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|Hélio Bernardo Lopes| |
01 – O exercício do poder na Rússia, já do tempo czarista, foi sempre extremamente centralizado, situação que, em si mesma, correspondeu, de modo forte, ao sentimento coletivo da sua população. Precisamente o que ontem foi exposto nos momentos finais do trabalho televisivo sobre a saga dos Romanov, na sequência da chegada dos bolcheviques ao poder.
02 – Em contrapartida, a correspondente situação em Inglaterra foi quase a oposta. O exercício do mecanismo democrático, naturalmente com as limitações fortes derivadas de uma estrutura de classes sociais muito bem definida e mais ainda acentuada, levou a uma prática muito institucional do mecanismo democrático. Dois casos que podem caraterizar-se pelo exercício de um poder hard – o da Rússia – e o de um poder soft – o de Inglaterra. Em boa verdade, a população nunca dispôs de meios, em qualquer dos casos, para exprimir, no mínimo, uma ordem de preferências políticas a prosseguir pela governação. Uma realidade que pode já hoje observar-se com quanto se está a passar com o BREXIT.
03 – Os problemas envolvendo ações de espionagem estiveram sempre presentes em Inglaterra, embora por décadas negadas. E o mesmo se deu com a Rússia de sempre, mas aqui já assumidos de um modo muito aberto e quase nada negacionista. É um tema sobre que se impõe ler o excelente trabalho surgido no COURRIER Internacional de junho, como pude já referir no meu texto anterior. Um trabalho que, como síntese, vale por todos.
04 – A fleuma inglesa, tão presente em tantos outros domínios, determinou que a atividade de espionagem fosse muito praticada mesmo nas classes da mais elevada burguesia, incluindo gente de elevado nível social e intelectual. Mesmo o fracasso, até a traição, também se viam bafejadas pelo modo tipicamente fleumático dos ingleses. Uma realidade muitíssimo bem exposta no tal trabalho do COURRIER Internacional.
05 – O Reino Unido, mormente depois da Segunda Guerra Mundial, pôs em prática uma política de receção a tudo o que fosse trânsfuga, fosse por motivos políticos, religiosos, financeiros, ou outros de onde, no plano potencial, se pudesse vir a retirar um qualquer benefício. Mais uma vez, recomendo a leitura do excelente trabalho do COURRIER Internacional de junho. O problema é que toda a medalha tem anverso e reverso...
06 – A generalidade dos políticos mundiais nunca se determinou a compreender que o comunismo não era viável, dado ser uma estrutura ideológica que se desenvolve à revelia da natureza humana. Esta é individual e egoísta, acabando por desenvolver uma estrutura de suporte assente na concentração de riqueza, só reagindo em circunstâncias excecionais às aflições da esmagadora maioria. A estrutura capitalista produz amplamente, mas à custa de uma maioria amplíssima de, no mínimo, muito-mal-pagos. A estrutura comunista tenta colocar todo o trabalho humano ao serviço de todos, certamente com diferenças, mas sem poder atingir os níveis de produção da sociedade capitalista. Esta diferença veio a gerar o que ficou conhecido por socialismo num só país. E deste embate, como sempre teria de dar-se, sobreveio o triunfo capitalista, acompanhado do desmoronar da ideia socialista.
07 – Acontece que o triunfo capitalista não se determinou a gerar mais riqueza para todos e melhor distribuição pelos povos do mundo dos bens produzidos no seio do seu próprio sistema vencedor. Como pode ver-se à saciedade, o que se gerou foi o renascer da descrença na democracia e nas suas instituições, o desenvolvimento da miséria, da fome e o regresso de doenças que se supunham erradicadas, ao mesmo tempo que passou a poder ver-se, até já nas calmas, a fuga brutal de gente oriunda de lugares do mundo os mais diversos, no sentido dos territórios que foram operando a exploração dos seus próprios lugares de origem. Chegou-se à beira do fim do valor da democracia, não se conseguiu o desenvolvimento dos povos do mundo, levou-se a Terra à exaustão e nasceu a descrença por todo o lado, certamente em graus variados.
08 – Olhando com atenção e honestidade intelectual e moral, percebe-se que a presente situação do mundo se deve, precisamente, à ação dos vencedores neoliberais, não dos vencidos do socialismo real. Ninguém, desde que honesto, pode deixar de reconhecer que até os povos que criaram o Estado Social se estão a ver do mesmo destituídos. Precisamente o que também já está a ter lugar em Portugal, à medida que o PS se tem vindo a deixar levar pela onda laranja, sobretudo (e realmente) capitaneada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que lá vai deitando mão dessa errada e perigosa ideia dos consensos.
09 – Esta ação exploradora neoliberal e global teria sempre de incluir no seu espaço de mira a amplíssima Rússia, sem meios de explorar as suas (quase) infindáveis riquezas, mas por igual a China, sobre que nunca se pensou vir a conseguir o desenvolvimento que hoje já ninguém nega. No primeiro caso, os Estados Unidos de pronto se determinaram a violar o que haviam concertado, honrosamente, com Gorbachev: paulatinamente, à medida a União Soviética, e logo depois a Rússia, desarmavam, os Estados Unidos deitaram-se a operar o cerco à nova Rússia, para mais com todas as vantagens de ser esta dirigida por um ébrio mais ou menos irresponsável. É o tempo das compreensíveis gargalhadas de vermelhidão que Bill Clinton deixou para a História.
Em contrapartida, a sabedoria chinesa teve um papel central no desenvolvimento da China, fugindo-se aqui à sempre perigosa armadilha da dita democracia à moda ocidental, em que os partidos dos Estados mais fracos, ou dos menos desenvolvidos, acabam por se transformar em correias de transmissão bem oleadas dos interesses dos Estados que realmente mandam. Uma realidade que os portugueses conhecem já hoje bem e que, com algum azar, também os ingleses e o mundo poderão vir a conhecer com o que pode vir a dar-se com a decisão soberana dos ingleses sobre o BREXIT. Como sempre escrevi, a democracia só serve se for a Direita dos interesses a ganhar e a governar.
10 – Com a chegada de Vladimir Putin ao poder – fala-se em décadas, mas há ver que se trata do constitucionalmente estatuído, e nas funções de Presidente da República e de Primeiro-Ministro – as coisas mudaram cabalmente de rumo. De resto, é bom não esquecer que também nos Estados Unidos, ao tempo de Ronald Reagan, já então atingido pela doença de Alzheimer, se pensou em voltar a permitir mais de dois mandatos para o Presidente da República. As coisas, em política, são como são.
A verdade é que Vladimir Putin, sendo um patriota, tinha uma formação política muito sólida, tendo desempenhado o cargo de diretor da FSB, sucessora do KGB. Um caso muito idêntico ao de George Bush – o pai –, que também havia sido o diretor da CIA. Mas com uma diferença muito significativa: os jornalistas, analistas, comentadores e outros especialistas lá nos vão dizendo que Putin foi agente da espionagem russa, evitando referir que desempenhou o cargo homólogo do desempenhado por George Bush...
Deste modo, Vladimir Putin determinou-se a tentar inverter a situação para que Gorbachev e Iieltsin tinham atirado a Rússia. E nesta sua ação política de pronto pôs um fim no sonho norte-americano de poder vir a explorar, certamente sem limites, as imensas riquezas da vastíssima Rússia. Bom, os Estados Unidos, naturalmente, nunca viram numa tal política o caminho a contento dos seus interesses de dominação mundial. Foi o início da contenda que chegou aos nossos dias.
11 – Sucedeu-se a vasta cadência de acontecimentos de natureza trágica, como o abate do avião malaio na Ucrânia, o desaparecimento do outro avião malaio no Pacífico, ou no Índico, onde ainda se tentou pôr a hipótese de que pudesse ter ido para o Cazaquistão, o derrube do Presidente da Ucrânia, que havia sido democraticamente eleito, a histérica reação à retoma da Crimeia, com quase todos, ao tempo, a reconhecerem a falta de valor da decisão tomada por Krutchev em noite de regada embriaguez, e num tempo em que não se imaginava o fim da União Soviética, o caso da dopagem dos atletas russos, as sucessivas e estranhas mortes de dissidentes russos no Reino Unido, de pronto atribuída a respetiva autoria à Rússia, numa primeira fase, e mesmo a Putin, logo numa segunda, etc..
12 – Perante toda esta realidade a União Europeia, os seus políticos, bem como os dos seus Estados, limitaram-se a fazer o que sempre se lhes conheceu: olharam para os Estados Unidos e, quais cataventos, seguiram o guião indicado. Assim, se alguém, russo ou não, espião ou não, foi morto pelo contacto com certa substância criada na velha União Soviética, é porque quem fez tal foi a Rússia. Não são precisas provas, embora se saiba que existe uma razoável miríade de Estados com capacidade para produzir a referida substância.
13 – Deste modo, o Ocidente determinou-se a aplicar sanções à Rússia. Sanções que acabaram por prejudicar todos e que fizeram subir o risco de guerra na própria Europa, em primeiro lugar, e no mundo, mais geralmente. Construiu-se, deste modo, uma narrativa difícil de ser agora parada, mesmo quando se conhece bem que a mesma contém amplíssima falta de sustentação a todos os níveis. Até as Nações Unidas acabaram por se ver paralisadas, com Guterres a reconhecer que é difícil encontrar uma solução para o estado das relações russo-americanas. O mais que esperado...
14 – No meio de toda esta perigosa paranoia, surgiu a inacreditável doutrina de reformar as Nações Unidas, e logo a começar pelo Conselho de Segurança – a Rússia e a China são membros permanentes e dispõem de armas nucleares e de poder de veto... Claro está que o que se pretende é pôr um fim no direito de veto, e também, se possível, pôr um fim no armamento nuclear, uma vez que é este que impede, de facto, o triunfo pleno do Ocidente sobre a Rússia e até a China. Sem armas nucleares, a Rússia passaria a ser um figo, como usa dizer-se. Até mesmo no plano religioso, sendo que a China se constitui ainda, neste domínio, num amplo terreno humano para desbravar. O raio de tudo isto é que está lá, na Rússia, Vladimir Putin...
15 – Os grandes obreiros norte-americanos desta paranoia anti-russa, objetivamente, foram sempre os democratas. Depois de Bush e Nixon terem aberto os canais para com a China, e deste ter posto fim na Guerra do Vietname, de Reagan ter conseguido a reconciliação com Gorbachev, assim se conseguindo o fim da hoje extinta União Soviética, até acabou por ser Donald Trump a aceitar encontrar-se com Kim Jong-un e agora com Vladimir Putin, a fim de remendar o terrível espólio deixado pelo borracho Barack Obama. Objetivamente, os históricos políticos soviéticos sabiam o que faziam quando preferiam presidentes republicanos a democratas. E Putin, inteligente e conhecedor, segue o mesmo caminho. Os republicanos são claros e sinceros, dizendo o que pensam e o que pretendem; os democratas são falsos, ínvios no pensamento e cataventos na ação. Um pouco como o que se passa com os ditos socialistas democráticos...
16 – Isto mesmo se tem podido ver desde que Donald Trump foi eleito, derrotando Hillary Clinton. Por todo o mundo, os ditos intelectuais perderam as estribeiras. Por um lado, teria havido batota na contagem dos votos. Por outro lado, a maioria dos americanos teria votado em Hillary, quando a regra é a do Colégio Eleitoral. Depois, ele era um bronco – quem não se lembra do que se dizia de Reagan?...–, ao passa que Hillary possuiria uma categoria superior. A seguir, o mirífico trilho russo, que estaria por detrás da vitória de Trump. Mais à frente, Stormy Daniels, sem dúvida bonita e muito interessante. Parece até ser inteligente. E, por fim, as ideias de Donald.
17 – Uma destas ideias foi a do muro na fronteira com o México. O cinismo dos intelectuais do mundo determinou que ninguém se lembrasse dos restantes muros já existentes, na Europa e em Israel, mas também no Vaticano, cercado por um muro, fechado durante a noite e que ainda não recebeu umas boas dezenas de migrantes nos seus jardins e nas suas instalações. Ao mesmo tempo, surgiu a questão da contestação de Donald Trump à ação do FBI, que sempre pôs de lado as ligações de gente da campanha de Hillary às diversas acusações contra a vitória de Trump e o apoio russo ao presidente e à sua equipa. Para os nossos jornalistas, analistas e comentadores a CIA e o FBI – sobretudo estes – estão ainda acima das próprias instituições religiosas. A sua palavra, mormente se exposta publicamente, não poderia ser posta em causa. Primeiro as polícias, só depois o Presidente dos Estados Unidos.
18 – Por tudo isto, Donald Trump nunca manteve plena confiança naquelas duas instituições. E tinha toda a razão para assim proceder, porque foi o seu próprio antecessor que lhe recomendou que não pusesse a CIA em causa, para lá de lhe ter solicitado que não mandasse averiguar Hillary Clinton ao redor do que esta operou através do seu servidor privado. E Trump, que é um bronco óbvio mas não é burro, facilmente percebeu que a CIA e o FBI não lhe mereciam grande credibilidade: vêm atuando um jogo com fins político-partidários, mas usando os instrumentos do Estado com as suas funções.
19 – Para se compreender, cabal e facilmente, o que tem estado aqui em jogo, imagine-se que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa iria iniciar, já no próximo sábado, uma visita de Estado a Angola. Cabe na cabeça do leitor que, a dois dias deste início, a nossa Procuradoria-Geral da República apresentasse publicamente, como suspeitos de certo ilícito, uma dúzia de governantes angolanos, ou dos seus gabinetes? Claro que não! E muito menos o faria o nosso SIS, ao contrário do que faz a CIA e boa parte dos congressistas, que vão dando a conhecer publicamente supostas realidades que, como Donald facilmente percebe, se destinam a limitar a sua ação e a realização das suas ideias políticas.
20 – Em entrevista surgida há uns dois ou três dias, Donald Trump foi muito claro sobre a CIA e o FBI: eles não têm nada contra mim, porque se tivessem já tinham mostrado... E foi até muito assertivo na Casa Branca, quando a luz se foi ao ar: se calhar, foram os serviços secretos, é estranho... Simplesmente, por entre nós ninguém referiu esta frase: se calhar, foram os serviços secretos, é estranho... Neste nosso caso, o que é significativa é a (má) qualidade da nossa grande comunicação social, toda ela fortemente alinhada com a grande estratégia dos interesses norte-americanos.
21 – Por outro lado, as palavras de Donald Trump em Helsínquia foram mal apresentadas e mal interpretadas pelos jornalistas, analistas e comentadores. De facto, até não custa acreditar que possa ter sido um lapso a falta do tal “não”. Simplesmente, ele explicou agora a realidade: podia ter sido a Rússia ou outra gente que por aí anda... E tem toda a razão, porque a Rússia pode ter feito o ato ou não, mas há mais gente por aí... E Trump sabe, desde que venceu a eleição presidencial, que é o homem a abater pela CIA, pelo FBI e pelos democratas. No mínimo...
22 – Por fim, o problema das informações do FBI e da CIA e a palavra de Vladimir Putin. Sendo evidente a falta de elegância em declarar, frente-a-frente com Putin, que estava convencido de que teria sido a Rússia a interferir na eleições americanas, também o é que todo o mundo atento ao que se passa nos Estados Unidos sabe bem que Trump é, para a CIA, o FBI e os democratas, um homem a tentar abater a todo o custo. Pois se assim não fosse, não iriam agora surgir os novos casos de Novichoc no Reino Unido, os doze hipotéticos russos ligados às notícias falsas ou a jovem agora presa como que por milagre: era uma espia ao serviço da Rússia... E o leitor, que certamente já foi às compras, não acha que há aqui fruta a mais? Claro que há!
No meio de tudo isto, esta fantástica novidade: o FBI e a CIA, com o terrível passado negro das suas histórias de vida, acabam agora por se nos mostrar como autênticos Estados dentro do Estado, porque querem ser quem define a política externa dos Estados Unidos, com o Presidente a mostrar-se naturalmente obediente. Num ápice, lá se viu forçado a reconhecer o que CIA e FBI pretendiam que dissesse. Isto, meu caro leitor, é que é a democracia à moda dos Estados Unidos: a polícia a condicionar a decisão presidencial, para tal criando factos sem provas, nunca sendo reconhecido aos visados e ao seu país de origem opinar sobre o que se contém no dito inquérito. A verdade é que é já hoje difícil não perceber uma tal engrenagem.