Notas a uma entrevista

|Hélio Bernardo Lopes|
Só hoje, fruto da ampla balbúrdia que varre o mundo, incluindo o caso de Portugal, com o constante e infetado caso noticioso do dito furto das armas de Tancos, tenho a oportunidade de comentar a entrevista de Joana Marques Vidal ao EXPRESSO, poucos dias depois de deixar as suas anteriores funções de Procuradora-Geral da República. Mas, como no-lo indica um velho ditado popular digno de registo, mais vale tarde que nunca.

Como teria de dar-se, a entrevista esteve muito centrada ao redor da corrupção e do seu combate em Portugal, o que se compreende bem. Em todo o caso, a entrevistada tratou igualmente de outros temas, havendo alguns mais, por acaso bastante candentes, que ficaram sem ser abordados. Começarei este texto, precisamente, por dois desses temas que não foram tratados na entrevista.

Um tema não tratado foi o do tráfico laboral em Portugal, que já hoje supera o tráfico sexual. Um estudo recente veio mostrar que em Portugal, de parceria com outros cinco países europeus, a exploração laboral ultrapassou o tráfico sexual enquanto principal forma de tráfico humano, sendo a maioria das vítimas do sexo masculino e trabalhando nos setores da agricultura, hotelaria e pescas. Com alguma estranheza, constata-se que é rara a atuação das autoridades neste domínio, invariavelmente sem grandes consequências práticas. Objetivamente, nas convivências correntes, este é um tema completamente ausente, estejam presentes algarvios, alentejanos, beirões, etc.. Uma consulta à grande comunicação social escrita, ou aos nossos jornais regionais ou locais, e raramente se encontrarão notícias sobre operações ou condenações. Se a isto se juntar a língua portuguesa, tal como a localização geográfica de Portugal, tudo piora neste domínio.

Muito recentemente, o nosso concidadão Acácio Pereira, com total razão, salientou sentir vergonha pelo facto de, sendo Portugal um país de vanguarda naquilo que foi a eliminação da abolição da escravatura, acabe por permitir que se continue a fazer a escravatura do século XXI. Isto porque o nosso País surge apontado como estando no topo, no plano europeu, deste flagelo repugnante.

Do que se conhece por ínvias vias, três quartos dos migrantes que chegam à Europa são alvo de tráfico ou de exploração, havendo em Portugal dezenas de milhares de estrangeiros a sofrerem abusos em explorações agrícolas, tendo-se transformado o País numa rota de tráfico de crianças africanas. São informações que facilmente se compreendem e podem aceitar, porque o mesmo teve já lugar com o tráfico de estupefacientes oriundos do subcontinente americano, bem como da África Ocidental.

Garante o Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização dos funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que o número de casos deste tipo se medem em milhares de pessoas, que todos os anos são vítimas de exploração em Portugal. Valores que contrastam com o reduzidíssimo número de casos descobertos, presentes a juízo e alvo de condenação.

Um segundo tema não tratado nesta entrevista é o do tráfico de crianças e menores: Portugal – é o que se sabe ao nível dos profissionais deste setor – está, de facto, na rota do tráfico de pessoas, nomeadamente, de crianças e menores. De resto, a Procuradoria-Geral da República emitiu uma circular apontando esta área como de investigação prioritária, tal como também o fazem as recomendações das estruturas competentes da União Europeia.

A todo isto importa justapor que o Grupo de Peritos em Ação Contra o Tráfico de Seres Humanos, organização do Conselho da Europa que controla a forma como é implementada a convenção contra este tipo de crime – vigora em Portugal desde 2008 –, colocou Portugal no topo dos países com mais desaparecimentos preocupantes de crianças. Enfim, terríveis manchas negras da nossa comunidade lusitana.

Vejamos agora os temas tratados por Joana Marques Vidal na sua entrevista. Assim, no domínio da corrupção, confirmou que somos um país onde o problema da corrupção tem uma dimensão que é urgente atacar, devendo ser encarada como uma questão essencial do Estado de Direito Democrático. Mas também referiu que não deve daqui inferir-se que somos um país de corruptos.

Com grande oportunidade, Joana Marques Vidal pensa que, politicamente, a resposta não é eficaz, vindo a ser muito superficial. Falta uma estratégia nacional, sendo pouco abordada e sempre no domínio judiciário. O que já não penso corresponder à realidade, ao menos no domínio do tempo em jogo, é a construir de uma dimensão cultural e de rejeição total da corrupção. E isto porque, num sentido muito amplo, o mecanismo da corrupção é fortemente tolerado no seio da comunidade portuguesa, bem como em mais uns quantos Estados da União Europeia.

Abordou, por igual, a Operação Marquês, defendendo-a com veemência no domínio da prova factual, que considera boa e defensável. E retira a importância normalmente apontada às possíveis decisões do juiz de instrução criminal, Ivo Rosa. E tem toda a razão: o processo é uma estrutura dinâmica, que funciona segundo regras estabelecidas.

Também tratou o caso do GES/BES, que considerou ser o caso mais complexo que o MP tem em mãos. Segundo referiu, é este o caso que reúne uma equipa vasta de diversos magistrados, liderada pelo procurador José Ranito. Simplesmente, estas investigações, iniciadas há quatro anos, requerem perícias económico-financeiras de grande profundidade, abrangendo muitos casos, que necessitam de ser analisados de com uma visão mais geral e está a demorar mais um pouco. Em todo o caso, Joana Marques Vidal assegurou que o DCIAP tem a capacidade para analisar as centenas de offshores e os esquemas financeiros complexos inerentes ao caso GES/BES. Por fim, com alguma aparência de resignação, a anterior Procuradora-Geral da República lá referiu que se vai ter de aguardar para ver qual vai ser a evolução deste caso, que é realmente muito complexo em termos técnico-jurídicos e que será, porventura, o caso mais complexo que o Ministério Público tem em mãos. No que me diz respeito, resulta de toda esta explanação a sensação de que este caso poderá vir a saldar-se em quase nada. Vamos esperar.

Mas também abordou, embora sem grande importância no que disse, o histórico caso Manuel Vicente. Aguarda-se o desenrolar do processo ao nível do Sistema de Justiça de Angola.

Por fim, abordou também os casos do enriquecimento ilícito e o da delação premiada. Dois instrumentos para o combate à corrupção que o poder político e o poder judicial têm obstaculizado. Uma realidade, embora a delação premiada contenha riscos de grande periculosidade ao nível de um país onde estão presentes os traços culturais que são os nossos. Quando refere que é preciso que as pessoas percebam que mesmo no Brasil, por si só, ninguém pode ser incriminado com um depoimento de alguém que vem dizer que essa pessoa é culpada, porque o que acontece é que há um conjunto de elementos que nos são trazidos pelos depoimentos de quem colabora com a justiça, Joana Marques Vidal quase nos faria crer que desconhece que, na generalidade dos casos, tal não funciona como refere. A delação premiada, num país como Portugal, com as tradições que se conhecem, passaria sempre a concitar a concorrência de quem pretendesse salvar a pele com quem pretende realizar trabalho com êxito aparente. Um perigo terrível...

Por fim, há muito que defendo a ideia proposta por Joana Marques Vidal: a possibilidade de, perante uma discrepância estranha e forte, possa o Ministério Público iniciar uma averiguação sobre a realidade que possa, porventura, esconder-se por detrás de uma ilegalidade. E ainda uma ligeira notinha: foi pouco feliz a defesa da continuidade de Amadeu Guerra na liderança do DCIAP. Mas foi uma entrevista muito interessante, sobretudo se acompanhada pelas imagens.

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