Património, identidade e desenvolvimento do interior

|Luis Pereira|
O título deste texto encerra três conceitos propícios ao confronto de opiniões e por consequência causadores de apaixonada discussão quando sobre eles decidimos refletir. O primeiro conceito é o de património, o segundo é o de identidade e o terceiro é o de desenvolvimento. Todos eles congregam em si a possibilidade de tratarmos esses temas através de visões diferenciadas e como tal quero expressamente alertar que esta minha opinião apenas resulta de uma visão estritamente pessoal que detenho e defendo sobre tais matérias.

Para não complicar teoricamente e tendo em conta uma necessária operacionalidade deste texto, vou utilizar aqui a definição ou a conceção de património que nos é transmitida pelas convenções, recomendações, resoluções e documentos legislativos orientadores, quer de origem nacional quer de origem internacional.

Atualmente, o Património Cultural divide-se em duas vertentes fundamentais: O Património Material (Arquitetónico, Arqueológico, Móvel, Imóvel, etc.) e o Património Intangível ou Imaterial onde se refletem as tradições e expressões orais, incluindo a língua; as práticas sociais, rituais e eventos festivos; os conhecimentos e práticas relacionados com a natureza; as aptidões ligadas ao artesanato tradicional ou ao saber-fazer, entre outras. O conceito de património pode ainda ser alargado à arquitetura vernacular e tradicional ou a determinados aspetos da geologia e da natureza.

Estamos assim perante um vastíssimo campo que engloba um não menos vasto sistema de divisões ou prateleiras onde poderemos encaixar as variadas vertentes que integram o conceito de património.

O segundo conceito é o de identidade. Muito mais complexo, este conceito tem de ser sempre abordado pela vertente antropológica, sendo que a identidade pressupõe o princípio do relativismo cultural e da aceitação das várias identidades que concorrem para a definição de um grupo, de uma etnia ou de um povo que ao longo dos séculos atuou sobre uma paisagem, transformado-a e, como tal, gerando cultura. Mas a identidade integra, para além do património considerado no seu todo, uma interação social muito própria, a comunhão de códigos comportamentais, a ideia de pertença e um processo natural de transmissão geracional dos vetores culturais e identitários que caraterizam pela singularidade um determinado grupo, uma etnia ou um povo.

Depois, e por último, chegamos ao terceiro conceito: o conceito do desenvolvimento que deverá ser implementado em territórios do interior. E aqui, quando trabalhamos com o património como um setor considerado sinérgico de desenvolvimento regional, só poderemos aceitar o princípio de desenvolvimento sustentado. Ou seja, o conceito de um desenvolvimento concebido na linha interpretativa de um processo económico que procura satisfazer as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades. Quando atuamos sobre um recurso temos que ter sempre em mente a possibilidade de dar às pessoas, agora e no futuro, a oportunidade de atingirem um nível satisfatório de desenvolvimento económico, social e cultural assente num uso razoável e racional dos recursos, sejam estes recursos naturais, sejam eles recursos patrimoniais ou outros.

Portanto, e depois de apresentados em pinceladas muito gerais os conceitos que englobam o tema de reflexão que aqui estamos a tratar, poderemos agora chegar a uma primeira formulação que tem no património cultural (material e imaterial) um recurso diversificado e abundante para que, no respeito pelo relativismo cultural, possamos ajudar a desenvolver, de forma programada e sustentada, um concelho, uma região e, por consequência, todo um país.

Centrando-nos nos territórios de baixa densidade de investimentos públicos, de que forma é que o património cultural poderá ajudar para interromper o processo catastrófico de despovoamento pelo qual estas terras do interior estão a passar?

Antes de mais é necessário colocar racionalidade, ponderabilidade, planificação e inteligência naquilo que se faz neste domínio. Atendendo a que existem sempre exceções, de uma forma geral foi isso que não aconteceu com muitos dos investimento aplicados em ações passadas de valorização do património cultural que foram processados com recurso a dinheiros vindos dos fundos comunitários. Efetivamente, não se poderá dizer que os recursos patrimoniais não foram utilizados com a intenção de promover o desenvolvimento local e regional, principalmente nas últimas duas décadas. Houve realmente algum dinheiro provindo dos fundos comunitários que foi investido neste setor em muitas terras e em muitos concelhos. Mas o que aconteceu foi que se investiu sem o mínimo de planificação, sem objetivos ponderados e sem um programa integrado de desenvolvimento local e, desse modo, estes investimentos não geram qualquer alteração, ou geraram alterações muito residuais, impossibilitando um impacto positivo nas economias do interior e, por consequência, na vida das pessoas que aqui habitam.

Na verdade, o que verdadeiramente aconteceu na maior parte dos investimentos feitos neste domínio foi que grande parte dos responsáveis políticos locais e regionais emperraram a sua ação numa necessidade castradora e imperiosa de mostrarem a obra, apenas a obra feita, a imponência do cimento e da dimensão da estrutura. A necessidade de apresentarem a obra feita para momentos de inauguração, uma inauguração que era quase sempre programada para as proximidades de mais umas eleições autárquicas, de forma a daí poderem extrair dividendos políticos. Mostrava-se a obra, mostrava-se o feito, mas esquecia-se um pormenor: esquecia-se a necessidade da manutenção dos novos equipamentos. Dentro desta lógica, fizeram-se centros interpretativos, recuperam-se sítios arqueológicos, recuperaram-se edifícios históricos, abriram-se percurso pedestres, montaram-se rotas temáticas, investiu-se no património intangível, apostou-se nas classificações da UNESCO, mas esqueceram-se de constituir a base de gestão que incorporasse os recursos humanos necessários ao funcionamento dessas estruturas; esqueceram-se de reservar uma “verbazinha” para a constituição dos recursos humanos especializados, os tais recursos humanos que são e serão sempre a engrenagem que faz e tornará criativo, funcional e dinâmico qualquer investimento que se realize no âmbito deste setor.

Sem recursos humanos associados a uma estrutura cultural ou patrimonial não há nem haverá qualquer possibilidade de transformar o estado das coisas. E foi isso que aconteceu. Investiu-se no património, fez-se obra, badalou-se a obra, mas depois ficou tudo na mesma.

Fazer museus e centros interpretativos para estarem fechados ou num estado de letargia criativa e sem intervenção visível e sentida no meio social onde se inserem; recuperar edifícios para permanecerem encerrados e entrarem num novo processo de degradação; recuperar e valorizar locais arqueológicos para passados um ou dois anos estarem novamente cheios de mato... não é uma política que possa ser adequada a um processo de desenvolvimento sustentado, tendo como sinergia o património cultural.

Mas nem tudo é mau ou foi mal feito quando analisamos com cuidado o que existe no território nacional porque, na verdade, existem exemplos em Portugal que foram bem estruturados e que constituem, sem dúvida, verdadeiros paradigmas para quem com eles queira aprender. Mas diga-se, repita-se, sublinhe-se que os projetos que emergem como exemplo ou modelo na área da promoção do desenvolvimento local e regional tendo por base a identidade e o património, foram projetos bem estruturados, devidamente pensados, estabelecidos em rede e com parcerias institucionais e universitárias. E, sobretudo, foram projetos dotados desde o início com um corpo técnico especializado, onde se incluem as áreas do património como a Arqueologia, a História de Arte, o Restauro, a Antropologia, a Sociologia ou técnicos ligados ao Marketing, Comunicação e Turismo.

Investir no património cultural implica, antes de tudo, investir nas pessoas. Os recursos patrimoniais não são apenas elementos de identidade, eles deverão ser encarados como elementos de dinâmica criativa e centros aglutinadores das potencialidades dos mais jovens, dos que sejam capazes de gerar progresso local, dos que sejam capazes de se imporem como pontos irradiadores de uma dinâmica criativa com repercussões positivas nos tecidos social e económico. Só assim poderemos conservar o passado e toda a nossa tradição cultural, ao mesmo tempo que projetaremos e planearemos um  futuro melhor.

Por isso, quando se pensar investir na sinergia património com vista a um processo integrado de desenvolvimento local, temos que ter sempre em mente uma abordagem participacionista do conceito de património, valorizando desse modo a participação pública dos cidadãos que também podem e devem ser chamados em processos de decisão sobre a utilização do seu património para fins de promoção turística ou outros.

Considerando a dimensão dinâmica do passado, o valor histórico da cultura e a necessidade da mesma “ser transmitida geracionalmente” e sem qualquer imposição ou exaltação etnocêntrica, defendemos pessoalmente que investir no património cultural implica investir na valorização de um setor que se pretende vivo, fruído e sentido quotidianamente pelas populações locais, através de iniciativas que devem ter como principal objetivo a inserção e a interação das pessoas com os seus museus e com todos os seus monumentos, espaços culturais e de cidadania.

Se é certo que “sem memória não há futuro”, é ainda mais correto afirmar que sem pessoas não haverá nem memória nem futuro. Por isso, o abandono do território, o abandono do interior, o fim da funcionalidade de uma paisagem rural é um dos maiores riscos para o património cultural e é também por isso que quando se investe, quando se recupera, ou quando se faz de raiz, a primeira coisa a pensar deverá ser num quadro de pessoal que permita dar continuidade e valor acrescentado à razão de qualquer investimento feito nessa área, para que também a partir daí se possa fixar pessoas que ajudarão a perpetuar a história local, a identidade local, e que na sua intervenção comunitária, em cada localidade, possam inovar e construir um melhor futuro.

Investir no património implica ainda a construção de discursos históricos suscetíveis de serem objeto de oferta turística e de visitação territorial. Não haverá uma dinâmica turística completa e de qualidade em territórios do interior sem uma oferta de qualidade. E uma oferta de qualidade implica, na área do património, um estudo permanente, uma investigação permanente a vários níveis, inventários diversos, a identificação e caraterização dos bens patrimoniais, a criação de zonas de proteção, a criação de planos de salvaguarda e um vasto leque de outras ações capazes de fixar mão-de-obra especializada e jovens habilitados com graus académicos superiores que poderão constituir uma massa critica local capaz de ajudar a alavancar processos de transformação mais rápidos, mais inovadores e mais sustentáveis, de forma a dotar os territórios rurais de infraestruturas e equipamentos para que a população aí possa permanecer em condições de qualidade e numa mais perfeita democracia.

O património, nas suas plurais dimensões, pode assumir-se, efetivamente, como um elemento de diferenciação, de singularidade local e configurar-se como um forte motivo de atratividade turística capaz de captar riqueza para as localidades do interior.

Sabemos que as novas tendências, e sobretudo as que emergem dos eixos estruturantes impostos pela União Europeia, reconhecem como riqueza endógena as especificidades territoriais, o potencial dos recursos naturais e patrimoniais, e mais importante do que o reconhecimento da importância de cada um desses recursos, é o reconhecimento do valor da simbiose entre todos, uma simbiose que assente nas preocupações ambientais e em práticas agrícolas sustentáveis, sendo a tendência a promoção de um desenvolvimento que tem como principal objeto a valorização conjugada da paisagem e de toda a sua diversidade produtiva, patrimonial e ambiental, tentando-se, por essa via, encontrar novas funções ou usos para os territórios rurais que geralmente estão enriquecidos por marcas de uma ancestral e diferenciadora memória, memória essa que gera ou poderá gerar traços particulares, identitários e únicos que, nos tempos que correm, se vão impondo e podem cada vez mais imergir como nichos alternativos numa economia de oferta padronizada pelos efeitos da globalização.

Portanto, o património, enquanto elemento de identidade cultural, constitui uma sinergia variada e riquíssima, detendo em si fortes potencialidades para ajudar à promoção do desenvolvimento regional. Através dele é possível fixar pessoas, constituir programas de promoção do território de forma sustentada, aumentar a competitividade territorial através da criação ou valorização histórica e cultural dos produtos endógenos que sejam diferenciadores, promover a qualificação e a internacionalização, funcionalizar as riquezas de interesse público, criar atratividade territorial e, consequentemente, contribuir para dinamizar o empreendedorismo local, nomeadamente ao nível do setor turístico.

Mas para que tal aconteça as prioridades políticas têm de deixar de conceber o Orçamento da Cultura como um apêndice quase inútil do Orçamento de Estado. Para que tal aconteça temos que encarar a cultura como um setor de significativa importância para o desenvolvimento social e económico do país. Para que tal aconteça temos que ter investimento público. Muito investimento público. Porque investimento público foi coisa que quase sempre faltou nos territórios do interior desde que Portugal é Portugal.

Texto adaptado a partir da intervenção realizada pelo autor no Encontro do Interior, iniciativa promovida pelo Bloco de Esquerda no dia 16 de dezembro em Tondela.

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