Extinguir a Democracia mantendo-a

Hélio Bernardo Lopes
Escreve diariamente
De um modo inquestionavelmente objetivo, a nossa dita democracia está hoje reduzida à prática eleitoral do dia das eleições. Depois, pode acontecer tudo e umas botas mais, porque os cães ladram, mas a caravana passa, como usa dizer-se. Adquirida aquela legitimidade por via do voto, os que assim a conseguem, de pronto passam a entender que dispõem do direito de tudo dizer e tudo fazer.

Simplesmente, a atual Constituição da República ainda consagra alguns direitos que os grandes interesses entendem dever dali desaparecer. E até se compreende, se se toma como garantido que devemos viver na pobreza, porventura ainda maior, durante mais vinte ou trinta anos. Uma realidade que gerará protestos e recursos de tipo diverso, e que, por isso mesmo, se impõe limitar.

Em primeiro lugar vem dando os primeiros passos a doutrina a cuja luz a grande comunicação social deve evitar noticiar os grandes casos que envolvam gente do topo da pirâmide social, porque do Direito à Inocência é natural e porque, alegadamente, já ninguém poderá apagar o dano causado por tais notícias. Simplesmente, trata-se aqui de uma dupla falácia.

Por um lado, se nada pudesse noticiar-se, nada se saberia, tudo sendo tratado e não publicitado. Seria um terrível acréscimo na impunidade, embora num universo quase sem condenados. Por outro lado, dos mil e um concidadãos nossos já atingidos pelo mal agora apontado como tal, nenhum deixou de fazer carreira e de continuar na mó de cima, como usa dizer-se. Simplesmente, tudo ficaria ainda mais facilitado se passasse a deixar de noticiar-se estes casos.

Em segundo lugar, começa igualmente a ter o seu início a ideia de reforçar os poderes do Presidente da República, que os defensores desta ideia admitem poder continuar a ser oriundo da direita portuguesa. Bom, seria, nesse caso, o regresso a tudo o que procurou evitar-se com a Constituição de 1976, tendo em conta o que havia sido o regime constitucional da II República. Aliás, já assim se fizera na Ditadura Militar e no Estado Novo, fugindo à estrutura da Constituição de 1911.

Em terceiro lugar, continua a fazer a sua trajetória a ideia de diminuir o número de deputados à Assembleia da República, o que determinaria, obviamente, uma deficiência muito forte na representação parlamentar dos portugueses. Os partidos mais pequenos talvez ficassem à beira do seu fim, com a elevada probabilidade da direita passar a manter-se no poder por muitas décadas. Seria, então, o Estado Novíssimo: o Estado Novo, mas com partidos e uma democracia sem utilidade para a generalidade dos portugueses.

Em quarto lugar, e graças à ajuda sistemática de muitos dos grandes meios de comunicação social, a venda da ideia de que a Segurança Social não se aguenta tal como está, e que a Educação e a Saúde devem ser pagas por quem possa fazê-lo. Tal como temos vistos com os cortes – os agora eternos –, que eram para as pensões mais elevadas, ou seja, acima de seiscentos euros...

Em quinto lugar, e como também hoje se percebe à saciedade, os cidadãos sem meios materiais deixaram de poder recorrer à Justiça. É a democracia à portuguesa, meu caro leitor. Uma das maiores conquistas da História do Portugal recente: direitos, liberdades e garantias completamente consignados na Constituição da República, mas hoje quase ausentes na vida em sociedade.

Em sexto lugar, a nova ideia de pôr um fim no recurso para o Tribunal Constitucional, quer preventiva, quer sucessivamente. Ou seja, quem vença eleições passaria a poder fazer o que muito bem entendesse. Deve ser, no ambiente civilizado, um caso quase único.

E, em sétimo lugar, a nova ideia de tornar o voto obrigatório, de molde a esconder o inevitável e natural: o cabal desinteresse dos portugueses por uma política que só lhes traz pobreza e miséria. Perante níveis crescentes de abstenção, tradutores do desinteresse dos portugueses pela atual democracia e pela miséria em que estão a viver e em que vão continuar, há que esconder tal realidade, evitando mostrar o falhanço deste modelo em Portugal.

Foi com graça que há dias li de Almeida Santos a corretíssima ideia de que em África existirão sempre ditaduras. Ficou-me a dúvida sobre se ainda não percebeu que os povos europeus são distintos e que até existem aqueles em que os cidadãos nunca se interessaram, nem interessam, pela democracia. E também não percebo se consegue reconhecer o quase completo falhanço da atual III República, graças, acima de tudo, às pleníssimas concessões feitas por sucessivos líderes do PS às exigências da direita que sempre repudiou a Revolução de 25 de Abril.

Trata-se, se olharmos com atenção o que está a passar-se, de extinguir a democracia, mas mantendo a sua aparência. E porquê? Pois, para manter uma aparência de esperança e porque caímos na pobreza e a num beco sem saída. Como há um ano e pouco aconselhou Luís Mira Amaral, quem tiver valor e puder, que deixe Portugal, procurando a sua sorte por outras paragens. É um beco sem saída.

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN