Não sai a procissão do adro

|Tânia Rei|
Ouve-se um morteiro.
Enfileiram-se as pessoas, estendem-se banquinhos 2-5 euros.Outro morteiro…outro… uns dez seguidos.

É sinal que a procissão está a deixar a igreja, para passar nas ruas a que pertence, por tradição. Nem se sonha o dia em que, depois dos foguetes que anunciam a saída dos santinhos, não haja cortejo. As pessoas a espreitar, num grande frenesim, com as cabecitas à procura dos cavalos brancos, que vêm a abrir. Crianças a chorar, o padre às voltas na sacristia, o povo aflito. E a procissão, nem vê-la.

Isto poderia acontecer, em filmes. Na realidade, sabemos que a procissão vai passar, lenta e pesarosamente. As crianças enfeitadas com plumas e passagens bíblicas. Vai demorar, tal é o passo arrastado. Por isso diz o saber popular que “ainda a procissão vai no adro” quando alguma coisa ainda está numa fase insipiente, quando algo mais está para vir, de maior dimensão. Ainda faltam morteiros, lanternas, bandeira e a banda filarmónica da terra.

Mas há procissões, noutros contextos da vida, que nunca saem do adro. Ficam ali, a ajeitar as flores dos andores, à espera. À espera do quê? Não sei. Mas não andam, não se perfilam para a majestosa volta à aldeia.

Irritam-nos, começa a gotejar o suor no rosto de quem espera debaixo do sol. Não se cancelam procissões. Se falta gente, angariam-se voluntários.

O adro, é, pois, o local amplo que costuma estar nas imediações da igreja. É para lá que se dirigem os andores, os meninos das plumas e os homens que levam as bandeiras. O adro é a espera, que fica pior à medida que nos afastamos dele. Quem está no adro sabe o que se está a passar, está a ver in loco o porquê de a procissão não arrancar. Quem escolheu outro ponto para ver os santinhos, não sabe o que a está a adiar.

Há passagens da nossa vida que são mesmo procissões destinadas a não sair. Esperamos, ansiosamente, com as toalhas penduradas na varanda, e não há meio de se ver no horizonte. Nem um acorde da banda, nem uma pluma das asinhas de anjo dos petizes.

Vai-se a luz do sol, e desistimos. Se a procissão passar, agora não a quero eu ver! Dobramos a toalha de renda, despimos a roupa de festa. Vamos dormir, sem saber o que aconteceu para que não houvesse procissão.

Não houve. Esta não houve, não a vimos. Não lhe sabemos as músicas, não lhe contamos os andores, não apreciamos as fatiotas e poupamos dinheiro em esmolas.

Vai haver outras. Muitas outras, até noutras terras. E desde que ela, finalmente, sai do adro, até que retorna à capelinha, sabemos que muita coisa vai acontecer. Vamos acompanhar, pacientemente, com ar solene, porque levamos tudo muito a sério.

Ou o padre se atrasou, ou o sacristão não foi arteiro nos preparos, ou, sei lá, choveu. Não a vi. Agora já não quero. Se não saiu, é lá com eles, não tenho nada com isso nem culpas no cartório. Eu nesta também não queria participar. Estava aqui mesmo só para a ver passar.

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN