Conversa fiada

|Hélio Bernardo Lopes|
É muito interessante acompanhar, num café razoavelmente frequentado, o volume realmente fantástico de conversa fiada, invariavelmente ao redor de aspetos públicos, veiculados pela grande comunicação social, e sobre que se pronunciam os mais velhos da comunidade e hoje já aposentados.

A generalidade destes nossos concidadãos situam-se na zona do saudosismo salazarista, num tempo em que, em geral por cobardia, só criticavam o regime político e o seu líder por entre gente familiar ou da sua cabal confiança. Simplesmente – viu-se isto na eleição em que concorreu Humberto Delgado –, perante a incerteza de uma mudança, antes um mal conhecido que um péssimo possível.

Quando surgiu a Revolução de 25 de Abril, de um modo muito geral e de novo pelo modo politicamente cauteloso dos portugueses, de pronto estes se deitaram a dar morras aos vencidos e a mostrar-se compreensivos para com a democracia que se anunciava ir nascer. Muito mais depressa, porém, começaram os trabalhos de parto do que viria a saldar-se no falhado 28 de Setembro, o tal da dita maioria silenciosa.

Ora, neste passado domingo, em certo centro comercial de Lisboa, que frequento há muitos anos, a fim de tomar café e o pequeno-almoço, lá fui encontrar um oitentão de exuberância moralizadora, sempre sem se referir a Salazar, muito menos ao Estado Novo, mas pondo sempre em causa a Constituição de 1976, o seu Sistema Político, a moral de hoje e tudo o mais que possa ser feito politicamente, desde que seja proveniente do PS.

E foi até interessante, neste domingo que passou, ouvir-lhe um elogio a um qualquer escrito de Rui Tavares, certamente por este criticar algum comportamento pontual do Governo e António Costa.

Acontece que este velho arganaça é casado, sem filhos, mas já um bem conhecido narcotraficante. Dado que moro na minha zona residencial já desde o final de 1973, conheço, ao menos de vista, a generalidade das pessoas da minha zona residencial e sua envolvente próxima.

A dado passo, vi chegar e instalar-se em certa mesa do referido centro comercial um casal pelas minhas bandas nunca visto. De um modo simples, dei-me conta de que a senhora olhava ao redor sem parar, naturalmente esperando por alguém. Desconfiei, como já é meu hábito.

Passou um ápice, e eis que lá surgiu o tal arganaça, de pronto tonitruando de (aparente) admiração por encontrar (inesperadamente...) o tal casal seu íntimo amigo. Falando alto, este último lá explicou que a mulher não estava em casa, mas que deixara as janelas viradas a Sul com as persianas abertas, pelo que se deslocara à mesma, a fim de as fechar. Num segundo ápice, começou o corte, a-torto-e-a-direito, em tudo o que pudesse referir-se à governação. Tinha de ser.

Num terceiro ápice, eis que a senhora do casal teve de ir a casa da mãe, a fim de ver como a senhora estava. Simplesmente, se assim fosse, a senhora tinha lá ido bem antes de chegar o arganaça. Além do mais, a mãe da senhora morava no prédio do nosso moralizador do Estado Novo e logo no andar contíguo... Bom, ficou assim resolvido este elementar sistema de condições.

A senhora foi, isso sim, a casa do arganaça, onde, ao contrário do que este dissera, estava a sua mulher. Ali recolheu o que ia buscar, tendo, muito provavelmente, pago o montante devido. Uns dez minutos depois – talvez nem tanto –, a senhora voltou, com a mãe em estado excelente, mas logo com o marido a prepararem as despedidas. Nada como pôr pés a caminho... Mesmo a dez metros de distância, ainda se pôde ouvir o arganaça dizer à senhora: veja lá, se precisar de alguma coisa é só dizer, porque eu estou logo ali ao lado.

Esta cena é extraordinariamente interessante, porque mostra como alguém do interior do Estado Novo, antigo funcionário público superior, se transformou, nos dias de hoje, num narcotraficante, a todo o momento debitando uma (aparente e falsa) atitude de profunda moralização, criticando tudo e todos que possam, de algum modo, defender a Constituição de 1976, com tudo o que de excelente ela acabou por conceder à generalidade dos portugueses. Incluindo este narcotraficante e os que lhe vieram comprar o que facilmente se pode perceber. É mais uma das constantes históricas do País: atravessa regimes constitucionais e sistemas políticos.

Ah!, mais uma ligeira notinha: ainda surgiu um casalinho de controleiros múltiplos, que o casal comprador desconhecia.

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