Um tempo de enorme graça

Hélio Bernardo Lopes
Escreve diariamente
A RTP Informação, no seu programa, GRANDE ENTREVISTA desta quarta-feira, apresentou uma entrevista de Vítor Gonçalves a Otelo Saraiva de Carvalho.

Seria sempre, a priori, uma iniciativa sem grande interesse, com resultados fortemente previsíveis e sem um mínimo de utilidade. Por esta razão, não a acompanhei, apenas apanhando ligeiras passagens. Simplesmente, eu teria de visionar tal entrevista, ou não poderia opinar sobre a mesma, fosse por escrito ou nas conversas com gente amiga ou conhecida. E assim fiz.

Como pude já escrever, foi muito interessante aquela pergunta, deveras oportuna, do entrevistador: os portugueses convivem bem com a ausência de liberdade? Sendo a resposta claramente afirmativa – os portugueses nunca tiveram grande interesse pela democracia –, Otelo viu-se um pouco apanhado pela surpresa. Simplesmente, ele não poderia reconhecer ali a realidade desde sempre conhecida.

Nestes termos, Otelo lá deitou mão de uma espécie de meio termo: parece que durante quarenta e oito anos conviveram, mas porque se encontravam extremamente amarfanhados. E então procurou dar uma espécie de prova de que aquela realidade era simplesmente aparente: viu-se, em Abril, uma explosão de alegria imensa.

De tudo isto, o que acabo por sintetizar são duas conclusões: a completa incapacidade de reconhecer que a III República se transformou num fracasso e hoje já numa desgraça para a generalidade dos portugueses, que para o ano que vem terão mais uma lição prática de ilusão eleitoral; e o permanente recurso a realidades sempre mal contadas e mal apreciadas sobre o tempo da II República. E tudo isto quando a soberania nacional não passa já de uma expressão com limitadíssimo significado, situação para a qual os portugueses nunca puderam expressar-se.

Depois, a explicação de que os militares de Abril não estarão presentes na cerimónia que terá lugar da Assembleia da República, exceto se puderem usar aí da palavra. Parece que a Presidente da Assembleia da República terá duvidado sobre o grau de liberdade concedido pelas normas regulamentares, mas custa-me acreditar que tal regulamento tenha um caráter tão absoluto. Até porque são raras as coisas no Portugal político-institucional que o têm.

De seguida, a cabal contradição: defendendo que o Governo deve ser derrubado, se necessário pela força, nada foi capaz de dizer sobre a participação do PS e dos partidos de esquerda na referida cerimónia institucional, onde também irão usar da palavra os que tudo têm vindo a fazer para anular todas as grandes vantagens que se conseguiram, precisamente, com a Revolução de 25 de Abril e com a Constituição de 1976.

E o que se consegue com esta cerimónia? Simples: um baixíssimo share televisivo ao redor desta transmissão. Muito raros serão os portugueses que irão acompanhar tal cerimónia. Se desde há muito tem sido esta a realidade, e em crescendo, com a situação hoje vivida ela sofrerá um fantástico acréscimo.

Achei também muito interessante a sua revelação de que muitos camaradas seus, então ao serviço na PSP, GNR, etc., mesmo não aderindo ao golpe em preparação, lá foram fornecendo as informações solicitadas por Otelo. Fez-me lembrar um velho conhecido meu, que um dia me pediu duas cartas, uma para enviar a Diogo Freitas do Amaral, a outra para Adriano Moreira. E porquê? Porque se dizia que qualquer deles poderia vir a ser o candidato da direita à eleição presidencial...

Por fim, o regime de democracia direta que defendeu. Seria complexo de pôr em marcha, mas seria possível. Em duas votações, conseguir-se-iam todos os representantes parlamentares, governativos e autárquicos. Porventura, também o Presidente da República. Mas o que Otelo não quis analisar foi o modo como este sistema seria igualmente tomado pela corrupção e pelos grandes interesses.

Enfim, foi um tempo muito agradável de passar, até bastante engraçado, mas onde, no fundo, Otelo não teve a coragem de reconhecer esta realidade hoje já muito testada e visível: a democracia só serve se os eleitos estiverem dispostos a servir a estratégia dos que realmente mandam no Mundo. A uma primeira vista, Otelo parece não se dar conta de que os mais ricos são hoje os mais estrénuos defensores da democracia. Porque será?

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