho, um jornalinho tão livre e independente e politicamente tão incorrecto como o Leandro o foi, que deu a notícia. Sim, foi esse, foi este, fui eu que através do Notícias do Nordeste anunciei publicamente a morte do Leandro Vale; eu e mais alguns amigos do artista que numa última homenagem espalharam a notícia, aos pouquinhos, gota a gota, pelas redes sociais.

Os outros jornais, os grandes jornais, os jornais assim, assim,  os jornais subsidiados e medíocres, os jornalecos e jornalinhos que andam sempre de chapéu na mão calaram-se; calaram-se como que envergonhados de dizer, de homenagear de, pelo menos, cumprir a missão de informar.

Morreu o Leandro Vale. Não sabes? Não soubeste?! Achas que isso não é notícia?! Achas que a morte de um dos mais proeminentes e empenhados animadores culturais da região não merece um necrológico, um apontamento, um parágrafo, uma frase, uma palavra para o teu vasto auditório?!

Morreu o Leandro Vale. Esse mesmo. O fundador do Teatro em Movimento que depois de uma longa e enriquecida carreira como actor, encenador e dramaturgo, teve a sã ousadia de fundar um grupo de teatro profissional em Bragança, de levar o teatro às aldeias, de levar a cultura ao povo. Povo. Talvez seja essa a palavra maldita que o Leandro amou. O Povo, a Liberdade e a partilha.

Morreu o Leandro Vale. Morreu o artista maior num silêncio tolheito, forçado, mesquinho. Morreu o Leandro Vale, esse mesmo, o líder da companhia do Teatro em Movimento que um dia teve a coragem de processar o Ministério da Cultura por este se ter esquecido da sua missão, do seu labor e da sua luta numa terra de pessoas coniventes com o silêncio e o esquecimento. E vejam só, o Supremo Tribunal Administrativo acabou por lhe dar razão num recurso apresentado em relação à atribuição dos subsídios às companhias teatrais. Bonito! Foi bonito de ver e sentir a razão de uma pequenina mas atrevida companhia de teatro do interior a colocar no devido lugar as "inquestionáveis" e "sábias" decisões da administração centralista. Só por isso, se outras e mais profundas razões não houvesse, Leandro merecia ser recordado!

Morreu o Lenadro Vale. Esse mesmo, o jornalista e o escritor de quem se pode dizer que quase não há meio de comunicação regional onde não tivesse escrito ou dito um texto. Mas mesmo assim, Leandro partiu em silêncio, com silêncio, com um incomodativo silêncio, como se todas as fichas técnicas das publicações onde o artista escreveu ou falou tivessem sido rasuradas para se esquecer o seu nome.

Silêncio. Triste e profundo silêncio. Um silêncio que incomoda,  porque o  Leandro inquietou!

Taxa sobre os sacos plásticos? Claro que concordo!

|Luis Pereira|
Entra hoje em vigor a taxa sobre os sacos plásticos, uma medida resultante da aplicação da lei da reforma da fiscalidade verde que pretende refrear o consumo irracional de sacos leves de plástico, um dos factores críticos de poluição ambiental, tendo-se actualmente como cientificamente adquirido que um simples saquito de plástico, cuja utilidade de uso não ultrapassa, em média, os 25 minutos, demora cerca de 300 anos a desaparecer totalmente do nosso ambiente.

Bem sei que ao longo dos últimos anos foram feitas intensas campanhas para promover a reciclagem e que milhares e milhares de pessoas adoptaram de forma quotidiana o acto de reciclar, mas esta iniciativa de taxar os sacos plásticos a dez cêntimos, com IVA incluído, constitui uma medida com alguma evolução, desejável e adequada ao tempo de emergência ambiental em que vivemos, embora possa pecar por tardia e, quiçá, os dez cêntimos um valor ainda demasiadamente diminuto para alcançar a eficácia desejável.

Lembro-me de considerar absurdo quando, no pico do consumismo em Portugal, há cerca de uma ou duas décadas atrás, os hipermercados empanturravam de borla, mas com o consentimento pouco esclarecido dos consumidores, as nossas casas e os caixotes de lixo das nossas ruas com milhares e milhares de quilos de plástico que, quando não reciclado, foi parar aos locais mais improváveis do nosso planeta. Esta má prática manteve-se anos e anos a fio, embora tenha de ser corrigida no imediato, seja com o contributo da taxa que agora vai entrar em vigor, seja com outras medidas que tendam a diminuir o consumo desenfreado de plástico por parte de todos nós.

Pode dizer-se que essa má prática não foi, nem é, exclusiva do nosso país; ela consolidou-se de forma irresponsável e inconsciente em quase todo o planeta com consequências que hoje se sabe serem verdadeiramente calamitosas. Podemos afirmar que o plástico - e não só os sacos plásticos - se transformou numa monstruosa fonte de poluição que nos cabe resolver e erradicar o mais rapidamente possível.

Um recentíssimo estudo produzido por um grupo de trabalho científico do Centro Nacional de Análise e Síntese Ecológica (NCEAS - sigla em Inglês) da Universidade da California-Santa Bárbara (UCSB), fornece-nos números verdadeiramente assustadores sobre a poluição causada pelo plástico, sobretudo devido à dimensão que o problema alcançou e está a alcançar a nível planetário.

Mais de 4,8 milhões de toneladas de resíduos plásticos entram todos os anos nos nossos oceanos, podendo esse número ser ainda mais elevado e atingir os 12,7 milhões de toneladas, o que representa uma magnitude muito superior  à massa de plásticos que flutua nos mares e que serviu, até aqui, para desenvolver cálculos e fazer previsões sobre os níveis de poluição marinhos.

As vagas oceânicas têm carregado detritos flutuantes nos cinco principais oceanos do mundo ao longo das últimas décadas e as correntes rotativas dessas amostras de lixo criaram uma noção básica dos detritos contido nos mares, que em grande parte é plástico, embora até à data tenha sido um verdadeiro mistério a quantidade exacta de plástico que os nossos oceanos retêm.

Este novo estudo, da autoria Jenna Jambeck, Roland Geyere e Kara Lavender Law, entre outros conceituados especialistas em oceanografia, cujos resultados foram publicados na sexta-feira passada, dia 13 de fevereiro de 2015, na prestigiada revista "Science", quantifica de forma mais rigorosa a entrada de resíduos de plástico nos nossos mares e oferece um quadro deveras preocupante, deixando-nos a pensar se os tais dez cêntimos são de alguma forma suficientemente dissuasores ou se simplesmente se vão revelar com absoluta nulidade na alteração de futuros comportamentos.

Só para se ter uma pequena ideia, poder-se-á sublinhar que dos milhões de toneladas de plástico que entram para os oceanos, sobretudo a partir dos 192 países costeiros, apenas entre 6.350 e 245.000 toneladas métricas flutuam na superfície, o que corresponde, segundo os autores deste estudo, a uma insignificante parte do total do plástico derramado e acumulado nos mares.

Este é, portanto, um problema global que também terá de ser resolvido globalmente com políticas concretas e eficazes que deverão ser implementadas pelos diversos estados e em todas as latitudes, tenham esses estados maior ou menor sensibilidade sobre o assunto, ou os seus responsáveis políticos maior ou menor consciência ecológica.

A situação é deveras grave e acentua-se principalmente nos países em vias de desenvolvimento, sobretudo naqueles que não têm hábitos de reciclagem enraizados nas suas sociedades.

Por este andar, e tendo ainda por referência os cálculos do grupo de trabalho do NCEAS, o impacto cumulativo de plástico e de outros resíduos nos oceanos poderá chegar a 155 milhões de toneladas em 2025, o que leva uma das autoras desta investigação, Jenna Jambeck, a dizer que "estamos a ser sufocados pelos nossos resíduos", onde o plástico, devido à sua longa permanência no ambiente, é sem dúvida o principal elemento de tão gigantesco sufoco.

Médicos da “Escola de Hipócrates” foram também responsáveis pela saudável dieta mediterrânica

|Luis Pereira|
Na actualidade muito se tem falado nos benefícios para a saúde da dieta mediterrânica e o consenso sobre esta matéria é de tal ordem que a dita dieta foi proposta e é actualmente considerada como Património Mundial Imaterial da Humanidade, tendo sido elevada a essa categoria pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).

Esta candidatura resultou de um protocolo transnacional e reuniu sete Estados com culturas mediterrânicas, onde se incluem Portugal, Chipre, Croácia, Grécia, Espanha, Itália e Marrocos.

Fundamentou-se esta candidatura em factos históricos associados à cultura mediterrânica, nomeadamente à comida consumida ao longo dos tempos pelos habitantes destes territórios, e que segundo alguns investigadores resultou de um processo adaptativo  de longo prazo decorrente de um aproveitamento dos recursos disponíveis num espaço definido por características comuns ao nível da geografia, do clima, da flora e da fauna típica da região.

Essa fundamentação histórica apelou também ao papel das trocas comerciais e culturais entre os povos que se acantonaram à volta do mediterrâneo, ajudando assim a difundir e a construir um vector comum em termos culturais, onde se incluem, além das festividades e tradições, os hábitos alimentares como o uso do azeite, o consumo abundante de cereais, legumes, frutas variadas e o vinho, particularmente o tinto.

Por certo que à fundamentação histórica desta candidatura, aprovada em dezembro de 2013, faltaram os dados científicos agora difundidos a partir de um artigo publicado no Journal of Ethnopharmacology, que defende o papel crucial dos antigos médicos gregos na simplicidade e na riqueza dos sabores da cozinha mediterrânica.

Ao que parece, desenvolveu-se na antiga Grécia uma escola de discípulos de Hipócrates que através da alimentação tentaram tratar os seus doentes, construindo-se assim uma gastronomia que haveria de prolongar no tempo os seus benefícios para a saúde.

O trabalho de investigação recentemente editado e liderado por John Wilkins, baseia-se num novo estudo de textos escritos pela citada “Escola de Hipócrates” e mostra que esses antigos filósofos e médicos acreditavam que o sabor era um marcador chave da nutrição e da saúde proporcionada pelos alimentos.

O estudo salienta que os antigos gregos primeiro, e os romanos depois,  viam a comida como o elemento central para o equilíbrio e a saúde do corpo humano, facto que levou alguns médicos da época a escreverem autênticos livros de culinária, associando num alimento o seu sabor mais agradável e, ao mesmo tempo, os benefícios que esse alimento trazia para a saúde de quem o consumia. Foi o próprio Hipócrates que escreveu " deixa que o alimento seja a tua medicina e que a medicina seja o teu alimento".

Este trabalho fundador da antiga medicina grega não poderá ser arredado, no entender do Professor John Wilkins, especialista em Cultura Grega na Universidade de Exeter, Inglaterra, da forma como a dieta mediterrânica se instituiu e depois evoluiu ao longo dos séculos, transformando-se, assim, e principalmente devido ao papel crucial destes médicos da antiguidade clássica, numa das dietas mais saudáveis do mundo.

Grande parte do trabalho da análise desenvolvida por Wilkins baseia-se em escritos de um desses médicos antigos, discípulo  da “Escola de Hipócrates”, chamado “Galeno de Pérgamo”, que frequentemente prescrevia aos seus doentes alimentos ricos em alho e cebola para reajustar os seus “níveis de humor”.

Galeno, segundo John Wilkins , vê a nutrição como um terço da arte médica, a que associa a farmacologia e a cirurgia. "Se as pessoas tinham mau humor, ou catarro, por exemplo, então Galeno prescrevia na dieta dessas pessoas muita cebola e muito alho para tornar o paciente mais receptivo à boa disposição”. Evidentemente, que por detrás deste mau humor poderão estar algumas mazelas que as propriedades do alho e da cebola ajudam a combater, como, talvez, o excesso de colesterol.

Wilkins refere ainda que entre os extensos escritos de Galeno sobre comida, ele incluía receitas para diferentes tipos de pão e bolos que deveriam ser consumidos consoante a necessidade de combater uma ou outra anomalia de funcionamento do corpo humano.

Interessante é também o facto que vem de encontro a algumas correntes de nutricionistas da actualidade, e tal como elas também Galeno aborda os perigos do consumo de leite, que o médico filósofo acreditava ser nefasto para a saúde, nomeadamente para o bom funcionamento do fígado.

Galeno, nascido em 129, é considerado um dos mais influentes médicos gregos da “Escola de Hipócrates” e os seus textos foram amplamente difundidos e utilizados durante muito tempo ao longo da antiguidade. Ele acreditava sobretudo no princípio do humorismo, princípio esse que se baseava na ideia de que um excesso ou deficiência de bons fluidos corporais, ou humores, influenciava o temperamento e a saúde das pessoas.

Entre os diferente alimentos considerados por Galeno estão, por exemplo, as lentilhas, que ele recomendava que fossem consumidas após uma breve fervura e com um tempero simples baseado em molho de peixe e azeite. Assim consumidas, defendia o antigo médico, dariam um efeito laxante.

Num outro texto, assinala John Wilkins, Élio Galeno também descreve como os caracóis, um "petisco" tão popular principalmente no sul do nosso país, precisavam de ser fervidos duas vezes em água para reduzir as suas propriedades laxantes. Ele também dá ênfase à necessidade de se temperar sempre os alimentos e acreditava que cozinhar o marisco poderia melhorar as suas propriedades alimentares.

O médico de Pérgamo, uma antiga cidade grega situada na Mísia, no noroeste da Anatólia, próximo do Mar Egeu,  também recomendava ou prescrevia aos seus doentes mais endinheirados especiarias tropicais, como pimenta, gengibre e canela. Enquanto outros médicos seus contemporâneos sublinhavam e  insistiam na importância das frutas e dos legumes.

Um texto de Hipócrates datado de 400 a.C adverte para a importância da cevada, cereais, leguminosas, frutas, legumes, carnes e peixes no equilíbrio da saúde humana. Cenouras silvestres, cogumelos, rabanetes e trufas são outros alimentos de grande importância para os médicos desta altura. No fundo, o que estes médicos preveniam, ou tinham intenção de prevenir, era o consumo exagerado de gordura, de sal e de açúcar, a trindade maléfica que assolou a cultura ocidental nos últimos séculos, sobretudo a seguir às revoluções agrícola e industrial.

Segundo o que o investigador da Universidade de Exeter defende no seu artigo, “a dieta antiga assemelhava-se à dieta mediterrânica moderna, mas sem as laranjas e os limões que entraram posteriormente a partir da China, ou sem os tomates que foram também posteriormente importados a partir da América do Sul”.

Conclui-se assim que a dieta mediterrânica era sobretudo uma dieta baseada nas plantas autóctones,  de onde nasciam produtos  e alimentos que os médicos da altura geralmente preferiam em detrimento do luxo e do exotismo de produtos importados. Por outro lado, a antiga área do Mediterrâneo não era muito pródiga em animais, de modo que o consumo da carne era bastante limitado. Tudo o que se consumia provinha principalmente do solo e do mar e daí a importância do azeite, dos cereais, das frutas, do peixe e seus derivados na dieta alimentar dos povos mediterrânicos. 

As Palavras

|Luis Pereira|
Há uma imensidão de erros que nos nascem das palavras. Eu sei. Mas há dias em que as palavras são lançadas na vida como pedaços vivos de sentimento e depois pairam solitárias e belas até repousarem como exemplo no pretérito dos verbos.

As palavras são os projectos sinceros da nossa acção, o esqueleto do pensamento, a estrutura dos sonhos e da dinâmica histórica.

As palavras são marcas que tingem a alma dos dias. Através delas construímos a vida, transformamos o mundo e moldamos o futuro. Nelas, nas palavras, no combate verbal, na nossa expressão, vertemos o amor, vertemos o ódio, a beleza extrema, o pensamento e a revolta. Há quem diga que as palavras são a feição visível do nosso ser, a parte significado do nosso significante.

Sem palavras não vivo, ou preferiria não viver.

Por isso, o que realmente me irrita, o que me arrepia, o que me revolta são os seres sem palavras. Os seres que sem palavras assistem a tudo com uma resignação de escravo. Os seres que não reagem a nada, mesmo que seja com um grunhido. Os seres que assistem a tudo com uns olhos e a postura medonha de um cão submisso e mesmo se calcados não gritam o sentido da dor.

O ser sem palavras vive apenas preocupado com a sua vidinha, uma vidinha bem arrumadinha no aconchego do lar. E não diz mal do Governo, e não critica o presidente da Câmara, ou a oposição ou o patronato. Muito menos se importa com coisas comezinhas da política, da ciência, da filosofia ou da poesia. O ser sem palavras apenas usa as palavras para rezar, e assim sendo utiliza sempre as mesmas palavras, porque a vida está uma carestia e não se pode desperdiçar.

E se a região está moribunda, ou se a cidade se despovoa, o ser sem palavras encolhe os ombros e de vez em quando até assobia uma música pimba de costas voltadas para o lado dos olhos do tempo.

Discutir não lhe interessa, participar não lhe interessa, debater não lhe interessa, reivindicar não lhe interessa, a região não lhe interessa, o país não lhe interessa…apenas lhe interessa a sua casinha, o seu "empregozinho", a sua doce e sagrada família, o valor da sua casinha, o valor do seu "quintalzinho" e o "perdãozinho" divino que há-de um dia alcançar.

Um ser sem palavras sussurra. Apenas sussurra. E no sussurro odeia o vizinho e depois reza e depois comunga; aponta o dedo ao vizinho e depois reza e depois comunga; trama o vizinho e depois reza e depois comunga, e se pudesse até expulsava o vizinho da existência terrena e depois fazia uma "penitênciazinha" de resignação e ficava assim perdoado.

Um ser sem palavras é um tosco em bruto, um toco sem a alma regada e boa terra que o faça germinar. Um ser sem palavras é um ser resignado, um ser pardo, um improdutivo de ideias, um ser sem interesse social.

Um ser que não tenha palavras para verter no vento, para se indignar, para amar, para transformar ou para fazer a revolta… não é, nem pode ser um democrata!

Ai Trás-os-Montes, como estás emudecido!

Que é feito do nosso sonho?

|Luis Pereira|
Que é feito do  nosso sonho e das tuas palavras de futuro? Prometeste já mais deixar vingar a erva daninha no teu corpo de rosas bordejado de cravos, e agora é o que se vê!

Tudo está seco e árido e os sonhos mirrados e os teus olhos tristes e as crianças sisudas. É assim o meu país de eternas promessas e gente boa que não merece esta dor. E eu a perguntar-te pelo sonho e pelas promessas que a nós mesmos fazíamos quando vertíamos o vinho num minúsculo rectângulo de poesia.

“Aqui está o meu sonho, quero oferecer-to”, dizias-me, e depois enrolavas os teus cabelos ao sol nos meus olhos espantados. E eu prometia-te a protecção eterna e essa imensa paixão vivida em liberdade!

Depois saíamos à rua para aspirar os rostos que connosco gritavam a justiça desejada. E se fosse preciso incendiávamos o corpo num clamor de revolta. E tínhamos a certeza do futuro e da  utilidade da nossa luta.

Pelo sonho é que íamos ao encanto da acção, e éramos felizes no nosso país livre, onde gastávamos escudos em vinho, sandes e sopas que saciavam uma fome ainda jovem.

Que nos aconteceu então? Porque deixamos secar o nosso campo de rosas bordejado de cravos? Porque deixamos crescer a erva daninha em redor do nosso coração? Porque deixamos que o nosso país se transformasse nesta miséria cinzenta onde imperam inescrupulosos verdugos? Porque te esqueci? Porque me esqueceste?

Talvez já seja tarde, mas não desistas. Sonha, luta, age, ama!

E não duvides, e não vaciles, porque enquanto eu viver terás para ti esta pequena ilha de liberdade.

Acende um pouco de incenso!

|Luis Pereira|
«Entrando na casa, viram o menino, com Maria sua mãe. Prostando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra. Sendo por divina advertência prevenidos em sonho a não voltarem à presença de Herodes, regressaram por outro caminho a sua terra.» (Mateus 2:11-12).

Esta passagem no Evangelho de S. Mateus remete-nos para um dos produtos mais valiosos durante a antiguidade, tão valioso que constituiu mesmo uma das oferendas reais aquando do nascimento do Menino Jesus. Agora que o Natal se aproxima parece-nos uma boa altura para acendermos algumas luzinhas sobre a história do incenso.

O “Journal of Archaeological” fala-nos na sua mais recente edição da utilização do incenso por parte dos romanos. O tema poderá parecer de pouca importância, mas se pensarmos bem, o incenso tem, desde sempre, um importante valor simbólico e prático na cultura cristã  remontando a sua origem ao período romano, sendo que  para o mundo ocidental tem sido apresentado como uma criação que irradiou a partir da antiga civilização egípcia. Contudo, o incenso já era conhecido das culturas chinesas desde o período neolítico e parece que pela mesma altura também já era fumigado nas culturas hindus.

Como se sabe, o produto aromático foi usado em cerimónias religiosas, rituais de purificação e mais recentemente é-o em nossas casas como ambientador; que o digam as lojas de chineses que polulam pelas nossas antigas zonas comerciais e que o vendem às carradas e com os mais diversificados odores.

Quando - como agora faço - acendemos uma tira de incenso, raramente pensamos na história deste odorífico fumo, mas como tudo o que existe, também o incenso tem uma história.

Na Europa, mais precisamente na Grã-Bretanha, segundo nos conta “Journal of Archaeological”, a primeira evidência científica do incenso usado em ritos funerários romanos foi descoberta por uma equipa de arqueólogos da Universidade de Bradford, provando-se desse modo que quando o Império Romano se encontrava já num processo de declínio estas substâncias, consideradas na altura como preciosas, continuavam a ser transportadas para o seu mais distante posto avançado do norte, a Grã-Bretanha.

Na verdade, e porque a Arqueologia tem este princípio de escarafunchar o passado até ao mais extremo limite, permitiu-se perceber, a partir de um conjunto de análises moleculares realizadas a detritos que se encontravam preservados dentro de recipientes de sepultamento, bem como a restos de esqueletos e aos invólucros corporais de gesso que os envolviam, que o incenso era muito utilizado por parte dos romanos que ocupavam este território europeu. A descoberta reveste-se de alguma importância, porque até aqui o uso deste produto, bem como o uso de outras “resinas de bom cheiro” em ritos funerários antigos, eram sobretudo atribuídos à antiga civilização egípcia.


Mas agora há provas de que essa prática de “perfurmar os mortos” também se praticava no séc. IV na Grã-Bretanha, nomeadamente e Dorset, Wiltshire, Londres e Nova York, datadas do terceiro para o século IV dC. Dos quarenta e nove enterramentos analisados neste projecto de investigação arqueológica, quatro apresentaram vestígios de um incenso originário do sul da Arábia ou África oriental e os outros dez continham elementos de prova relacionados com resinas importadas a partir da região do Mediterrâneo e Norte da Europa.

Os textos clássicos mencionam já estas substâncias como possuindo propriedades antimicrobianas, anticépticas e aromáticas, sendo usadas como uma medida prática para mascarar o cheiro da decomposição lenta durante os ritos fúnebres da elite romana que muitas vezes se prolongavam por imensos dias.

Mas deverá ter sido sobretudo a sua importância ritual que justificou o transporte do incenso de um extremo do império para o outro. Sendo entendido como dádivas aos deuses, estas resinas eram sobretudo utilizadas em forma de ritual e destinavam-se a purificar os mortos e a ajudá-los no processo da sua passagem para a outra vida após a finitude da experiência terrena.

Ligações Perigosas

|Luis Pereira|
Ligações Perigosas. Fiquei nas últimas horas a pensar nesta expressão que mais não é do que o simples título de um  bem conseguido filme de Stephen Frear, onde John Malkovich e Glenn Close se divertem num jogo de sedução que envolve uma mulher ingénua e fiel ao marido.

Talvez porque os dias encolheram e nesta perturbante ausência de luz natural consiga algum tempo para rever ou ver alguns dos filmes de antologia, frequentemente me invade este título por mim rotulado como um dos filmes da minha vida.

O filme é bom, diria mesmo brilhante a nível da direcção e da interpretação, com um enredo tão “sufocante” tanto quanto real, o que em si mesmo constitui a génese de um apego aos primeiros planos de um guião que não dá tréguas e que inevitavelmente arrasta o telespectador para um desafio cujo principal objecto consiste na decifração das causas e dos porquês da ignobilidade e da insídia no ser humano.

O filme remete-nos para um ambiente de sociabilidade pérfida, o que certamente servirá de alerta para muitas pessoas que costumam confiar em qualquer um.

A fita está bem conseguida porque derrama de forma genial a psicologia do ser humano, desnudando-o na sua realista elementaridade, levando-nos ao interior cómico e dramático dos sentimentos, à risível distância entre o que se aparenta ser e aquilo efectivamente se é.

Não é minha intenção fazer aqui uma abordagem crítica ao filme de Frears, primeiro porque não sou cinéfilo, e segundo porque o filme está já depositado no baú das obras-primas criadas pela humanidade.

Chamo aqui o filme de Stephen Frears porque o significado prático de algumas “ligações perigosas” se foi generalizando em acção de forma massificadora, acabando por invadir o comportamento da sociabilidade, da política e das mais diversas actividades profissionais.

A expressão, vista a frio, significa aleivosia. Significa o embuste da máscara; o que parece ser e que na realidade não é. Significa falsidade, intrujice,  hipocrisia, mentira, maldade. Significa jogos de bastidores para a obtenção de uma qualquer façanha com o prejuízo de outrem. Significa o enredo mais fácil para encontrar o caminho do que se pretende sem a  integridade moral e a convicção do pensamento formado na essência do verdadeiro humanismo.

E num jogo de intrigas, a dramaticidade de algumas cenas acumula-se até atingir um clímax que muitas vezes reduz o ser humano à ancestralidade da sua animalidade, à ancestralidade da sua bestialidade, do seu verdadeiro "complexo reptiliano", como naturalmente lhe chamaria Carl Sagan.

Há muitos que conseguem contornar o “escolho” da verdade e safarem-se imunes, pelo menos por algum tempo; há outros que obtém resultados tão desastrosos com a mentira que até fariam corar de espanto e  de vergonha  a Marquesa de Merteuil.

Este meu "surrealismo" de hoje não parte de uma qualquer noite mal dormida,  mas antes surge como um lamento eivado de social preocupação. E surge também porque me apeteceu escrever. Escrever apenas. Escrever sobre a triste condição de alguns seres que no dia-a-dia se  revelam como bestialmente humanos.


O medo

António Luis Pereira
Crónicas do Nordeste
Dizia Maquiavel no seu ensaio político intitulado “ O Príncipe”, no distante século XVI, que o príncipe devia, antes de tudo, e para um bom exercício do seu poder, impor aos seus “súbditos” o medo, porque, argumentava o pensador renascentista, quem governa, - leia-se o príncipe de poder absoluto -, “deve procurar ser temido, em vez de ser amado”.

Com efeito, o medo sempre se revelou historicamente como uma arma com grande eficácia na imposição de vontades únicas, de intenções sem partilha ou de ideias sem debate. Em todas as grandes estruturas históricas, desde o esclavagismo passando pelo feudalismo, absolutismo, fascismo, comunismo até à democracia, que a vontade de um ou de um clã tem sido sistematicamente imposta, de forma mais ou menos descarada, através do medo. O medo ou a imposição do medo tem acompanhado a evolução estrutural do processo Histórico, apresentando-se hoje com uma feição mais elaborada, diria mesmo requintada, pelos métodos e pelas técnicas do “markting” dos estados democráticos.

Em abono da verdade, a democracia tem funcionado também no nosso país assente em pressões e em medos. O medo de perder o emprego; o medo de não ter dinheiro para pagar a letra ao banco; o medo de ser colocado na prateleira; o medo de reclamar; o medo de dizer a verdade; o medo de dizer o que se pensa; o medo de participar; o medo de ser excluído, marginalizado; o medo de intervir ou o medo de não ter medo de dizer “basta!”.

A nossa democracia, a democracia que é gerida pelas políticas sociais e económicas de apenas dois partidos desde 1974, assenta nessa filosofia maquiavélica que radica o absolutismo individualista ou de castas numa fórmula sectária que impõe medos e que nos dias de hoje controla e dirige a coisa pública baseando-se por exclusivo no princípio da legitimidade dada pelo acto eleitoral.

Assente nessa base, aniquila as minorias reais, e tenta fazer a mesma coisa às minorias que em determinada fase política formam aquilo que se designa por oposição. E em conexão com essas regras, a acção política de quem governa em dado momento coage, em cada época e a seu modo, uma multidão de receosos, apropriando-se dela pelo método da imposição de medos.

E são esses medos que tornam as pessoas comodistas, pouco intervenientes, metidas com a sua vidinha, enquanto o descalabro e a falta de ética e de escrúpulos de algumas castas sociais, políticas e económicas deste país sem retorno, impõem prosápias e desbaratam com indevida apropriação os valores e as riquezas colectivas.

O medo existe e a vontade própria que integra o livre arbítrio de cada um refugia-se, na maior parte das vezes, num arranjo moralista ornado de cúpulas celestiais. “Se deus quiser tudo há-de melhorar”, ouve-se dizer hoje com a mesma retórica e com a mesma crendice com que no período medieval se sustentou a estrutura que tinha por exploradores do trabalho humano uma classe de improdutivos e oportunistas que ficou conhecida historicamente como a classe senhorial. E a vida concreta, aquela que se repercute directamente no nosso corpo, esse comensurável materialismo existencial que vê o homem como usufrutuário daquilo que ele mesmo produz, continua adiado, torce-se em rodilha de carga até ao extorquir da última gota de suor.

Chegados aqui, devemos sublinhar a ideia de que o modelo da nossa democracia é definitivamente um modelo falido; um modelo de medos, de imobilismos, de resignação, de incompreensível conformismo; um modelo que nos retira em nome de uma falsa concepção economicista direitos adquiridos; um modelo que caminha a passos largos para a concretização de um país em dois planos: um dos exageradamente ricos e outro dos miseravelmente pobres. Um modelo que nos bipolariza em dois reinos: o do litoral e o do interior. Um modelo que elege deputados que nada fazem, que nada defendem e que constituem apenas um encargo financeiro aos cofre do estado; um modelo que trata o interior como um embaraço e não como uma potencialidade susceptível de gerar riqueza comunitária; um modelo cada vez mais impositivo, menos dialogante, mais autoritário e menos solidário; um modelo que apenas descrimina positivamente os grandes interesses económicos e financeiros e que age sempre e repetidamente em função de estratégias eleitoralistas.

Mas quiçá os poderes instituídos apenas estejam a seguir à risca os ensinamentos da cartilha de Maquiavel e não procurem ou estejam interessados em governar para os anseios do povo, em ouvir as suas reivindicações e ensejos, ou ainda em ser amados pela maioria desse mesmo povo que os elegeu, mas tão-somente, e nesta fase, apenas pretendam ser temidos, a julgar pela sua acção política nada dialogante, de contornos arrogantes e com uma autoridade que já não se experimentava desde o tempo de Salazar.

Falta saber é se estes senhores e os seus correligionários interpretaram ou ouviram bem os conselhos de Maquievel, porque a determinada altura, o pensador que concebia ideias para políticas enquadradas num esquema absolutista de governação é bastante objectivo no seu ensinamento que faz ao príncipe. E dizia ele: “o príncipe deve procurar ser temido, em vez de ser amado, mas deve evitar ser odiado, porque pode pôr em causa o seu poder”.

Dizem também, e é verdade, que entre o temor e o ódio vai uma distância com o calibre de um cabelo….

“Rostos Transmontanos”, os retratos que revelam a alma de um povo

António Luis Pereira
Crónicas do Nordeste
Hoje vou  apresentar-vos um livro maravilhoso. Melhor: hoje, nesta Crónica do Nordeste, quero apresentar-vos um livro que nos mostra os homens e as mulheres que habitam um “Reino Maravilhoso”.

Já todos ouvimos falar do “Reino Maravilhoso” como uma expressão que de imediato associamos à beleza da nossa terra, à excelência da variedade da paisagem transmontana, mas poucos falam de uma forma tão sentida e tão próxima, de uma forma tão real e tão pura, dos seres que habitam esse tão famoso reino, como Paulo Patoleia nos fala através dos seus retratos que agora foram impressos em livro pela da editora “Lema d’Origem”, com o título “Rostos Transmontanos”.

É-me particularmente difícil falar da obra de Paulo Patoleia que não seja com emoção. Por isso, peço desde já desculpa antecipada por alguma exaltação que possa fazer ao evocar as sensações de grande orgulho que em mim fazem despertar estas fotografias que retratam o meu povo, que retratam a essência e o essencial de uma terra de que também faço parte.

Paulo Patoleia não fotografa só o exterior das pessoas. Paulo Patoleia não fotografa apenas os traços fisionómicos do rosto que integra essa realidade do ser transmontano tão realisticamente capturado pela sua lente nas feiras, nas festas e nas romarias desta região tão só, tão abandonada, mas culturalmente e humanamente tão rica e tão diversificada.

Nos seus retratos, Patoleia ultrapassa o limite do rosto, ultrapassa o limite do momento fixado em luz, do traço fixo da visualidade fotográfica, e leva-nos até ao transparente e buliçoso movimento da alma. Sim, porque o que Paulo Patoleia fotografa, e que tão bem é apresentado neste seu livro, é a alma do povo transmontano. Essa alma grande e solar que explode através do brilho dos olhos de seus “modelos”; essa alma acetinada e áspera que vemos desenhada numa expressão facial congelada entre o rude e o afável; essa alma antiga e histórica que se rasga na intensidade das rugas dos homens e das mulheres fotografadas; essa alma que crê, que sofre, que se diverte; essa alma alegre, triste, solitária e melancólica que se revela por detrás de um rosto de palavras inaudíveis, silenciadas ou ainda por pronunciar.

Capa do livro "Rostos Transmontanos"
Numa conversa tida com o autor há alguns anos, ainda mal nos conhecíamos, o Paulo dizia-me que fotografava pessoas que mais ninguém queria ou estava interessado em fotografar e que algumas dessas pessoas a única fotografia que tinham tirado em toda a sua vida tinha saído da sua máquina. Nada mais comovente. E é essa, precisamente, a grande virtude do Paulo Patoleia enquanto fotógrafo, porque desse modo o artista soube agarrar o que mais ninguém agarrou, soube perpetuar a condição modesta do nosso povo através de uma simplicidade que naturalmente comove e emociona.

Poder-se-á considerar que Patoleia segue em parte a linha temática e estética de George Dussaud, o grande fotógrafo de referência da antropologia visual de Trás-os-Montes, porque tal como ele fotografou pessoas humildes, os tais “camponeses pobres mas não miseráveis” no dizer do fotógrafo francês. Só que Patoleia preferiu fazer um zoom para nos oferecer o pormenor, trocando a envolvência do registo geral, do plano mais amplo, pelas minúcias de rostos bonitos, menos bonitos, ternos, azedos, alegres, tristes, sofridos, resignados e orgulhosos da nossa gente.

E fez bem ao enveredar por essa opção, porque ao aproximar-nos olhos nos olhos com o retratado gerou uma intimidade nunca dantes conseguida com o nosso povo, escancarando desse modo as portas da sua alma para nos aproximar do seu espírito e da sua essência.

No fundo, o Paulo oferece-nos, através destes “nossos” rostos, a geografia e as paisagens recônditas e olvidadas que formam a fisionomia interior e sentimental de uma região inteira. E é por isso que são tão importantes estes registos. São importante porque nos levam até ao âmago do real, até às pessoas que efectivamente interessam para documentar e melhor entender a verdadeira simbiose entre o homem e a terra.

Este livro é também um hino que vem neste mês de junho de 2014 refrescar a memória e a nossa identidade colectiva, um documento muito raro do nosso registo etnológico e da nossa antropologia do visual. E por isso irá permanecer como matéria incontornável na abordagem ou nos estudos futuros de todos aqueles que pretendam trabalhar sobre a antropologia do povo transmontano.

Documento e arte são, portanto, os dois atributos que melhor definem esta edição enriquecida pela participação literária de 49 autores transmontanos que legendaram cada um dos mais de oitenta retratos que integram esta publicação. Pelo meio vamos encontrar pequenos textos, verdadeiros poemas que surgem a complementar de forma perfeita as sensações despoletadas pela observação de tão intensas imagens.

“Rostos Transmontanos”, do fotógrafo Paulo Patoleia, recentemente editado sob a chancela da editora Lema d’Origem, é um livro que chega ao público numa edição muito cuidada, com capa dura e papel couché e com um design gráfico muito atractivo. Um livro que cada um de nós irá fruir e sentir de forma muito particular.

Da minha parte apenas pretendo dizer-vos que é nesta geografia rugosa que encontro a origem. E perante estes rostos com paisagens em relevo, sinto a dignidade de uma terra meiga, áspera e agreste: sinto uma espécie de pequena grandeza semeada de pura humanidade.

A pedagogia das recriações históricas no “Ansiães na Idade Média”

António Luis Pereira
Crónicas do Nordeste
Podem não ser as formas mais eficazes de tratarem de feição “científica” certos acontecimento históricos, mas uma coisa é certa, as recriações históricas teatralizadas permitem uma interacção com as comunidades que quaisquer outras iniciativas não conseguem, e só por isso valem a pena; valem a pena devido à natureza da sua função.

Comunicar história não é nem nunca foi um forte dos investigadores portugueses. Encerrados numa espécie de trincheira científica, na maior parte das vezes a saborear o pseudo sucesso das suas “ inacessíveis problemáticas”, uma boa parte de historiadores e arqueólogos são muito avessos ao tratamento de questões históricas de uma forma mais leve, divertida e, por conseguinte, muito mais atractiva para as pessoas que no seu dia-a-dia pouca importância dão à investigação historiográfica e arqueológica, apesar de quase sempre essa investigação, quando existe, ser paga quase que integralmente pelos seus próprios impostos.

Numa sociedade onde as pessoas lêem muito pouco e muito menos lêem maçudos tratados de história e de arqueologia, estas recriações, melhor ou pior conseguidas, são muitas vezes o único contacto que os cidadãos têm com o seu passado histórico e é através delas que primeiro vislumbram e depois passam a ter uma melhor compreensão do património cultural onde tropeçam diariamente.

E esta realidade é tanto mais evidente quanto mais mergulhamos nas regiões que constituem o interior do país, politicamente marginalizado pelo poder central e onde os problemas estruturais relativos às deficiências da educação e da cultura se multiplicam numa escala de muito maior dimensão.

Não é nosso objectivo fazer aqui uma análise abrangente dos aspectos positivos e negativos desta questão, nem tão pouco é nossa intenção alguma vez discutir este assunto numa perspectiva de defesa incondicional do mesmo. Contudo, uma ideia defendemos intransigentemente: as recriações históricas são um instrumento fundamental de pedagogia e de dinamização de pequenas localidades que através delas chamam até si uma imensidão de pessoas.

Tenho para mim, enquanto arqueólogo e um profissional que tem por base do seu trabalho o património cultural, que não servirá de nada todo o esforço colocado na busca de conhecimento do passado, se ele não for partilhado socialmente; se ele não for libertado da masmorra ou do ciclo fechado dos seus pares e sair para a rua envolto em novos tratamentos e em novas roupagens susceptíveis de servirem de atractivo e serem capazes de captar a atenção da sociedade, de toda a sociedade.

Apenas como exemplo, refiro o registado no último fim-de-semana em Carrazeda de Ansiães onde a iniciativa “Ansiães na Idade Média” conseguiu mobilizar um significativo número de pessoas, chamando até à sua vila medieval uma multidão de visitantes nunca dantes registado em quaisquer outras acções desenvolvidas com o intuito de promoção e divulgação deste importante monumento transmontano.

Foi efectivamente muito interessante verificar que as pessoas, e sobretudo os mais jovens, tentaram compreender o significado histórico da reconquista cristã e o papel que o Castelo de Ansiães desempenhou em todo esse processo; a diferença entre a cultura cristão e a cultura árabe; a sua participação activa em palestras e demonstrações; a sua participação activa em “sketchs” teatrais capazes de levaram à compreensão do papel dos personagens.

Que outra iniciativa pedagógica poderia chamar, envolver e levar tanta gente a discutir e a participar com interesse no entendimento do passado do Castelo de Ansiães? Pela experiência que tenho, nenhuma. A não ser esta, a do “Ansiães na Idade Média”.

Um abril sem cor

António Luis Pereira
Crónicas do Nordeste
Não tarda nada farei cinquenta anos. Não sei se é a angústia do tempo, a angústia deste fluir continuo em direção ao nada que me torna nostálgico, mas o que é certo é que não raras vezes sou sucumbido pela avalanche de uma melancolia que me torna cismado e taciturno, amargo e sorumbático, parado e triste.

Não sou, nunca fui, um revivalista e nem sequer gosto muito de evocar o passado, ma há dias em que uma saudade antiga me invade o espírito e se enrodilha na alma até me deixar extenuado.

Ontem foi um dia desses e hoje aqui estou, quase na infância, para tatear a angústia e sentir os cheiros e as cores de tamanha inquietação. Vim até aqui apenas para me sentir no som da água que insiste em cair por uma bica sem tempo, para desaguar, calma e límpida, entre os tufos da hortelã que sobrevivem num emaranhado silvestre.

As sombras já invadiram o terreno desta minha vida, mas o melro da infância continua ali, empoleirado na velha e carcomida acácia que está quase tão murcha como este abandono. Desenho os sulcos na terra com os olhos de outrora até ir de encontro ao teu sorriso. E aí estás tu, sempre a sorrir, eternamente a sorrir, em pé, ali ao pé do tanque da horta, como se o tempo tivesse recuado uns quarenta anos.

Há quarenta vivíamos um tempo novo, um tempo marcado de esperança que nos agasalhava o futuro. E no teu ritmo, lá ias granjeando os teus sonhos, sem nunca esquecer o canteiro das flores onde cultivavas os cravos.

Há quarenta anos vivíamos a primavera dos cravos. Um tempo de flores renovadas por rubras cores que irrompiam de entre um negro molesto que durante meio século nos anoiteceu no desespero. Há quarenta anos éramos felizes e tu recomeçavas a vida. O país recomeçava a viver. Tu tinhas esperança, Portugal tinha esperança, e eu também, talvez, não sei…

Vim até aqui, até à minha infância, para te reencontrar, para me reencontrar, e para poder falar desta minha desesperança de hoje. Vim até aqui para poder falar do nosso país sonhado que não chegou a acontecer. Vim até aqui para poder falar deste desfalecer contínuo em que mergulhou a nossa terra. De dia para dia são cada vez mais as ervas daninhas que nos asfixiam a alegria, as mesmas ervas daninhas que já nessa altura tentavam invadir o canteiro dos teus cravos de abril.

Eu sei que os tempos mudam, que nós mudamos, que a História flui; o que não sabia, ou fazia por esquecer, é que os verdugos são mesmos reais e podem irromper a qualquer momento, medonhos e irados, para nos imolar os sonhos que alimentamos sempre em pacífico esmero, neste lado de cá, neste outro lado de cá onde mora a poesia.

E é apenas isso que pretendo evocar hoje, aqui, nesta terra desolada, seca, triste e sem cor. E é simplesmente isso que vos quero recordar hoje, aqui, sem mais, neste dia de abril desolado e seco e triste e sem cor.

'O que é o Património Imaterial?'

António Luis Pereira
É uma das categorias ou variantes do património cultural e tem vindo a surgir com a designação de “património imaterial”.

O conceito de património cultural é bastante amplo, sendo tema de estudo e de interpretações académicas, embora em termos legais se encontre definido de forma concisa e objectiva na Lei 107/2001, de 8 de Setembro, “como todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização”.

Esta lei, embora não regulamentada, é o instrumento fundamental que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural português, sendo a ordenação do seu articulado a estabelecer, logo no Artigo 2º, que a língua portuguesa e todos os bens de carácter histórico, arqueológico, paleontológico, arquitectónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico de interesse relevante, cabem no âmbito e na noção de património cultural.

Da mesma forma, cabem neste conceito os “bens imateriais que constituam parcelas estruturantes da identidade e da memória colectiva do povo português”. Assim, e para efeitos legais integram o património cultural português “não só o conjunto de bens materiais e imateriais de interesse cultural relevante, mas também, quando for caso disso, os respectivos contextos que, pelo seu valor de testemunho, possuam com aqueles uma relação interpretativa e informativa.”

Num amplo quadro conceptual, a noção de património imaterial têm-se difundido nos últimos anos com um conteúdo melhor definido e mais completo, graças a alguns instrumentos elaborados pela UNESCO* e à crescente chamada de atenção desta instituição internacional para a necessidade de registo, preservação, estudo e valorização das tradições ou expressões vivas herdadas de nossos antepassados, como tradições orais, artes do espectáculo, usos sociais, rituais, actos festivos, conhecimentos e práticas relativas à natureza e ao universo e todos os saberes e/ou “saberes fazer” que testemunhem particularidades étnicas, susceptíveis de promoverem a diversidade cultural e, em consequência, o enriquecimento cultural da humanidade.

Integra-se, portanto, na nomenclatura do património cultural imaterial as tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial, abrangendo todas as expressões relacionadas com os provérbios, adivinhas, histórias, rimas de embalar, lendas, mitos, canções, rezas, cânticos, desempenhos dramáticos que transmitam o conhecimento, os valores e uma memória colectiva identitária.

Considera-se ainda nesta nomenclatura "os conhecimentos e aptidões, bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados, que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural".

As práticas sociais, os rituais e os eventos festivos que estejam relacionados com o ciclo de vida dos indivíduos e dos grupos, com o calendário agrícola, com a sucessão das estações ou com outros sistemas temporais e todos os conhecimentos ou acções e práticas comunitárias relacionadas com a natureza e o universo, integram também a categoria de património imaterial.

Teoricamente considera-se que este tipo de património deve ser integrador porque “contribui para a coesão social e fomenta um sentimento de identidade e responsabilidade que ajuda os indivíduos a sentirem-se membros de uma ou várias comunidades e da sociedade em geral”.

A preocupação da UNESCO em valorizar esta vertente do património cultural deriva de um crescente processo de globalização e de uniformização dos comportamentos culturais em detrimento da diversidade que caracterizava, e que de certa forma ainda caracteriza, o homem.

A questão da preservação e protecção dos vectores identitários de comunidades mais restritas, de povos ou de regiões surgiu como uma necessidade prioritária face à fragilidade do património cultural imaterial e do consenso geral de que a “compreensão do património cultural imaterial de diferentes comunidades contribui para o diálogo entre culturas e promove o respeito por outros modos de vida”.

Ainda segundo a UNESCO, “a importância do património cultural imaterial não reside na manifestação cultural em si, mas no acervo de conhecimentos e técnicas que se transmitem de geração em geração. O valor social e económico desta transmissão de conhecimentos é pertinente para os grupos sociais tanto minoritários como maioritários de um Estado, e reveste a mesma importância quer para os países em desenvolvimento quer para os países desenvolvidos”.

O património imaterial é também representativo de determinado local ou região, uma vez que “floresce nas comunidades e depende daqueles cujos conhecimentos das tradições, técnicas e costumes são transmitidos ao resto da comunidade, de geração em geração, ou às outras comunidades”.

Por tal motivo, o património imaterial baseia-se sempre na comunidade, e somente poderá ser considerado como tal “se for reconhecido por essas mesmas comunidades, grupos ou indivíduos que o criam, mantêm e transmitem. Sem este reconhecimento, ninguém pode decidir por eles que uma expressão ou um uso determinado forma parte de seu património”.

Fontes: UNESCO e Lei 107/2001, de 8 de setembro
*Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (2003)

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