A entrevista de Rodrigo de Sousa e Castro

H. Bernardo Lopes
Com enorme qualidade jornalística, o jornal i tem vindo a pôr à disposição dos seus leitores um conjunto vasto e diversificado, quase diário, de entrevistas a concidadãos nossos de grande referência na vida do nosso País.

Depois de há uns dias nos ter oferecido uma entrevista com Amadeu Garcia dos Santos, logo de seguida nos surgiu com uma outra ao coronel Rodrigo de Sousa e Castro, que teve um papel deveras importante na transição do Movimento das Forças Armadas para o funcionamento da democracia, que só agora, já sem militares no poder, começa a dar sinais de perder todo o valor de referência junto dos portugueses.

Esta entrevista a Sousa e Castro, em todo o caso, apresenta um valor substantivo bem mais vasto que a concedida pelo general. Aborda um conjunto muito vasto de temáticas e todas elas muito úteis para a nossa compreensão do que se passou desde a manhã de 25 de Abril de 1974. É sobre esta entrevista que aqui irei tentar escrever alguns comentários.

O coronel refere-nos a sua origem social, que no seu tempo de infância e juventude se designava, em linguagem corrente, como de uma família remediada. Conheci muita gente em tais circunstâncias, como por igual das classes média, média alta e alta. Conheci filhos e filhas de notários de Lisboa, filhos e filhas de militares, incluindo oficiais superiores e generais, do ambiente ligado ao médio e grande setor empresarial, etc.. Em todas estas classes e ao nível dos amigos a que me encontrava ligado, existiram os que nunca estudaram para lá do segundo ciclo liceal.

Como pude já explicar, a razão destes meus antigos colegas não terem estudado não teve nada que ver com limitações de natureza material, até porque tudo era muitíssimo barato, desde os livros, aos equipamentos de todo o tipo e às propinas. Havia a exceção de Medicina, mormente por via do custo do Tratado de Anatomia Descritiva, em geral de Rouvière ou de Testue e Latarget.

Ora, eu pude já referir os casos de dois colegas meus, um até ao final do segundo ciclo e outro que chegou mesmo a entrar no Técnico. Nenhum continuou a estudar, seguindo ambos a carreira jornalística e sendo muito conhecidos dos acompanhantes do ambiente do futebol. Mas vou hoje referir, e pelos nomes, dois casos inversos, mas ambos triunfantes. Refiro-me ao caso do advogado, Vasco Hilário, e ao seu colega de curso, o igualmente causídico, Braga Domingos.

Ambos eram de origem humilde, e do interior de Portugal. No primeiro caso, toda a família perdeu o pai em crianças sendo natural de um lugar, que não era, pois, freguesia: Monte da Velha. Este iniciou a sua vida na Marinha, mas como marinheiro, entrando o outro para a PSP como guarda. Simplesmente, ambos se determinaram a estudar Direito, tendo ganhado a vida com trabalho e estudando com sacrifício à noite. Com tempo, acabaram por licenciar-se nessa área. O primeiro está no Ministério da Defesa Nacional, no gabinete jurídico do Estado-Maior da Armada, tendo o segundo progredido na PSP, no mínimo, até comissário, mas sendo quase certo que terá chegado a subintendente. Ambos queriam estudar e nunca para atingir tal objetivo se viram impedidos.

Depois, Sousa e Castro expõe muito bem o que se passou com a chamada descolonização, que se tratou, de facto, de uma transferência de poder. Com grande oportunidade, expõe que Melo Antunes, ele mesmo, e outros, sempre preconizaram a transferência do poder em Angola para o MPLA, mas que tiveram que bater-se contra o PS e Mário Soares, sendo toda essa iniciativa dos militares boicotada.

Afinal, como conclui, temos hoje o MPLA no poder, com Isabel dos Santos e boa parte da elite daquele partido a mandar economicamente em algumas áreas do nosso País, ao mesmo tempo que os que aqui se opuseram a que se fizesse a transferência de poder para a única entidade política angolana credível, estão hoje a lamber-lhes as botas. Bom, caro leitor, é a realidade.

Um pouco adiante, Sousa e Castro conta-nos que no interior das estruturas militares, em face do surgimento da crise que sobreveio, surgiu de pronto muita gente que se convenceu de que a abertura criada aos portugueses – o caminho que se estava a fazer – não era o adequado, mormente após os acontecimentos de 11 de Março de 1975. Uma outra realidade conhecida por quem tenha estado atento e estivesse dotado de boa fé.

Logo depois, Sousa e Castro aborda o papel político de António de Spínola, e também aqui de um modo corretíssimo. Inquestionavelmente, como salienta, Spínola foi o homem completamente errado na altura mais necessária, porque era de uma irrelevância política total, tendo sido, por isso, a pior coisa que aconteceu ao processo democrático, na medida em que cometeu um conjunto de erros, alguns deles naïves, justamente porque não só não tinha qualquer preparação política para enfrentar a situação que se vivia, como estava mal rodeado. É a cabalíssima realidade. Uma realidade que justifica que volte a expor uma conversa de que participei, em dia festivo, já com muitas décadas.

Depois da cerimónia de batismo da filha do meu compadre, tendo decorrido o beberete no Forte da Azarujinha, os mais íntimos convidados reuniram-se em casas dos avós maternos da menina. A dado passo, o general Alberto Andrade e Silva, que era o Ministro do Exército ao tempo do Movimento das Forças Armadas, tendo ouvido dizer que eu vinha convivendo com António de Spínola, puxou-me amavelmente para si, dizendo-me estas palavras: já sei que o Hélio se dá com o general Spínola.

Respondi-lhe afirmativamente, mas explicando como se chegara a essa situação, de facto, verdadeiramente fortuita e por via de estar eu ligado, ao tempo, à vida política. Admitindo o meu expectável desconhecimento da vida interna do Exército, Alberto Andrade e Silva, na presença de dois generais e diversos coronéis, todos na reserva, disse-me estas palavras: Hélio, eu sou o único oficial-general do Exército Português vivo que desempenhou até hoje todos os mais altos cargos existentes no meu ramo militar. E começou, então, a elencá-los: fui Ministro do Exército, Chefe do Estado-Maior do Exército, Presidente do Supremo Tribunal Militar, Comandante-Chefe das Forças Armadas em Angola, Comandante da Região Militar de Lisboa, Comandante da Academia Militar, Comandante da Manutenção Militar, Diretor da Arma de Cavalaria, Ajudante-General, etc..

E concluiu: posso assegurar-lhe que o António de Spínola foi um dos oficiais mais estúpidos da antiga Escola do Exército, dentro daquela cabeça é só serradura. Ao que de imediato aquiesci, dado ter, desde há um bom tempo, podido constatar isso mesmo. E terminei com este ponto, inquestionavelmente incontornável: até porque um militar digno desse nome não foge do seu País.

A consequência dessa triste figura de Spínola, como refere Sousa e Castro, foi que, a partir daí os militares mais à esquerda e mais revolucionários acharam que era o momento oportuno para fazer avançar a revolução e isso fez desaparecer um projeto moderado, social-democrata, de reorganização económica, que era o plano Melo Antunes. E conclui muitíssimo bem ao mostrar o seu espanto por ainda existir muita gente que acha que o 11 de Março foi culpa dos comunistas, que é uma coisa extraordinária e espantosa: um golpe militar, organizado por indivíduos da direita e da extrema-direita militar, que tomaram conta de um quartel de aviação, pegando em aviões, e atacando um quartel do Exército com a finalidade de tomar o poder, é feito pelos comunistas?! E conclui, cheio de razão: o PREC é filho da direita, não é filho da esquerda.

Com grande interesse, o coronel aborda a tomada da sede da Direção-Geral de Segurança, (DGS), mas salienta que a mesma nunca constituiu um objetivo militar importante. Refuta cabalmente a velha historieta sobre a transferência de camiões com documentação da DGS para a antiga União Soviética, embora reconheça terem desaparecido os processos de Álvaro Cunhal e de Mário Soares.

Logo de seguida, aborda com muito interesse o caso dos funcionários e colaboradores da DGS e polícias predecessoras, mas, infelizmente, nunca aborda o caso dos utilizadores dos serviços da DGS – os grandes grupos económicos –, nem o caso da Legião Portuguesa, superiormente dirigida por militares, no ativo ou na reserva, do quadro permanente ou de complemento.

Termina com o reconhecimento, muito correto, de que o cargo de Presidente da República não tem já hoje prestígio, porque o regime constitucional se parlamentarizou e porque a Assembleia da República vive completamente limitada pelos partidos, por sua vez dirigidos pelos seus diretórios. Ou seja: é muito baixa a representatividade da classe política que temos.

Reconhece que ninguém pode dizer que hoje o país não está mais evoluído – está mesmo mais que no Século XIX, ou que no tempo de D. Dinis –, que não tem melhores índices de desenvolvimento, mas se analisarmos a evolução, provavelmente encontramos nessa análise as razões para termos o país quase mais atrasado da Europa. Faltou-lhe reconhecer que na manhã de 25 de Abril de 1974 a primeira derivada da função esperança no futuro era altamente positiva, ao passo que hoje é absolutamente negativa. Naquele tempo, sabia-se que o dia seguinte não seria pior, hoje sabemos que o dia de amanhã não será melhor. Uma realidade a que tem de juntar-se o facto, já muito badalado, de que Portugal precisou sempre de ajuda.

Com grande acerto, refere que em caso algum de desnacionalização se melhorou, porque tudo se tornou pior para a generalidade da população, com exceção de uma ínfima minoria. E em todo o lado do Mundo. Temos hoje uma situação económica catastrófica sob o ponto de vista financeiro, não havendo dinheiro para nada, mas sempre sem transparência em coisa nenhuma.

E Rodrigo de Sousa e Castro termina esta sua interessantíssima entrevista com o reconhecimento de que temos uma democracia mas sem substância, com a população sem espaço para dizer o rumo que deve ter o País nem para intervir politicamente. Faltou-lhe reconhecer que no Portugal destes dias a grande probabilidade de se conseguir triunfar reside em ter estômago para entrar em esquemas os mais diversos. Os escândalos que vêm tendo lugar mostram à saciedade o estado moral do Portugal dito democrático. Um Portugal que, com o que se tem feito aos reformados, nem é já um Estado de Direito. Como Estado independente é quase certo que teremos deixado de existir. Resta-nos as linhas de força derivadas de sermos uma Nação.

Hélio Bernardo Lopes

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