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|Hélio Bernardo Lopes| |
Para começar este meu texto, conto aqui um caso que vivi com grande proximidade, ainda antes da Revolução de 25 de Abril. Um jovem engenheiro civil venezuelano operou um estágio em Portugal, tendo por este facto com o mesmo convivido ao dia-a-dia, ao menos por uns dois ou três anos. Era filho de um embaixador da Venezuela num Estado europeu, casado e pai de uma menina e, se não erro, também já de um pequenino. E era um casal extremamente simpático, com a sua mulher extremamente bela.
Num ápice, chegando mesmo a causar admiração, o casal adquiriu em Lisboa um andar numa avenida de certa nomeada, ao mesmo tempo que mandou vir para Lisboa o seu carro, de um modelo muito recente da marca Volvo. O dinheiro, portanto, abundava, sendo o casal rodeado da máxima simpatia pelos colegas, suas namoradas ou mulheres, e de que o meu caso era um deles, já então casado, ainda sem o meu filho.
Todos os sábados, invariavelmente, jantávamos num qualquer restaurante da capital, passeando depois por lugares diversos de Lisboa e recolhendo, já pela meia-noite, à casa de um dos casais, onde ia decorrendo uma qualquer conversa, fosse o tema o que fosse. A política, invariavelmente, ocupava uma boa parte da noite de convivência amiga e agradável.
No entretanto, sobreveio a Revolução de 25 de Abril, o que de pronto determinou uma mudança na agradável e amiga situação que vinha tendo lugar. Aos poucos, deixámos de conviver, mesmo de saber uns dos outros. Hoje, sei que o meu antigo colega terá falecido há uns cinco anos. E sei também que um outro colega, mas brasileiro, exerce, com brilhantismo, as suas funções em Brasília.
Aí pelo início da década de noventa do passado século, tomei conhecimento de que certo casal nosso colega, ela da nossa idade, ele bem mais velho, estiveram em Caracas, de pronto tendo do facto dado conhecimento ao nosso antigo colega estagiário. De molde que, colocadas as bagagens no hotel, de pronto se deslocaram à magnífica vivenda onde vivia o casal, a fim de os verem e com eles voltarem a conviver um pouco. Mas tudo se saldou numa deceção.
Recebidos numa excelente sala de receções, ali viram chegar a mulher do nosso antigo colega, sua conhecida há já muito e sempre tratada em Lisboa com a melhor amizade e amabilidade. Palavras de circunstância, sempre fugindo à realidade portuguesa de pós-Abril, num ápice a dona da casa pediu a sua escusa, alegando que tinha afazeres a que não podia abster-se. E assim se despediu, deixando o marido a acompanhar os antigos colegas. Tudo se saldou em cerca de uma hora, talvez um pouco menos.
Chamado um táxi, lá foi o casalinho para o seu hotel, sem que tenham votado a estar com o casal venezuelano, para lá de um ou dois telefonemas. Finalmente, logo depois do telefonema de despedida, já prestes a seguirem para o aeroporto, os portugueses viram chegar a este lugar o marido venezuelano, que ali foi despedir-se da família portuguesa. Enfim, tudo se saldou nas usuais práticas da simpatia circunstancial.
Tudo isto, para ser completado, necessita de uma explicação final, qual cereja sobre o bolo: o casal português era constituído por dois concidadãos nossos, mas do PCP... Quando soube desta história, respondi de pronto ao velho colega de todos, que me estava a expor o que se havia passado: ah, mas é que eles eram do partido! Ou seja, do Partido Comunista Português. Pelo menos, é o que nós sabíamos. Outra coisa seria se tivesse sido eu a telefonar-lhes a partir do hotel, porque nessa situação tudo seria logo distinto. Mesmo antónimo. Todavia, com alguns dias de convivência, porventura a residir em sua casa por via de convite amável, talvez as coisas mudassem de figura, mas só numa perspetiva de futuro.
Tentei com esta história verídica mostrar a atitude cultural de uma família venezuelana pertencente à grande sociedade do país. Uma história que, caldeada pela cultura de cada um de nós sobre a Venezuela e sobre a América Latina, permite perceber o que deveria ser, até há uns vinte anos atrás, a realidade social da Venezuela. Uma realidade que está por detrás do fenómeno chavista e madurista e que pode, apropriadamente, ser designada por pobreza e miséria vastas. Uma realidade que também ajuda a compreender a razão da omnipresença da corrupção no seio de todo o tecido social venezuelano. Uma realidade com uma imensidão de décadas, como puderam ver os mil e um portugueses que demandaram aquele país depois da Revolução de 25 de Abril e que deixa o caso português como um paraíso de bom comportamento moral e ético.
Para se compreender o que está hoje a ter lugar na Venezuela, é preciso olhar para trás e recordar a tentativa de golpe de Estado contra a presidência de Hugo Chávez, perpetrada sob a instigação da liderança direitista espanhola. No mínimo, porque se recordarmos a cabalíssima dependência política de Aznar em face dos Estados Unidos, por rápido de percebe que muito mais partidos de Espanha deveriam estar a apoiar o referido golpe...
A oligarquia que sempre dominou a Venezuela e a sua riqueza, que a vendeu aos grupos de pagadores de fortunas ilícitas dos Estados Unidos, e que manteve a generalidade da população em níveis inaceitáveis de pobreza, miséria e falta de esperança, nunca poderia aceitar a vitória de um reformista patriota como Hugo Chávez. Instados pelos Estados Unidos, sobretudo pela derrota que o atual Secretário de Estado sofreu com a nacionalização do petróleo venezuelano, os referidos oligarcas deitaram-se a corroer o funcionamento da máquina do Estado Venezuelano, embora tudo venha já de Obama. Deitando mão da arma democrática, organicamente unidos por interesses fortes que também eram internacionais, esses oligarcas lá conseguiram fazer eleger uma Assembleia Nacional anti-Presidente. Passaram, pois, a estar presentes dois poderes legítimos: o do Presidente da República e o da Assembleia Nacional, sendo que o Sistema Político da Venezuela é presidencial. Esta circunstância transformou a Assembleia Nacional numa força de bloqueio para a governação do Presidente Nicolás Maduro.
Acontece, como desde cedo pôde perceber-se, que a governação de Nicolás Maduro sempre se situou a anos-luz da de Hugo Chávez, diferença que se alargou com a queda brutal do preço do petróleo, de parceria com o limitadíssimo número de bens venezuelanos transacináveis. Mesmo o setor do Turismo, que poderia, se bem organizado e tratado, constituir-se numa fonte forte de exportação, também se situou a grande distância de um impacto digno de registo.
Aos poucos, muitos dos tradicionais apoiantes do Governo de Maduro começaram a fazer contas, acreditando, em crescendo, numa possível queda do regime com a chegada de Donald Trump ao poder norte-americano. É aqui que tem de situar-se o estranhíssimo comportamento da ex-Procuradora-Geral da República. Sabendo das divisões profundas ao nível das atuais oposições a Maduro e seu regime, admitindo como baixa a probabilidade de o regime subsistir, também em face da posição do Papa Francisco, objetivamente virado para a oposição, sempre defendendo o impossível, mas numa ação que só serve para minar a estabilidade hoje presente na Venezuela, a referida senhora deitou-se a pôr tudo em causa, operando acusações de todo o tipo e feitio. De molde que acabou por suceder-lhe o expectável: foi demitida. Um dado é certo: aos olhos do mundo, fruto da grande comunicação social de algum modo seguidora da grande estratégia dos Estados Unidos, Luísa Ortega foi transformada numa espécie de heroína, com condições para, no caso de haver uma queda do regime em vigor, surgir como uma espécie de fazedora da diferença, porque se é uma “heroína” e se são aos magotes os líderes opositores, Ortega surge como alguém exterior aos partidos e aos seus jogos, numa aparente posição de poder jogar com todos de um modo equidistante.
De tudo isto sobressai esta realidade simples de perceber: a Venezuela, em face de tudo o que já se criou, não se encontra na posição típica do que costuma de designar-se por Estado de Direito Democrático, embora procure ainda manter vivas as linhas de força típicas do Etado Social. Por ser assim a realidade, não deixa de ser estranha, mesmo algo risível, a posição dos nossos detentores de soberania, mormente ao exigirem uma lisura constitucional típica do dito Estado de Direito Democrático e Social. Invocam mesmo a essencialidade da separração de poderes, sem que o façam, em todo o caso, com o Brasil, perante o branqueamento das acusações da Justiça a Michel Temer, operadas, após negócios chorudos, com os essenciais elementos da classe política que aceitaram salvá-lo. Para os nossos detentores de soberania, e por todo o Ocidente, a violação da separação de poderes não tem importância se for no Brasil de Temer. Enquanto convier, claro está.
Mais estranhas são as palavras do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, catedrático de Direito, ao redor dos dois parlamentos, citando, por comparação, a leitura de uma tal realidade em Portugal. O erro deste raciocínio, naturalmente intencional, está nisto: hoje, obviamente, tal seria estranho, mas não o foi no tempo de Revolução de 25 de Abril, em que Portugal foi governado por um Governo escolhido pela Junta de Salvação Nacional, esta designada pelo Movimento das Forças Armadas, e mantendo-se, sempre que necessárias a Constituição de 1933 e a legislação em vigor conveniente, ou mesmo adaptada. Tem sempre de ser assim, ou nunca teriam lugar revoluções em parte alguma do mundo.
Acontece, como qualquer um percebe, que o atual Presidente da República da Venezuela pretende ver aprovada e entrada em vigor uma nova constituição democrática, num certo sentido, à francesa, onde uma minoria pequena de votos permite dispor de uma maioria esmagadora de deputados. Como seria de esperar, ninguém contesta a França. Mas outro seria o cantar dos bem pensantes se tal situação tivesse tido lugar com Mélanchon ou com Marine Le Pen. A democracia em movimento...
Por fim, dois factos bastante lamentáveis. Por um lado, a cabalíssima distorção do que está em jogo na Venezuela, onde ao redor de certa notícia são mostradas imagens relativas a acontecimentos já com três ou quatro dias. Por outro lado, o infeliz pedido do Papa Francisco para que a nova Assembleia Nacional Constituinte não tomasse posse. Como vive a Igreja católica hoje a anos-luz do silêncio cúmplice com Pinochet e com todos os restantes criminosos que lideraram Estados os mais diversos da América Latina!