Despovoamento, abandono, solidão

|Luis Pereira|
Todos estamos convencidos do contrário, mas o tempo derrete a matéria mais áspera que a natureza criou. E talvez por isso em todas as épocas emudecemos as casas onde viveram e vivemos, até as transformarmos em pedaços de quase nada , como em quase nada se transformam as vidas que lhes deram as antigas formas. Hoje, agora, no instante, o tempo não nos diz nada, porque estamos sempre ocupados a olhar o circo da vida.

Mas perante uma aldeia derruída sentimos o movimento dos fantasmas e o arfar das pedras onde cristalizaram os últimos suspiros dos homens e das mulheres que a habitaram.

Depois há o cemitério, esse último reduto e guardião da história, mas quando abandonado um local, abandonamos também o culto dos mortos. E a pouco e pouco também as lembranças desses homens e mulheres de outrora. Morremos. É assim que se morre. É assim que “desnascemos”. E já como espectros sem áurea, agonizamos na memória dos vindouros e finalmente findamos.

Hoje estou aqui, perante casas que já não o são. Um moinho sem nada, um engenho já podre. Apeteceu-me aqui vir para imaginar, para ver as ruas com gentes desenhadas na loucura desta perseguição que faço ao passado. Não conheço ninguém, nunca conheci ninguém e já não há quem se lembre de quem aqui tenha vivido.

Mas posso observar as pessoas, ouvi-las, ver aquele grupo de crianças que brinca à sombra do castanheiro; o homem que passa de enxada ao ombro, a mulher de caneco sobre um rosto de xisto. E de repente os sons, todos os sons que ouvi logo que parido pelas seis horas de uma tarde de abril. E todos aqui estão, como desabrochados de um filme antigo mixado com o choro de crianças, o balir de ovelhas e o latir de cães engasgados de fome. Até quase respondi ao simpático “boa tarde” daquela mulher que passou de lenço na cabeça e rosto granjeado a sol e geada.

O silêncio entranha-se-me no corpo, encharca-me os poros do cérebro. São agora sete horas da tarde. Ecoa por todo o lado este silêncio medonho, em sereno conflito com os debilíssimos gemidos que brotam de entre os derrubes das pedras onde sucumbe o passado. Esta aldeia teve tanta vida, tanta gente e hoje é isto: silêncio, arqueologia!

Vim aqui porque gosto de ler. Sempre os livros. Sempre os livros presentes e a determinar esta minha banal e insignificante existência. Os livros, esses “malditos objetos” que não me deixam sossegar o pensamento. Vim aqui porque precisei de assemelhar. Precisei de comparar a minha imaginação, a realidade destas ruínas, com a imaginação e a realidade vertida no magnifico livro de Julio Llammazares, onde se fala de extinção, de esvaziamento, de finitude.

“A Chuva Amarela” é já um livro antigo que estava ancorado na fila das intenções de leitura que tenho para fazer. Finalmente deitei-lhe mão e logo ao fim das duas primeiras páginas o monólogo do último habitante de um povoado abandonado do Pirineu aragonês prendeu-me a atenção. Também ele, esse tal último habitante, agora aqui está, em Gavião, mas com o nome de José.

José olha-me daquela porta entreaberta, com os pés assentes no derrube do telhado que aconchegou o seu lar. José fala-me da solidão. Foi o último a partir. Há sempre um último a partir. Resistiu. Resistiu o quanto pôde e já sem sequer poder continuou a resistir. Também enlouqueceu com o silêncio sepulcral que lhe encheu os últimos anos da vida. José fala-me agora da solidão que está em toda a parte desta região e que da região apenas mantém a prosápia do seu nome. Fala-me desta solidão que impregna as pessoas, as casas, as palavras, as árvores, o sol e as próprias sombras.

Em “ A Chuva amarela” José não fala só de “Ainielle”, fala também de nós, de Gavião, de Trás-os-Montes.

Por isso vim até aqui. Para confrontar, para sentir, para escrever. E enquanto o sol varre o rosto deformado da aldeia, as sombras vão lambendo lentamente Gavião. Depois, a pouco e pouco, surge o anoitecer. E agora, “A chuva Amarela” impregna-se na minha alma e esta pardez granítica acaba por me desassossegar.

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