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2019, Ano Internacional das Línguas Indígenas |
Não houve antropólogos ou linguistas que soubessem exactamente o que diziam aqueles dois. Qual o modelo de representação que usavam? Não se sabia e, repare-se, a pergunta não apontava sequer o problema etnopoético da impossibilidade de traduzir uma mundivisão outra em modelo de representação de “homens brancos”. Era a raiz do modelo, a língua mesma, que se desconhecia.
Os especialistas passaram assim apenas “a deduzir” a partir das línguas daquela região, já conhecidas e já estudadas. Com aqueles dois seres se perdia toda uma língua e, com ela, toda a presença de uma história e de uma cultura, todo um saber — todas as formas de um “fazer” que deram forma àquela comunidade e que, certamente nos poderia iluminar o mundo de modo outro.
Em 2019, assinala-se, nas Nações Unidas, o Ano Internacional das Línguas Indígenas. Digamos que isso deveria devolver-nos à grande questão social e política que é a poética — aquela arte que Aristóteles, vendo-a sem nome, chamou simplesmente “fazer” (poiein).
Digamos que o que hoje se passa com as Línguas Indígenas é o epítome da dor do membro amputado, dessa fantasmagoria que nos dói quando afinal percebemos que a representação do mundo não está na natureza, mas antes se revela como insuportável ausência dos sentidos que reconhecemos.
Nesse caminho, digamos que a poesia, também celebrada no dia 21 de Março, continuará a ser o território que resta à nossa humanidade — com ela e nela existe a infinita e permanente possibilidade de (re)fazer todas as representações do mundo e/ou de todos os sentidos outros — o não-dito, o inaudito e o interdito. Aos poetas, esses legisladores do mundo não-reconhecidos, cabe-lhes guardar a voz de todos e de todas aquelas que não a têm — como aquele velho casal que, em toda a sua tragédia, viu cair sobre si essa enorme responsabilidade que é a de todos os bardos: ser os indivíduos representativos da comunidade, guardar a sua história, a sua experiência, o seu “fazer” do mundo.
Digamos assim que, neste ano e neste dia que ora celebramos, há que esperar o dia em que a poesia seja entendida como algo muito mais interessante do que a TV. E muito mais surpreendente.
Graça Capinha (Centro de Estudos Sociais) - Este texto não foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
Conteúdo fornecido por Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva