Sem dúvida que, nos seus fermentos ditos históricos, o feminismo surge no reverso da cidadania burguesa, a qual, seguindo Joan B. Landes, se construiu não apenas sem as mulheres, mas claramente contra elas. O século XIX, vestido de fraque e cartola, por um lado, ou ostentando as mazelas de uma industrialização progressiva, por outro, via nos valores femininos uma carta fechada, ostentadora dos segredos de uma líbido cujos perigos vestiram de luto. Todavia, não será despiciente, por exemplo, lembrarmo-nos de como a figura da prostituta, emparceirando com o anjo branco (da esposa), recobriu o imaginário da arte.
Portanto, o século XIX, contra o qual lutamos, e do qual provimos ainda, recobre-nos como um corvo negro. Tracejemos o feminismo nos seus fermentos ditos históricos: século XIX, a luta pelo espaço público; anos 60-70 do século XX, a reclamação pelo direito à vida privada e firmação da igualdade; anos 90 do século XX e em diante, a percolação das reivindicações anteriores e afinação de valores, pugnando pela inscrição na sociedade. Todavia, o feminismo-feminino possui um lastro mais profundo e provém de uma verdadeira história nocturna, no sentido que a esta dá Carlo Ginzburg. Curioso, mesmo, é que figuras incontornáveis do espectro feminista, e que são quase sempre trazidas à colação, como é o caso de Simone de Beauvoir, revelem uma clara irritação em face de um problema que se crê ser das mulheres: é com essa irritação que começa O Segundo Sexo, obra lapidar da filósofa francesa.
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Deitei mãos à obra sem premeditação, como sob o efeito de uma necessidade pessoal, abandonando outros trabalhos já começados. No entanto, a conjuntura também teve a sua influência: em Junho de 1996, um grupo de mulheres políticas, superando as clivagens habituais, lançava um manifesto pró-paridade, reclamando medidas voluntaristas que estabelecessem uma igualdade efectiva entre homens e mulheres nas instâncias de decisão”, diz-nos.
Ou seja, a questão do feminino/masculino terá de manter-se na fina linha que a polaridade igualdade/diferença lhe reserva: se pender para a igualdade corre o risco de ser película discursiva sem referencial existencial; se pender para a diferença corre o risco de se perder numa atomização incapaz de transcendência. Recuperando Sylviane Agacinski, “[…] devemos pôr radicalmente em causa a hierarquia dos sexos e a valorização dos modelos masculinos. Mas também assumir a diferença dos sexos, reconhecer nela a origem da diversidade humana e basear nela a exigência de novos modos de partilha.”
Interrogamo-nos, como faz a pensadora francesa: “Não será, para cada um de nós, o outro sexo o rosto mais próximo do estranho?” E acabamos como ela, ao abrir a Política dos Sexos: “É portanto politicamente decisivo sabermos como é reconhecida ou pelo contrário denegada a diferença dos sexos. Porque da maneira como pensamos o outro sexo depende a maneira como pensamos o outro em geral.”
Cláudia Ferreira (Historiadora)
Conteúdo fornecido por Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva