Desprezar a vida

|Hélio Bernardo Lopes|
Ninguém que seja normal deseja perder a vida. Exceto na situação muito bem sintetizada por Alexandra Lucas Coelho, creio que hoje mesmo, e que é quando esta se torna condenação.

A discussão sobre a eutanásia está na ordem do dia, situação que eu mesmo referi em carta que escrevi ao cardeal José Saraiva Martins, pouco tempo depois da entrada em funções do Governo de Pedro Passos Coelho. E neste tema não faltam, de facto, jogos de cintura e de sombras, reinando, do modo mais evidente, a hipocrisia.

A evolução da ciência médica, e de outras que lhe são complementares, criou a possibilidade de superar com êxito as maleitas que afligem os seres humanos. Esta realidade fez desenvolverem-se expectativas de felicidade, tal como se deu, por exemplo, com o sonho de uma paz tão duradoura quanto possível. Naturalmente, as pessoas não estão hoje dispostas a deitar por terra estes sonhos tornados realidade e que são claramente possíveis nos dias de hoje.

Ora, o mecanismo de ataque às maleitas que sempre podem atormentar os seres humanos acabou por se materializar, nos países mais desenvolvidos e onde está (ainda) presente o direito de se poder viver com dignidade, em estruturas de serviços destinados fazer regredir essas mesmas maleitas. No caso português e no âmbito da Constituição da República surgida na sequência da Revolução de Abril, essa estrutura é o Serviço Nacional de Saúde, estrutura pública e hoje (ainda) tendencialmente gratuita.

Como pude já escrever e se conhece hoje bem, esta estrutura foi inteiramente da lavra do nosso concidadão António Arnaut, e quase nada da iniciativa do PS, incluindo Mário Soares. De resto, quando o tema teve finalmente de ser decidido, de pronto mereceu a reprovação da Direita – PSD e CDS. Uma situação – a desta Direita – que ainda hoje se mantém.

Acontece que o Estado Social na Europa derivou da necessidade de se travar o avanço do comunismo. E nunca seria difícil perceber que o fim deste acarretaria a vitória do capitalismo, para mais do modo mais selvagem que se tem vindo a ver, com as pessoas votadas a uma secundarização sem limites e com o triunfo pleno do direito ao aumento ilimitado da riqueza por parte de uma ínfima minoria. Enfim, é o mundo que temos e cujo sentido se percebe já hoje à saciedade.

Esta situação, como é lógico, retirou toda a parcela de valor à (dita) democracia. O problema é que esta se constitui (ainda) num anestesiante social, conferindo uma aparência de poder nas mãos dos designados cidadãos eleitores – veja-se o BREXIT. Simplesmente, o tempo vai passando e vagas crescentes de pessoas vão percebendo a farsa em que se constitui a (dita) democracia destes dias, ao mesmo tempo que se perceciona que no futuro que aí vem as coisas irão do atual mal para pior.

Ora, isto é, precisamente, o que está hoje a passar-se com o setor da Saúde. Qualquer pessoa minimamente atenta e honesta percebe que o direito que a Constituição da República estabelece não pode ser aplicável à luz do mecanismo do mercado, uma vez que este visa o lucro, naturalmente à revelia de preocupações sociais ou humanas. De um modo já iniludível, percebe-se que o PS de António Costa, qual transformação quase-reversível, pretende reduzir a um ínfimo o Estado Social. Ou seja, terá de o fazer de um modo lento, mas tão eficaz quanto possível no seu objetivo.

Acontece que para se atingir esta situação é essencial fornecer às pessoas, em especial idosos e/ou doentes, o direito a recusarem a tal situação referida por Alexandra Lucas Coelho: quando a vida se torna condenação. Ou seja, se se padecer de doença curável mas de tratamento muito caro, dispõe-se da porta para evitar um sofrimento atroz. É esta a razão do atual imperativo da eutanásia, tal como expus ao cardeal José Saraiva Martins, quando se tornava evidente que a política da anterior Maioria-Governo-Presidente iria conduzir à redução a nada do histórico, humano e essencial Serviço Nacional de Saúde.

O terrível problema que o PS criou aos portugueses foi abrir o setor da Saúde à iniciativa privada. Ao fazê-lo gerou uma concorrência objetivamente desleal e natural, dado que o Estado não pode nunca concorrer com grandes interesses privados, capazes de pagar o que for preciso para chamar a si os melhores, mas só para serem pagos por quem puder. Os choramingões da nossa Saúde só se preocupam com o horror da eutanásia e com os seus vencimentos, mas são incapazes de tratar os bois pelos nomes, como usa dizer-se: o Serviço Nacional de Saúde terá a sorte que está a poder ver-se, mas como consequência da natural e desleal concorrência com o setor privado. É uma opção dos políticos de hoje, mas já se percebe que o PS de António Costa se prepara para se aderir à política (de sempre) da Direita neste domínio tão essencial para a defesa da vida de cada um de nós.

Não se pense, em todo o caso, que este caminho será percorrido só no setor da Saúde. Também no do Ensino Superior se estão a dar os primeiros passos com o mesmo objetivo, bastando ter presente a ideia de diminuir o número de alunos nas universidades de Lisboa e Porto. Neste ano e em alguns dos vindouros. A explicação suporta-se na ideia, errada, de levar à procura do Ensino Superior no interior do País. Simplesmente, isso exigiria das famílias um custo incomportável. Ou seja: não só essa procura não terá um volume digno de registo, como se limitará o acesso ao Ensino Superior em Lisboa e Porto. Para já...

Mais tarde, lá acabará por surgir uma solução para o saboroso setor da Segurança Social, que também irá buscar ao recurso à eutanásia algum apoio. Porventura, crescente durante um bom tempo. E também a política de baixos salários, que continua a manter-se, ajudará a sustentabilidade do setor.

Os grandes campeões da eutanásia, tal como os seus indefetíveis adversários, por razões distintas, trabalham hoje arduamente no sentido de extinguir, na prática, o Estado Social. O resto é conversa para distraídos ou desinteressados, muito mais que para congressos partidários. Esteja o leitor atento ao Congresso do PS, neste fim-de-semana, e por ele verá que nenhum destes temas será ali tratado. Apenas conversa fiada e floreada...

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