Como é do conhecimento da generalidade dos portugueses, nós vivemos, supostamente, num Estado de Direito Democrático. Logo ao início do texto constitucional, num dos seus primeiros artigos, se diz que a soberania reside no povo, mas a grande verdade é que os que o representam se encontram a anos-luz, em matérias absolutamente essenciais, de traduzir a vontade, muito geral, do povo.
O académico Paulo Otero, há já uns anos, deu à estampa a sua obra, A DEMOCRACIA TOTALITÁRIA, que veio a ser uma das obras criticadas na sua prova de agregação pelo arguente, José Joaquim Gomes Canotilho, embora sem razão. Este chegou até a comentar, de um modo algo piedético, que o agregando, com aquela sua obra, totalizava o totalitarismo.
Simplesmente, Paulo Otero tinha a mais cabal razão, sendo que o posterior decurso do tempo veio pôr a nu tal realidade: já se fala que o fim da democracia pode mesmo vir aí, como que por morte natural. O próprio Mário Soares, não há muitos dias, referiu mesmo que é essencial que os portugueses continuem a acreditar na democracia. E estas suas palavras têm um fundamento: ele sabe o que está a dar-se no seio da sociedade portuguesa, fruto do surgimento da Maioria-Governo-Presidente de direita e que se está, progressivamente, a instalar a perda cabal da esperança e do reconhecimento, afinal, da inutilidade política da democracia.
Tenho muitas vezes, em especial com amigos ou conhecidos, dado o exemplo hipotético do que se teria dado entre Salazar e Cunhal, naquele tempo do segundo em Peniche, se este se determinasse a enviar ao primeiro um estudo de qualidade, por exemplo, sobre o Sistema Educativo e Científico. Feito o estudo e dirigido este a Salazar, pelos canais próprios, sempre Salazar lhe daria a maior atenção, certamente comentando-o com gente que lhe tivesse acesso e conhecesse dos temas. E se chegasse à conclusão que o trabalho deveria ser posto em prática a fim de servir melhor Portugal, nem por um minuto hesitaria. Cunhal continuaria a cumprir a pena a que fora condenado, mas Portugal nunca seria privado da aplicação de um estudo com qualidade superior.
Mas chegou a III República e eu mesmo pude assistir ao inverso da realidade hipotética antes apresentada. Em certo dia, muitos anos antes de Nuno Abecassis deixar a nossa companhia, o Grupo Parlamentar do PCP apresentou na Assembleia da República um Projeto de Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo. E numa reunião em que estive, com Nuno Abecassis e muitos outros, do PSD ou do CDS, o centrista reconheceu que o projeto de diploma em causa era o melhor, no seu domínio, jamais apresentado em Portugal. Simplesmente, após muita leitura e outra tanta discussão, o que Abecassis acabou por dizer é que o CDS teria de votar contra, tal como o PSD, dado que o documento era proveniente do PCP!!
Tínhamos a tal almejada democracia, mas os portugueses não podiam ser servidos com o melhor de sempre, dado provir dos comunistas!! Devo dizer que fiquei siderado com o desenlace da questão, logo me surgindo o exemplo hipotético atrás referido.
E agora mesmo, na peugada do Manifesto dos 74, foi possível assistir – e até por jornalistas e comentadores – a um verdadeiro ataque antidemocrático, mesmo usando uma linguagem desbragada, contra os que subscreveram este documento recente. Por isso costumo dizer, e com frequência, que temos a democracia!
Com um pouco de atenção, e com um ínfimo de boa vontade, há que reconhecer que, no mínimo, o conceito de Deus esteve sempre presente. Mesmo que esse conceito não passe de uma projeção antropomórfica do ser humano. A verdade é que, mesmo admitindo esta possibilidade, temos aí Deus sempre presente, agora até pela moda que se criou ao redor de Francisco I, apesar de pouco ter mudado no plano substantivo e sempre de um modo publicamente incontrolável.
Ao mesmo tempo, também a ideia de Pátria se desvaneceu, já completamente ausente da vivência da generalidade dos portugueses. E até a confiança no Sistema de Justiça – até o Primeiro-Ministro já reconhece, embora refugiando-se na ideia de perceção – voltou a ser mais abalada, agora com o caso de Jorge Jardim Gonçalves e com o que já se noticia sobre os restantes e similares. Se a tudo isto juntarmos os resultados das sondagens, percebe-se que os portugueses já não acreditam em nada nem em ninguém.
E é neste caldo cultural que a generalidade da direita de hoje vive, apenas ligada aos interesses, ao dinheiro e à riqueza. O que conta é a negociata, com os seus hipotéticos lucros, porque a generalidade do povo – a tal entidade depositária da soberania – é olhado com o máximo desprezo e votado a um quase completo abandono.
Por tudo isto, pareceu-me ridícula a manifestação de alguns dos nossos militares, para mais – já o referi há dias – com a quase completa ausência de oficiais-generais e dos principais militares de Abril. E se realmente não existe um infinitésimo de ideia em operar um outro Abril, bom, nada como recorrer aos Tribunais, muito em especial aos internacionais e às estruturas militares e políticas de que Portugal é membro. Fazer o que se pôde ver agora, tudo ficando a anos-luz da manifestação das forças de segurança, acaba por criar o ridículo.
Mas nós temos aí à vista as comemorações do quadragésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril. Com um espanto enorme para mim, aqueles que acusam, e com razão, de se estar a destruir, de facto, tudo o que o 25 de Abril trouxe à generalidade dos portugueses, lá irão fazer umas intervenções que poucos acompanharão, ouvindo as mil e uma loas que os destruidores dos benefícios de Abril irão dizer sobre a Revolução que nunca desejaram. É o ridículo, mas explica muito do estado a que chegámos e chegou Portugal.
É hoje extremamente interessante constatar a desgraça em que os portugueses se encontram, atirados que foram sem ser consultados para inacreditáveis perdas de soberania, e sem meios de poderem decidir o seu futuro. Têm, em todo o caso, a democracia. Mas uma democracia que não vê mal os casos das Malvinas, ou do Kosovo, ou de Granada, da Jugoslávia, do Vietname, do Panamá, ou de Gibraltar, mas logo aponta o dedo acusador à Rússia e a Putin no caso da Crimeia. Há até quem já veja tudo o que foi território soviético a beira do pânico! E – ainda mais gracioso – há quem não saiba, mesmo depois da explicação de Marcelo, que o Direito Internacional Público só conta se for ao encontro dos interesses dos grandes. Uma realidade que ele disse ter aprendido no seu segundo ano de Direito. É uma pena não estar Gorbachev hoje no poder, porque a Rússia lá acabaria por se transformar num pequenote país, porventura sem meios para manter as suas forças armadas.
E, por tudo isto, é extremamente interessante que haja ainda quem queira aderir à União Europeia, verdadeiro barco à deriva, onde uns ganham à custa dos restantes, hoje a viver na pobreza e sem futuro por muitas décadas. Simplesmente, nós temos a democracia. Tal como Yakunovitch e Maduro. E se estes são uns malandrões, já o líder da Guiné Equatorial é um excelso ditador. Pétrole oblige…
Hélio Bernardo Lopes
A Democracia totalitária
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Opinião
/ Foi publicado
sábado, 22 de março de 2014
Notícias do Nordeste