O pânico é total

|Hélio Bernardo Lopes|
Determinei-me a escrever este texto por via da publicação de um outro, recente, do Presidente Jorge Sampaio. 

Um texto que pode dar a impressão de ser eu alguém pretensioso, o que não acontece. Porém, com sessenta e nove anos já passados, sempre interessado pela vida do mundo, e de Portugal em particular, eu tenho uma opinião sobre o estado a que aqueles chegaram nos nossos dias. Em todo o caso, um texto essencialmente determinado por duas frases algo estranhas que nos surgem no texto de Jorge Sampaio.

Em primeiro lugar, e logo no primeiro parágrafo do texto, o antigo Presidente da República escreve que sobre a questão europeia, chamemos-lhe assim, o meu objetivo não é trazer à colação certezas e ideias feitas acerca da Europa, do seu passado e do futuro, mas antes tentar desbravar um caminho de interrogações e perplexidades, que são afinal as de um europeu convicto, que teima em continuar a sê-lo, mas que se confronta com um conjunto de contradições, dilemas e perguntas para as quais as respostas não parecem óbvias nos tempos que correm. Simplesmente inacreditável!

E, em segundo lugar, e já no último parágrafo da peça, o Presidente Jorge Sampaio salienta que atravessamos um momento especialmente crítico para o nosso futuro coletivo – no plano nacional, mas também europeu e até mundial –, embora, qualquer que seja o sentido futuro da integração europeia – e sabemos que há vários cenários —, o que me parece importante sublinhar aqui é a necessidade de se aprofundar a discussão sobre que Europa queremos, que modelo para a reformatação da zona euro e que atualizações pretendemos fazer dos nossos compromissos europeus. Bom, leitor, aqui a palavra inacreditável já não chega, mas prefiro ficar-me por ela.

Este texto do Presidente Sampaio é excelente, muito bem escrito, tanto no plano literário como nos temas que aborda, mas revela duas facetas: um pânico tardio e mais um diagnóstico de algo conhecido e sentido desde há muito. Todavia, tudo sempre sem indiciar a solução que entende por conveniente para o cenário que diagnostica bem e se encontra de há muito apontado. Sem pretender ser ofensivo, é um texto que se materializa em mais do mesmo, mas que não nos ajuda a encontrar uma saída. Com este seu texto, ou sem ele, tudo se irá manter na mesma. E é por ser esta a realidade que me determinei a escrever este meu texto.

O mundo tem hoje diversos problemas graves que afetam a sua existência natural e a expectável felicidade que cada um pretende viver. Alguns desses problemas são puramente nacionais, outros regionais e outros mundiais, estes com impacto direto sobre todos e muito para lá de quem os cria e desenvolve, ao sabor dos seus (supostos) interesses estratégicos.

Um destes problemas é o da construção europeia. Uma realidade com erros originais, que se têm vindo a acelerar com o decorrer do tempo, e que tem vindo a sofrer o impacto de realidades com impacto mundial, oriundas, precisamente, das ações de quem se move a nível mundial, condicionando quase tudo e todos.

Neste contexto, porém, o texto do Presidente Jorge Sampaio só foi escrito por via da vitória de Donald Trump. Não fora tal, e todo o caminhar da famigerada União Europeia para o abismo continuaria a ter lugar de um modo imparável e sem um eco mínimo ao redor de tal realidade. No fundo, esta Europa de hoje não foi construída pelos povos europeus, mas pelos políticos que temos tido. Foram estes que construíram a desgraça a que se chegou, de que despontam a destruição do Estado Social, o desprezo pelos mais velhos, vinte e cinco milhões de crianças e jovens numa situação de pobreza, o surgimento de muros ao longo de fronteiras diversas da União Europeia e autênticas ditaduras no seu seio. A recente chamada de atenção de Federica Mogherini ao Governo Turco é simplesmente risível, porque Erdogan e seus companheiros de poder desprezam completa e naturalmente uma Europa que nem é capaz de se defender.

O caso dos refugiados, bem como a causa que lhes deu origem, e ainda todo o drama vivido no continente africano, mormente na sua margem norte, mostram a completa incapacidade da União Europeia. O caso português é até muito representativo, porque declarando-se na disposição de receber até dez mil refugiados, ainda só vai nas sete centenas, sendo evidente que aquele número é mesmo só isso. Como até José Miguel Júdice conseguiu ontem referir, seria muito mais simples legalizar os que já cá vivem e trabalhem e há dias se manifestaram. E também conceder o visto de residência ao nosso amigo curdo, que tanto tem trabalhado em Portugal e tão bem. Mas vamos, então, ordenar ideias.

Sabe-se de há muito que a História é a Geografia em movimento. Esta Geografia, através do tempo histórico, fez criar sociedades caraterizadas por traços culturais próprios. Estes traços, como sempre tem de acontecer, hierarquizam-se nos planos religioso, moral, político e linguístico, suportando-se em espaços territorialmente bem definidos.

Como é evidente, toda esta realidade se fez na base da convivência social, umas vezes de modo agradável, outras de maneira conflituosa. A História do Homem é uma história de conflitos. Até nos planos individual e familiar. E mesmo em Estados-Nação muito antigos, como se dá com Portugal, existem traços culturais distintos nas diversas grandes regiões do País. Traços alicerçados nas diferenças históricas, geográficas e climáticas. Uma vivência calma e sem grandes conflitualidades só pode alicerçar-se se as regiões em causa forrem pequenas. Precisamente o que Paulo VI referiu na sua intervenção nas Nações Unidas, há já muitas décadas, ao redor dos perigos presentes nas híper-metrópoles.

Sobretudo depois do final da Segunda Guerra Mundial, a democracia impôs-se em lugares diversos do Mundo, mas muito longe do que as democracias mais antigas já possuíam. A verdade, porém, é que aquele terrível acontecimento mundial fez nascer uma nova ordem mundial, em todo o caso só suportada na base de uma vigilância mútua muito forte e na possibilidade de destruição mútua assegurada entre os dois principais contendores: os Estados Unidos e a União Soviética.

No plano puramente teórico, existiam dois fundamentos distintos: nos Estados Unidos a democracia de base partidária e com razoáveis direitos concedidos aos cidadãos, mas onde o imperativo era o lucro; na União Soviética o objetivo final de construir uma sociedade justa e sem classes, mas que praticou arbitrariedades as mais diversas. Em todo o caso, existiu sempre uma supremacia militar do primeiro sobre o segundo, o que também fez desenvolver-se os excessos desumanos destes. O que nunca, de facto, esteve presente foi o respeito de cada um pelo modelo do outro.

Com o fim do comunismo na antiga União Soviética os Estados Unidos, e todo o mundo, tiveram uma excelente oportunidade para construir um sólido suporte destinado a edificar a Paz. A grande e conhecida verdade é que os Estados Unidos nunca pretenderam tal realidade. A prova disto mesmo reside em sempre terem impedido a Rússia de aderir à OTAN, assim se conseguindo, afinal, o que se havia dado com os Estados que para ela foram entrando. Pelo contrário, ao que se assistiu foi ao cerco da Rússia pelos Estados Unidos e ao lançamento da fatídica globalização. Até para os Estados Unidos ela se está a mostrar fatal, ou Donald Trump nunca teria saído vencedor.

Com um mínimo de pensamento conjetural, e olhando para o que se tem vindo a dar no mundo, percebe-se facilmente que a globalização só pode materializar-se na circulação de bens, nunca de pessoas. Esta evidente realidade mostra que a pobreza teria sempre de crescer por extensa regiões do mundo, muito em especial nas mais ricas, de onde os donos da riqueza se deslocam para os lugares do mundo onde, por cultura, os Direitos Humanos criados no Ocidente – estão agora a desaparecer – não estão presentes. Com evidência razoável, nunca virão a estar.

Em contrapartida, as pessoas não podem movimentar-se livremente. Ora, esta dupla realidade, naturalmente, acabará por fazer desaparecer o valor e a prática da democracia. E se a isto juntarmos o defraudamento das expectativas sempre prometidas pelos fracos políticos que temos tido na Europa, é natural que os cidadãos se voltem para quem vá ao encontro dos seus anseios. Não são populistas, são os que apontam os erros desde há muito praticados pelos fracos e falhados políticos que temos tido. Até porque estes, muito objetivamente, nunca deram mostras de conseguir, ao menos, esboçar um projeto de solução. É isto, precisamente, que se pode ver no texto de Jorge Sampaio: nada de apontar soluções.

Acontece que foi também esta realidade mundial que potenciou o papel que o Papa Francisco tem vindo a ter. Sem ser indelicado, nos termos dos acusadores de populismo a Trump, Le Penn e outros, até Francisco é um populista. E é por isso que todos o aplaudem mas raros seguem as suas ideias e se identificam com as soluções que lhes estão implícitas. Para já não falar da guerra religiosa que hoje está presente no mundo. Não fora tal, e não seria preciso que Jorge Sampaio tivesse desempenhado as funções que teve no plano da Comunidade Internacional. Essa guerra religiosa prende-se com o que escrevi a dado passo neste texto: os traços que ligam cada povo, como sempre tem de acontecer, hierarquizam-se nos planos religioso, moral, político e linguístico, suportando-se em espaços territorialmente bem definidos. O religioso está sempre lá e logo à frente dos restantes.

Temos, pois, esta realidade bem à nossa frente: a democracia perdeu quase toda a sua credibilidade. O dinheiro passou, no Ocidente, a ser um novo deus, superando tudo e todos. E os povos nunca foram chamados a pronunciar-se seja sobre o que for. E quando decidem como se está a ver, surgem, então, textos como este do Presidente Jorge Sampaio. Vejam-se dois casos recentes que mostram como a democracia deixou de ser reconhecida por quase todos e já sem peias.

No Reino Unido o Governo, naturalmente oriundo da vontade popular expressa em eleições livres, em nome do povo, fez subir à sua decisão direta a questão da presença do país na União Europeia. A decisão foi a que se viu. Agora, depois de ter o povo sido chamado a pronunciar-se, os que assim procederam pretendem inverter a decisão, para tal invocando que o Parlamento é quem tem o direito de decidir, mesmo que tenha usado esse seu direito para consultar os britânicos!

Depois, a vitória de Donald Trump. Foi esta determinada pelas regras da História dos Estados Unidos. Agora, perante a derrota de Hillary, eis que, já depois do jogo ter terminado através das regras de sempre, pretendem alguns interessados usar outras regras que não eram as estabelecidas desde sempre!! Duas manifestações, pois, do estado a que chegou a democracia: ela já não é precisa, porque tudo se encontra ligado a jogos de dinheiro.

Tudo isto é facilmente percetível, mas o Presidente Jorge Sampaio nunca o referiu no seu texto: a democracia deixou de ter valor porque já não pode estar na base da nova realidade ditatorial que se criou, suportada na procura do lucro a qualquer preço. O texto de Sampaio é a melhor demonstração de que com os democratas de sempre e que se afirmam como tal os reais e terríveis problemas do mundo de hoje não terão solução.

A verdade, porém, é que a solução é simples. Quem quiser conduzir a União Europeia a bom porto terá de iniciar um combate para que se ponha um fim na sua estrutura atual, criando uma outra que se suporte na solidariedade, na construção da Paz e na abertura da Europa ao mundo, evitando deixar-se arrastar por soluções como a da guerra que Obama e Hillary Clinton se preparavam para pôr em prática com a Rússia, depois de terem fabricado o desastre do Iraque, o falhanço das primaveras árabes e a destruição da Síria. E impõe-se devolver aos Estados da União Europeia a maior parte do seu poder soberano, entretanto perdido. Infelizmente, o caminho seguido mostrou um perigoso falhanço. Mas será que os atuais políticos europeus serão capazes de operar as mudanças que se impõem e que tão evidentes são? Claro que não! Basta ler com atenção o texto do Presidente Jorge Sampaio, e logo se percebe – é ele que o diz – que não tem soluções suas para o que tão bem diagnostica e de há tanto se sabe.

Por fim, uma ligeira nota: as sondagens que mostram que os portugueses querem continuar na União Europeia não contam, porque quase todos estão fartos desta solução, respondendo, pois, em função do medo do desconhecido. É bom recordar a fantástica corrida às urnas na eleição de Delgado com Tomás: interessante sim, mas o havia o risco da aventura, a que os portugueses sempre foram avessos.

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