O presente texto procura escalpelizar, de um modo naturalmente limitado, a entrevista que o general Amadeu Garcia dos Santos concedeu ao i nesta mais recente segunda-feira. Mas nela se introduz um outro aspeto que gira ao redor da atual situação de Portugal e dos portugueses, hoje naturalmente sem futuro.
Assim, Garcia dos Santos, algum tempo antes do 25 de Abril, esteve com Agostinho Barbieri Cardoso – era o subdiretor-geral e não o chefe máximo, que era Silva Pais – numa festa de aniversário de alguém amigo, ou familiar, tendo-lhe sido perguntado por aquele se sabia de umas reuniões que andariam a ter lugar no meio militar, com especial ênfase, naturalmente, para o Exército.
Na entrevista, o general diz que está hoje convencido que a Direção-Geral de Segurança suspeitava que algo estava em preparação, salientando que no dia 25 de Abril de 1974 Agostinho Barbieri Cardoso já tinha abandonado o país. De facto, também no dia 16 de Março desse ano o antigo subdiretor-geral estava fora de Portugal.
Como se pode imaginar, não consigo conceber – nem ninguém deverá conseguir fazê-lo – que Amadeu Garcia dos Santos não disponha, na sua biblioteca, do mesmo que eu no respeitante à Revolução de Abril: tenho quase tudo o que foi publicado até hoje, mormente por militares, da esquerda ou da direita. Sendo assim, o general terá de ter lido, e por obra de colega fidedigno, que no seio do MFA existia gente que reunia com os dois lados.
Logo depois, aborda a influência de Salazar no que se vem passando na atual III República, resolvendo todos os problemas, forçando os portugueses a não se preocuparem com nada. Conclui daqui que os nossos pais não aprenderam a viver em democracia, não souberam ensinar os filhos a viver em democracia e, por sua vez, nós, filhos dos nossos pais, temos dificuldades em ensinar os filhos em viver em democracia, o que significa que nós, pelo menos durante quatro gerações, não vamos saber viver em democracia.
Este raciocínio de Garcia dos Santos é muitíssimo aceitável, mas peca também muito. Peca por esquecer o desastre da I República e peca por esquecer que a História é dinâmica e que a influência de Salazar deriva, em minha opinião, de ter ele ido ao encontro do modo, muito geral, de estar na vida do português. Além do mais, no mesmo raciocínio está implícita a ideia de que os portugueses viveram a II República desejosos de ter a democracia, que foi coisa que nunca vi. Mais: surgida a Revolução de 25 de Abril, o PS limitou-se a 36 % dos votos na Constituinte, logo descendo para 34 % nas primeiras eleições para deputados, rapidamente metendo o (dito) socialismo na gaveta. Ficou-se, como agora se vê, no dito socialismo democrático, que simplesmente não existe.
Num ápice, questiona-se sobre se os nossos atuais políticos são democratas, e se sabem viver em democracia, e sabem governar o nosso país. E conclui que os políticos que temos hoje são uns garotos que nunca fizeram nada na vida, por um lado, e nem sequer sabem o que é a vida com dificuldades. Vai mesmo mais longe: vamos ter dificuldades durante longos anos.
Claro que tudo isto são verdades evidentes e por todos reconhecidas, mas o que também é uma realidade é que tudo isto se passa no seio de um suposto Estado de Direito Democrático. E entidade alguma, até agora, tomou a iniciativa de materializar a dúvida legítima colocada por Isabel Patrício, há dias, precisamente no i, tal como também eu fizera já por vezes diversas.
Mas há um político que não satisfaz as condições apontadas por Amadeu Garcia dos Santos: o Presidente Cavaco Silva. Licenciou-se, doutorou-se e prestou as suas provas para professor extraordinário, tendo sido ministro, primeiro-ministro e presidente da União Europeia. E a verdade é que, como eu sempre escrevi, ele foi até hoje o Presidente da República com a pior intervenção política na III República. Nunca se teria chegado ao atual estado de coisas sem os seus dois mandatos presidenciais.
Claro que tem razão quando refere que não sabemos viver em democracia. Foi o que se viu no Século XIX e na I República e era, precisamente, o que sempre percebeu e pensou Salazar. E volta a ter razão quando reconhece que os portugueses são excelentes executantes, mas não sãs capazes de se organizar, de preparar o futuro, de dirigir.
Reconhece até que, em termos de caraterísticas genéticas do povo português, o português não planeia, vive um pouco ao sabor do dia-a-dia. É a realidade, mas que nada tem que ver com Salazar. Basta conhecer o que foi o Século XIX e a I República, e o que se deu ao longo destas quatro décadas da III República, já com a real vivência democrática à beira do fim. E então conclui deste modo inteiramente correto: somos incapazes de punir aqueles que fazem asneiras e são responsáveis por essas asneiras. Mas não tem sido assim também no ambiente militar? Não se promoveu a marechal um general que fugiu do País? Portanto...
Cheio de razão – eu mesmo a vivi em casa, no meu tempo de infância e juventude, mas também no liceu e na universidade –, o general recorda o pequeno grupo de amigos de seu pai, que se reunia numa loja da Baixa Lisboeta, discutindo e criticando, chamando todos os nomes possíveis e imaginários a Salazar e aos seus capangas, mas sem que fizessem o que quer que fosse. E então faz esta síntese, tão verdadeira quão fantástica: aguentámos a II República tranquilamente. Precisamente o que eu mesmo pude explicar desde há muito.
Muito engraçado, até ridículo, é aquele desabafo sobre o olhar de Salazar, que parecia furar. A verdade é que não furava. Simplesmente, as pessoas são diferentes. E se com Amadeu Garcia dos Santos até se pode achar graça a uma tal impressão, já com o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa a mesma reação só tem uma leitura: o abismo, em cultura e em política, portuguesa e do Mundo, e a garantia prévia de que nunca venderia Portugal a pataco. Simplesmente, houve gente do tal reviralho que falou com Salazar e lhe disse que não aceitava o seu convite por discordar da sua política, como se deu, entre tantos outros, com Manuel Jacinto Nunes. Cunha Leal até lhe enviava as suas obras! O olhar de Salazar, de facto, não furava.
Depois, Amadeu Garcia dos Santos, dando a sensação de não ter lido a obra, SALAZAR, de Filipe Ribeiro de Menezes, volta a deitar mão de um dos nossos piores defeitos culturais, ao apontar que, estando o colonialismo a desaparecer, Salazar tinha a obrigação de resolver o problema, ou de prever que iríamos atravessar uma situação desse tipo.
É interessante constatar este nosso modo de ser muito típico, e até presente em concidadãos que atingiram o posto de general: deveríamos fazer a descolonização porque os outros também a haviam feito. Algo inacreditavelmente, o general persiste em dar valor ao Direito Internacional Público, para mais naquele tempo. Nem se recordou, por exemplo, que De Gaulle ordenou a navios mercantes de pavilhão francês que furassem o bloqueio à Rodésia, com o mesmo suportado numa resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. E muito menos deverá saber que a invasão de Goa, Damão e Diu pecou pelas mesmas razões da de Timor: aqueles territórios, a deixarem a nossa soberania, deveriam ser Estados independentes com as fronteiras criadas pelo colonizador. Garcia dos Santos, espantosamente, ainda não percebeu o que Adriano Moreira há muito repete: Portugal precisou sempre de ajuda na sua História.
Um pouco adiante, apoia a ideia de que a descolonização devia ter sido feita mais cedo, mas de uma forma pacífica, porque estaríamos hoje a conviver com aqueles países de uma forma completamente diferente! Simplesmente inacreditável!! Como é possível assumir uma tal posição em face do que se vê por quase tudo o que foi colónia e por todo o Mundo?!! E então diz este verdadeiro mimo: se calhar estamos a caminhar para aí, mas só trinta ou quarenta anos depois e com custos muito elevados!!!
Segue-se um conjunto de divagações sobre as Caldas da Rainha e sobre o 25 de Abril, em geral sem qualquer acrescento histórico digno de registo. Mas vale a pena tecer algumas considerações sobre o que nos conta da Direção-Geral de Segurança, (DGS), e sobre o seu papel aqui e nas antigas províncias ultramarinas.
Assim, o general expõe que em África, a DGS era um organismo de informações, obtendo informações sobre o nosso inimigo, que depois dava às Forças Armadas Portuguesas. E continua: em África, a DGS não andava à procura dos portugueses contra o regime, trabalhava em prol das Forças Armadas Portuguesas, tendo uma ação muito importante, porque os militares não tinham a capacidade para saber coisas que eles tinham.
Estas palavras constituem, naturalmente, uma tremenda confusão, o que justifica que se faça aqui o essencial esclarecimento sobre a realidade. Em primeiro lugar, convém que se diga que a Direção-Geral de Segurança, a Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas Artes e o Serviço Meteorológico Nacional eram as únicas três instituições do Estado que dependiam do Governo de Lisboa em todo o território do Portugal do tempo.
Em segundo lugar, a legislação que tratava a DGS era uma só, fosse a parte de Portugal a que fosse. De facto, a DGS só não prendia e julgava comunistas – do PCP, portanto – em Angola, porque este partido nunca conseguiu organizar-se nesta antiga província ultramarina.
Em terceiro lugar, existiram diversas informações importantes conseguidas pela DGS no espaço português europeu de grande utilidade para a ação militar nas antigas províncias ultramarinas. As informações colhiam-se onde existiam e se se conseguia colhê-las.
E, em quarto lugar, é minha convicção que a DGS usaria métodos muito mais violentos – e até primários – em África do que aqui. Como facilmente se pode conjeturar, a DGS – e não só – usaria as torturas que lhe desse na real gana para levar os africanos, que eram capturados aos movimentos que lutavam em favor da independência dos seus territórios, a dar a conhecer o que pudessem saber de importante para Portugal. Mas também existiram crimes de guerra, e nunca punidos. Basta recordar, entre tantos outros casos, o Massacre de Wiriamu, ou o Massacre de Batpá, que nada tiveram que ver com a DGS ou com a PIDE. Até em Macau teve lugar um desagradável caso de violência, que levou Portugal a um vergonhoso pedido público de desculpas à República Popular da China. E não foi a DGS, ou as polícias predecessoras, as autoras dessa violência. É um tema onde é extremamente interessante ler, por exemplo, EQUADOR, de Miguel Sousa Tavares, cujo ambiente decorre no tempo de D. Carlos. E porque não tentar conjeturar sobre o papel da Aginter Press no quadro geral das ditas democracias ocidentais do tempo? Ou sobre o caso do navio Angoche? E o do Bolama, já bem dentro da III República, ou o do atentado de Camarate? E, afinal, em que se fica com o caso dos dinheiros do Ultramar?
Por fim, as palavras de Vasco Lourenço e de Otelo Saraiva de Carvalho, creio que em Loulé, sobre as comemorações dos quarenta anos da Revolução de 25 de Abril. Pois, eu, se estivesse no lugar de Assunção Esteves e dos membros da Conferência de Líderes, apoiava uma intervenção oral, em pé de igualdade com os partidos, de Vasco Lourenço como Presidente da Associação 25 de Abril. E por esta razão simples: poucos portugueses assistirão à transmissão da cerimónia, porque o que eles querem ouvir é o PS dizer que, caso vá para o poder, reporá os valores injustamente retirados aos que descontaram para o regime contributivo. E que reporá o Serviço Nacional de Saúde, universal e tendencialmente gratuito, bem como a Escola Pública. E aqui os portugueses perceberam já a realidade: o PS nem se atreve a dar tal garantia. Pois, se assim não fosse, já a teria dado.
Como pude já escrever, perante a cabalíssima destruição da Constituição da República, e das principais garantias naturais que dava aos portugueses, é absolutamente ilógico ir perorar numa cerimónia a que a generalidade dos portugueses já não atribui um infinitésimo de significado. Tudo o mais é conversa fiada.
Toda esta entrevista do general Amadeu Garcia dos Santos poderia sintetizar-se com o seu reconhecimento de que aguentámos a II República tranquilamente. Uma evidentíssima verdade de há muito por mim reiteradamente expressa. E é o que está a dar-se de novo, ou Vasco Lourenço e Otelo não teriam indicado o povo como o autor possível de uma nova revolução. Como muito bem disse Manuel Alegre há um bom tempo atrás, era muito mais fácil resistir naquele tempo. O que explica muita coisa...
Hélio Bernardo Lopes
A entrevista de Garcia dos Santos
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Opinião
/ Foi publicado
sábado, 22 de março de 2014
Notícias do Nordeste