Eutanásia

|Hélio Bernardo Lopes|
Pude expor já, até por diversas vezes, a carta que enviei ao cardeal José Saraiva Martins, que se encontrava então na sua terra natal. Nela referia, perante a governação da anterior Maioria-Governo-Presidente, que a eutanásia teria de chegar num prazo médio, dado que o acesso aos cuidados de saúde iria ser fortemente restringido – vivia-se o tempo da extinção das gorduras...

Acontece que as sociedades sempre se organizaram na base de uma estrutura piramidal de valores, a qual se vê encimada (sempre!) por um nível de transcendência, apenas envolto por uma carapaça marcada pela indefinição plenamente racional e pela aceitação absoluta do mesmo, à luz de um desejo arquetípico de bem. O Bem absoluto.

O nosso mundo, porém, vive longe desta inacessível realidade, apenas dela se podendo aproximar por defeito e, na melhor hipótese, por um mecanismo assintótico lento. Infelizmente, a História da Humanidade mostra que os aperfeiçoamentos são muitas vezes supérfluos, não essenciais, nem sequer acessíveis a todos. Até em espaços nacionais deveras pequenos. Além do mais, fortemente marcados por contradições intrínsecas.

Como sempre teria de dar-se – foi o que escrevi ao nosso cardeal –, aí nos surgiu a eutanásia. Certamente sem ser por acaso, num tempo em que se notam frequentes problemas no seio do Serviço Nacional de Saúde, tal como a Revolução de 25 de Abril e a sua Constituição de 1976 garantiram a todos portugueses, com ou sem riqueza. Um serviço a pagar por todos, de acordo com as suas possibilidades, e destinado a todos, nos termos das suas necessidades.

Sem espanto, pude assistir à corretíssima tomada de posição do PCP, que se determinou a votar contra a eutanásia com base nos avanços da ciência médica e no imperativo político de realizar a Constituição da República. Tudo nesta posição do PCP foi claro e correto, materializado numa exigência de vontade política realmente democrática.

O mesmo se pode dizer, por exemplo, da posição assumida pelo bispo do Porto, Manuel Linda: com esta legislação o Estado procura fugir aos seus deveres. E não pode evitar-se a realidade que se materializou na vontade geral das mais diversas confissões religiosas hoje presentes em Portugal.

Menos feliz foi o surgimento do Presidente Cavaco Silva, dado o desprestígio público que hoje o marca, mormente desde aquele caso que levou a uma petição de mais de setenta mil portugueses no sentido de que deixasse de exercer as funções presidenciais. Uma intervenção que só não se saldou num desastre maior por agora.

Mas também o Presidente António Ramalho Eanes foi pouco feliz, porque com esta lei, a ter sido aprovada, o Estado não iria meter-se na vida das pessoas e das famílias. A verdade é que o Estado está sempre a meter-se com as pessoas quando legisla. Um bom momento para não vir a terreiro. Por fim, o Presidente Jorge Sampaio, que sintetizou bem a intervenção titubeante dos (aparentes) defensores da legislação que veio a não ser aprovada. A verdade é que, objetivamente, o problema nada tem que ver com aspetos técnicos de valor absoluto, ou com a necessidade de mais ampla discussão. De resto, toda a gente sabe hoje bem o que está em jogo com o caso da eutanásia.

O que quase ninguém referiu foi que os cuidados paliativos simplesmente não avançam, tudo levando a crer que assim continue a dar-se. De resto, a nossa grande comunicação social não se dignou referir as palavras da eurodeputada Marisa Matias, a cuja luz a corretora internacional Goldman Sachs terá recomendado às empresas farmacêuticas que não invistam em tratamentos médicos que curem, porque isso transformará as doenças mortais em doenças crónicas o que acabará por afetar a estrutura negocial. E isto sim acabará sempre por levar a uma aceitação, porventura uma exigência, da eutanásia.

A tudo isto há que juntar a recente revelação da Organização Mundial de Saúde, solicitando uma ação urgente, para que em 2030 se consiga acabar com a desnutrição e instaurar uma cobertura universal de saúde em África. Mas logo acrescenta parecer tal algo pouco provável. No fundo, um panorama terrivelmente desolador.

Finalmente, as palavras do cardeal Manuel Clemente: a rejeição no Parlamento da despenalização da eutanásia mostra que é necessário avançar no sentido da vida, para uma sociedade mais inclusiva e realmente solidária. Uma realidade completamente mergulhada na irrealidade que tais palavras não focam. Falta, em Portugal, uma voz de exigência da Igreja Católica Romana em defesa da objetiva dignidade das condições de vida de todos e de cada um. E já agora: irá a Conferência Episcopal Portuguesa, de parceria as restantes confissões religiosas, dar corpo a um esclarecimento amplo e muito geral sobre o tema que vai voltar a ser tratado na Assembleia da República? Claro que não! Até porque se correria o risco de quase ninguém procurar esclarecer-se...

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