O relatório

|Hélio Bernardo Lopes|
Aí está mais um relatório sobre o estado do ensino, creio que apenas ao nível do Básico. Talvez também no do Pré-escolar. Um relatório cujos dados essenciais têm sido extremamente divulgados. Um documento que, para quem esteja atento – ou porque seja pai, ou avô ou professor –, nada traz, de facto, de realmente novo.

Diz o relatório que os nossos pequenotes, aí até aos dez anos, sabem resolver exercícios mas não problemas. E também que têm dificuldade em argumentar. Penso, do que retenho, que o documento também aponta insuficiências no domínio da Educação Física. Simplesmente, do que conheço de mim, isto foi sempre assim. Já era assim no meu tempo. Para mostrar tal, vou aqui falar um pouco de mim, mas sem que tal represente qualquer ínfima mania ou vaidade.

Em primeiro lugar, a fórmula resolvente da equação do segundo grau. Acontece que no antigo primeiro ciclo liceal se aprendia a noção de polinómio, com as respetivas operações. E aprendia-se que um polinómio de grau n podia ser escrito sob a forma de um produto de n monómios do primeiro grau.

Perante isto, ocorreu-me operar o produto de dois monómios do primeiro grau, obtendo um do segundo. Em pouco tempo, percebi a relação entre as raízes dos dois monómios e os coeficientes do polinómio do segundo grau. De seguida, impus-me resolver uma equação do segundo grau – essa equação que havia criado –, para tal escrevendo o polinómio do segundo grau sob a forma de um produto de dois monómios do primeiro grau. Perante a propriedade do anulamento do produto, achava as soluções da equação do segundo grau que havia criado. Num ápice, disse para mim: já sou capaz de resolver qualquer equação do segundo grau!

Falei nisto ao meu professor, que me disse estar eu certo, mas pedindo-me que resolvesse uma equação do segundo grau que ele mesmo criou num papel. E assim comecei a usar o meu método, só que não consegui achar as soluções. Apaguei e voltei a seguir o meu método, mas voltei a não conseguir... Então, o meu professor, sorrindo abertamente, disse para mim: não consegues, porque as raízes são imaginárias. E completou: um dia, eu explico-te o que são as raízes imaginárias e os números complexos.

Em segundo lugar, precisamente os números complexos. Quando a minha professora, já no terceiro ciclo, nos apresentou os números complexos, de pronto salientou bem: no conjunto dos números complexos não é possível estabelecer uma relação de ordem. Bom, fez-me espécie, como usa dizer-se. A verdade é que, ainda antes de terminar a aula eu já havia conseguido definir uma relação de ordem entre complexos: dados dois complexos, é maior o que tiver maior módulo. Expliquei à minha professora o que fizera, mas ela limitou-se, algo irritada, a repetir o que já havia dito.

Em casa, deitei-me a desenvolver a minha definição de relação de ordem, que criara na aula, mas logo me dei conta de que, a valer a mesma, surgiam terríveis perturbações nos domínios que já conhecia dos anos anteriores. E desisti de continuar à procura da tal (inexistente) relação de ordem no campo complexo.

E, em terceiro lugar, o último Teorema de Fermat, sobre que Sebastião e Silva falava no seu GUIA PARA A UTILIZAÇÃO DO COMPÊNDIO DE MATEMÁTICA, que pode hoje ser retirado do sítio da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Logo depois, surgem seis páginas alusivas à minha pessoa. E foi por o académico ali ter escrito que aquele que pela primeira vez demonstrar o TEOREMA DE FFERMAT, ou o TEOREMA DAS QUATRO CORES, ficará para sempre com o nome indissoluvelmente ligado à História da Matemática, que me determinei a procurar a respetiva demonstração. Ambicioso, optei pelo último Teorema de Fermat, certo, intimamente, de que conseguiria demonstrá-lo.

Na revista MILLENIUM, do Instituto Politécnico de Viseu, existe um artigo meu onde se pode ver a carta de Sebastião e Silva, oriunda do então Instituto de Alta Cultura, onde me mostrava o erro cometido na tal demonstração. Bom, caí de costas ao ler a sua carta. Mas uns minutos depois recuperei o meu ânimo e disse para mim: eu vou demonstrar isto, porque ele está é a ver que eu acabo por conseguir fazê-lo!! Essa carta termina assim: Siga o meu conselho: não pense mais no Teorema de Fermat. Já lhe expliquei porquê. Até que um dia se me fez luz: não tenho mais apetrechos para enfrentar esta porcaria.

Conto aqui estes três casos com a finalidade de salientar que todos se constituíram em objetivas singularidades. Eu fiz o que fiz por gostar muito de Matemática e por ter um espírito desafiador das realidades estabelecidas de modo dogmático. E tinha colegas, até melhores alunos que eu mas que não possuíam esta atitude.

Ao contrário do que poderá dizer o relatório, do que que uma vez escutei a Nuno Crato, creio que num programa PLANO INCLINADO, e do que penso ser a opinião da Sociedade Portuguesa de Matemática, eu penso que Portugal estaria muito melhor do que está se a Matemática, ao nível Básico e Secundário, estivesse muitíssimo mais centrada em exercícios que em problemas. Estes acabarão sempre por surgir, mas nunca será difícil, mais tarde, a exigente adaptação com vista à sua resolução. O que não pode é esperar-se que cada criança, ou cada jovem, se determine a adotar uma atitude de desafio investigativo em Matemática. Porque a consequência é a que se conhece: um tenente-general que dirigiu a PSP, em certa festa, pediu-me um dia, encarecidamente, que não levasse àqueles jovens cadetes aquelas coisas das primitivas e dos integrais... E disse isto quase com um ar de terror, o que me levou a concluir que também ele deveria ter passado umas boas passas em Matemáticas Gerais e em Cálculo Infinitesimal. A verdade, porém, é que chegou a tenente-general, o que não é para todos.

Por fim, a Educação Física. Ora, no meu tempo não tínhamos, nas aulas, nem mais nem melhor do que hoje. Simplesmente, tínhamos uma atitude muito virada pela procura da prática desportiva, mormente aos fins-de-semana: no Jamor – cá em baixo –, no Restelo, no Atlético ou no Palmense. Futebol de onze e durante hora e meia. Todos os fins-de-semana, em geral ao sábado de manhã.

Mas também jogávamos basquetebol, andebol e palmadinha – um jogo criado no meu liceu –, mas por igual judo e atletismo. Neste último caso, com um grande e já falecido amigo meu, procurei um dia o Professor João Coutinho, que treinava o CDUL. Apresentei-lhe, então, uma metodologia de treino com vista a derrubar o recorde nacional de 1500 metros, que pertencia a Valentim Batista, já então fora das competições. João Coutinho achou interessante a minha ideia, conferiu-lhe validade e disse aceitar a minha proposta. Simplesmente, passámos a treinar com os irmãos Fonseca e Silva – António e Luís – e com...Comura Imboá. O problema é que tínhamos de fazer com estes sucessivas séries de 100 metros, seguidas de uma espécie de trote, logo continuada com nova série de cem. Bom, um horror. E um horror que fugia do meu modelo. Falando com o Professor, este disse que o meu modelo era só para mais à frente, porque precisávamos sempre desta fase. Só que eu não pensava deste modo. Enfim, lá continuei.

Um dia, aí pelas oito da noite, à saída do Estádio Universitário de Lisboa, tomámos a usual garrafa de leite com chocolate da UCAL, Uma sanduiche com manteiga e queijo e dois rissóis. Ao chegar a casa, comi a sopa da minha mãe e carne assada com batatas, arroz e dois ovos estrelados. No final, uma laranja e uma pequena tablete de chocolate da Favorita. A minha mãe ia olhando, entre o sorridente e o pasmado. No final de tudo disse-me estas palavras: Lelo, a mãe não tem possibilidade de manter almoços e jantares como estes que vens tendo. E juntou: tu, só neste jantar, comeste um quilo de carne assada!

À noite, fui ao café e contei ao meu amigo o que se passara, acabando por pôr um fim no objetivo que, com gosto, nos levara ao CDUL e ao Professor João Coutinho. E como existia educação, fomos os dois, no dia seguinte, ao Estádio Universitário de Lisboa, a fim de dizer ao Professor a nossa decisão. Nunca esqueci as palavras do treinador: então, Hélio, e o seu método para derrubar o Valentim Batista?! E logo completou: eu acho que está correto, é um bom método, mas, antes, tem que treinar como aqui se faz, porque isso é essencial. Perante estas palavras, expus-lhe a verdade que se passara em minha casa e também na do meu colega de todas as ideias. Ao que o Professor João Coutinho aquiesceu: sim, isto obriga a uma alimentação muito reforçada e cara...

Com todas estas histórias da minha juventude procurei mostrar como o modo de cada um gastar o seu tempo depende, muito para lá do resto, da atitude do próprio. Cada um utiliza o tempo de que dispõe do modo que mais lhe apraz, sendo que tal decisão se deve, muito acima de tudo, a uma atitude muito própria. E há um dado que é certo e todos reconhecem da vida: o trabalho profissional de cada um só muito marginalmente se vê condicionado pelas matérias aprendidas ao longo da carreira escolar, com pequenas exceções. Até os mestrandos e doutorandos, sobretudo, se vão para fora do País, lá acabam por aprender inglês, o francês ou a língua que se mostre necessária. Ou seja, este relatório conta o que se conhece, sendo que a estrutura do ensino de hoje está longe de ser a adequada ao êxito que a comunidade precisa.

www.CodeNirvana.in

© Autorizada a utilização de conteúdos para pesquisa histórica Arquivo Velho do Noticias do Nordeste | TemaNN