Uma carta que não chega ao Garcia

|Hélio Bernardo Lopes|
Os escândalos que envolvem a Igreja Católica Romana ao redor dos abusos sexuais de natureza diversa, hoje já plenamente reconhecidos por toda a parte, apresentam quatro caraterísticas: estão presentes em todo o Mundo; distribuem-se no tempo desde há muitas décadas; foram sempre plenamente conhecidos no seio sacerdotal; e foram fortemente mantidos em segredo pelos sucessivos níveis da hierarquia da Igreja Católica Romana.

À medida que estas caraterísticas se foram conhecendo, tive a oportunidade, há já mutos anos, de salientar que toda esta podridão se encontrava suportada numa natureza fortemente estrutural. Ou seja, teria de tratar-se de uma estrutura natural e reprodutiva. A menos que fossem tomadas medidas corretivas extremamente fortes, o que não creio ser possível numa instituição onde o segredo e a não transparência são caraterísticas definitórias e muito omnipresentes.

O último caso vindo a lume – com uma frequência elevada, podem ter já surgido outros – é o que, alegadamente, poderá envolver abusos sexuais por parte alguns membros da Congregação dos Irmãos Maristas no Chile. Uma congregação que é constituída por leigos. Por este facto, a medida recentemente tomada pelo Papa Francisco, mandando a Congregação para a Doutrina da Fé investigar o que possa ter-se passado, é excecional, dado que esta estrutura trata apenas de casos que envolvam sacerdotes, não leigos.

Devo dizer que tenho alguma dúvida sobre a razão desta excecionalidade, uma vez que, fora da mesma, o caso seria tratado pelas estruturas da Justiça chilena, muito mais garantística que a do Vaticano. Enfim, vamos esperar, a fim de vermos no que irão dar as investigações agora anunciadas.

Os alegados abusos aqui em causa incluem casos ocorridos há várias décadas, mas que nunca teriam sido denunciados antes. Bom, é o que se diz agora, mas a verdade é que se conhecem já situações, e bem à saciedade, onde esse conhecimento existiu, mas mantendo-se tudo num segredo induzido e pateticamente aceite. Portanto, há que esperar. Pelo meu lado, porém, não creio no surgimento de nada de verdadeiramente seguro.

Há um dado que não pode, todavia, deixar de referir-se: num gesto de transparência da Igreja chilena, a Conferência Episcopal do país publicou uma lista com os nomes de bispos, sacerdotes e diáconos condenados, pela justiça civil ou canónica, por abuso sexual de menores. É, sem dúvida, uma novidade.

Acontece, em todo o caso, que a punição de crimes, mormente desta natureza e envolvendo uma estrutura religiosa de primeira grandeza no Mundo, só pode ter lugar se os visados souberem do mecanismo público que pode ser posto em marcha em função de uma denúncia que possam fazer. Ora, o que estas potenciais vítimas sabem é que lhes será sempre apontada uma dúvida sobre o que possam expor, que se poderão ainda ver acusados de denegrir o bom nome da Igreja Católica Romana, depreendendo também que quem possa acusar e julgar terá fortes condicionamentos na sua independência decisória. Para já não falar no dinheiro que se impõe possuir para se poder dispor da adequada defesa.

A uma primeira vista, sendo o problema estrutural, com o número de casos surgidos a público ultrapassando os resolvidos ao nível das autoridades judiciais que possam trata-los, tudo aponta para que as medidas e iniciativas do Papa Francisco acabem por se saldar numa estratégia de derrota. Desejo fortemente estar enganado, mas tenho uma dificuldade inultrapassável em acreditar que uma tal carta consiga chegar ao Garcia.

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN