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|Hélio Bernardo Lopes| |
Consegui, deste modo, acompanhar, integralmente, todas as intervenções essenciais, mas, por igual, os mais diversos comentários que os nossos canais televisivos foram fornecendo.
Como sempre teria de dar-se entre nós, de pronto foram surgindo comentários diversos, sempre tentando apoucar a intervenção política de Mário Soares. Infelizmente, algumas das intervenções menos felizes foram as que rodearam perguntas de jornalistas ao redor de uma suposta fraca presença humana nas ruas. Mormente comparando-a com o que teve lugar com o funeral de Estado de Salazar e com tudo o que rodeou o de Álvaro Cunhal. Bom, caro leitor, fiquei apatetado com este tipo de considerações! Até mesmo revoltado! E logo me ocorreu Luís Filipe Scolari ao pensamento.
Em paralelo, surgiram, por igual, as afirmações encomiásticas sobre o nosso antigo Presidente da República. Nuns casos, designavam-no como o pai da democracia; noutros, como o maior político dos Séculos XX e XXI; alguns outros diziam ser o maior político, mas da segunda metade do Século XX; e outros, ainda, como o maior, mas do último quartel do século passado. Opiniões, pois, para todos os gostos.
O erro principal destas considerações suporta-se na paixão, mesmo na necessidade de botar faladura. Naturalmente, a circunstância não era propícia para uma reflexão estruturada, mais – muito mais – para a referência de episódios que pudessem ajudar a entender a personalidade do Presidente Mário Soares. Felizmente, este tipo de intervenção também teve lugar. De molde que me determinei hoje, já com uns bons dias de distância, a dar a minha leitura da intervenção política de Mário Soares ao longo da sua vida. Embora, naturalmente, de um modo simples, fruto do imperativo de ser sintético.
A vida política de Mário Soares, aos meus olhos, pode decompor-se segundo três componentes: a tempo do combate ao regime da Constituição de 1933; a da sua intervenção pública pessoal; e a das consequências estratégicas do seu pensamento e da sua ação política. Analisemos, pois, cada uma destas componentes.
Em primeiro lugar, o tempo do combate ao regime da Constituição de 1933. Tratou-se de um período que incluiu a idade da formação do próprio Mário Soares, dado que nasceu em 1924. Nas vésperas, pois, da Revolução de 28 de Maio de 1926. Até aos catorze anos de idade – 1938 –, um tempo de estruturação cultural em face da vida e dos mil e um problemas que a todos apresenta.
Nesta fase, naturalmente, teve um papel importante o seu pai, sobretudo depois dos dez anos, e também sua mãe. Ao início da universidade, talvez mesmo no terceiro ciclo liceal, as funções de pedagogo de seu pai e a criação do Colégio Moderno – o nome teve, naturalmente, um significado que também foi político – permitiram-lhe dispor de professores de elevada qualidade. Em geral, oposicionistas à II República.
Esta situação, com toda a naturalidade, moldou-lhe o modo de ver a vida e o caráter. Sem estranheza, pois, tornou-se um evidente e ativo opositor do regime constitucional que vigorava em Portugal. E porque nunca se ficou por meras opiniões, antes atuando de modo aberto, teve as suas complicações político-sociais desde muito cedo. Mas conseguiu, por igual, conhecer e conviver com gente muito vasta e de grande gabarito intelectual.
A História mostrou, porém, que nunca os objetivos almejados foram algum dia alcançados. Foi necessário ter surgido o Movimento das Forças Armadas para que o tempo político da II República visse chegar o seu fim. De resto, numa interessante entrevista concedida a O JORNAL, na pessoa de Fernando Assis Pacheco, Mário Soares, respondendo à pergunta do entrevistador que se depreende, respondeu: sim, cheguei a pensar que o regime nunca viesse a cair. Uma situação que, a ter lugar, nem por isso impediria que nos tivesse chegado a prática da democracia, tal como se deu em Espanha. Mas teria existido uma grande diferença: nunca teria tido lugar o ambiente próprio de uma revolução e que pôde ver-se. A verdade é que a Revolução de 25 de Abril de 1974 se constituiu numa rotura profunda com o anterior regime, e que, não tendo sido absolutamente irreversível, teve uma mui longa readaptação aos novos tempos que foram surgindo.
Significa isto, portanto, que a História da II República só muito marginalmente poderá registar Mário Soares como uma personagem com intervenção na vida pública. E basta ler um qualquer livro sobre a História de Portugal no tempo de 1926 a 1974 para se perceber que nenhum papel político essencial coube a Mário Soares. Nem sequer concitou o comando da intervenção contrária ao regime constitucional em vigor, para o que basta recordar, por exemplo, os resultados eleitorais da CEUD e da CDE nas primeiras eleições de Marcelo Caetano. Uma realidade que continuou a manter-se, em boa medida, nas eleições para a Assembleia Constituinte e nas primeiras e segundas para a Assembleia da República. Só com José Sócrates o PS conseguiu o que já Cavaco Silva e o PSD haviam conseguido por muito tempo.
Em segundo lugar, a componente da sua intervenção pública pessoal. Esta fase, como facilmente se percebe, teve lugar durante o tempo que decorreu ao longo da III República, iniciada na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974. Ora, nesta fase e neste domínio, a ação política de Mário Soares foi extremamente forte e sempre presente. Foi por via da sua ação nesta fase que se pode hoje, sem receio de errar, considera-lo como a personalidade política cimeira da III República.
Depois de ter sido ministro em Governos provisórios, foi deputado constituinte, depois deputado à Assembleia da República, Primeiro-Ministro e, por fim, Presidente da República. Um palmarés deveras singular e de elevado prestígio e amplitude de intervenção. Mas o mesmo não aconteceu no plano internacional, tendo-se ficado como deputado ao Parlamento Europeu e como Vice-Presidente da Internacional Socialista, havendo que salientar que, em simultâneo, existiam outros vinte seis.
Em contrapartida, António Vitorino, João de Deus Pinheiro e Carlos Moedas foram Comissários Europeus, com Durão Barroso a atingir o alto cargo de Presidente da União Europeia, Vítor Constâncio o de Vice-Presidente do Banco Central Europeu, Diogo Freitas do Amaral o de Presidente da Assembleia Geral da ONU, Jorge Sampaio o de Subsecretário-Geral da ONU para o diálogo das religiões e António Guterres a ser Presidente da Internacional Socialista, Alto Comissário da ONU para os Refugiados e Secretário-Geral da ONU.
E, em terceiro lugar, o domínio das consequências estratégicas do seu pensamento e da sua ação política. Infelizmente, este é um domínio onde se acumularam apreensões, fracassos e desilusões. A verdade é que o socialismo real faliu e o democrático está reduzido a uma realidade sem um ínfimo reconhecimento e sem substância política ativa. O ponto tristemente cimeiro desta situação esteve na proposta de Manuel Valls de mudar o nome do Partido Socialista Francês, retirando-lhe a palavra “Socialista”.
No domínio do desenvolvimento dos povos, a ideia socialista democrática foi por igual um falhanço. Quando Mário Soares refere que o desastre da descolonização se deveu ao atraso da mesma em face do que os restantes Estados europeus haviam feito, esquece que os novos Estados saídos dessas outras descolonizações se constituem hoje noutras tantos desastres político-sociais. O falhanço não se deveu a ser tardia, mas sim porque o mesmo teria sempre de ser inevitável. Ou seja, o acesso desses povos à independência não devia nunca ter sido feito rapidamente e por simples abandono. Para mais tudo de pronto seguido por uma corrupção ativa sobre os novos dirigentes dos novos Estados e com uma exploração maciça de tipo neocolonial. O resultado pode hoje medir-se pela situação do continente africano, e também, em boa medida, pela do subcontinente americano.
Depois, o triunfo neoliberal, na sequência do colapso do comunismo. Com ele nasceu a globalização, que acabou por conduzir, de facto e lamentavelmente, a uma situação de inoperância da prática democrática. Se o pensamento político vive dominado pela finança e pelos grandes interesses, bom, a democracia também deixa de fazer sentido, percebendo-se o seu progressivo caráter farsante. Também aqui falhou o pensamento estratégico de Mário Soares. E tudo por via de se ter deixado dominar por um sonho, porque com um mínimo de reflexão facilmente se perceberia que a democracia era mais uma tática do poder que vinha de trás do que uma conquista dos povos.
Por fim, o regresso dos riscos de um conflito militar mundial. Uma realidade em que teve um papel cimeiro Barack Obama e a sua pupila, Hillary Clinton. Ao invés de aproveitarem o fim do comunismo, cumprindo o acordado com a Rússia de antes de Vladimir Putin, os Estados Unidos deitaram-se a cercar a Rússia, violando aquilo a que se haviam comprometido. A consequência parece só agora ir ter alguma suspensão. Espantosamente, pela mão – imagine-se! – de Donald Trump.
Aqui está, pois, o meu retrato da intervenção pública de Mário Soares. Teve a mesma pontos altos e outros baixos. Infelizmente, a cobertura das cerimónias do seu funeral, por mera culpa da grande comunicação social, poderia até ter adulterado um pouco da imagem pública do nosso antigo Presidente da República, procurando comparações sem nexo e tentando criar uma realidade inexistente. Um acontecimento que mostrou bem como a nossa grande comunicação social vive a bons anos-luz do sentir coletivo maioritário.