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|Hélio Bernardo Lopes| |
Na passada semana, José Pacheco Pereira foi longamente entrevistado na TVI e na TVI 24 por José Alberto Carvalho. Logo ao início, com razão, este referiu que se está a viver um tempo em que já não se acredita em nada. Uma reflexão que mereceu, naturalmente, a aquiescência do entrevistado. Se a frase parece um simples desabafo, a grande verdade é que ela se constitui na realidade objetiva dos nossos dias. Para se compreender o que está hoje a passar-se com o que tem vindo a designar-se por terrorismo, impõem-se algumas reflexões. E é o que agora passarei a fazer.
A COBERTURA RELIGIOSA
Quem seja professor, ou acompanhe o estudo de filhos ou netos, ter-se-á dado conta de que civilizações as mais antigas mantinham o culto de divindades. Este culto, sendo operado em torno de uma transcendência não visível nem acessível permitia a explicação do inexplicável. E justificava, por igual, a razão de se adotar uma determinada moral social ou individual, bem como a organização do Direito e dos indivíduos que coordenava.
Retira-se daqui que, haja Deus ou não, ele desde sempre existiu, porque a sua consideração veio dar uma cobertura de aparência explicativa forte ao inexplicável, bem como um sentido que se passou a aceitar para o sofrimento humano. A esperança, portanto, só se torna possível por via da crença numa entidade superiormente justa e perfeita. Perante esta realidade, surgiu, naturalmente, uma classe representativa dessa transcendência no plano da organização social, que eram os sacerdotes, ou o clero. Entidades que, também naturalmente, se dotaram de uma simbologia adequada e diferenciadora. E eram, muitos deles, gente culta do tempo, embora não os únicos. O que significa, pois, que o fenómeno religioso é inerente à própria condição humana, porque os seres humanos necessitam dessa cobertura para suportar as vicissitudes que a vida na Terra comporta.
AS RELIGIÕES DO LIVRO
As grandes religiões do mundo são as designadas Religiões do Livro: judaísmo, cristianismo e islamismo. Existem muitas outras, sendo que mesmo aquelas não são, cada uma delas, estruturas unitárias, antes se decompondo em religiões as mais diversas. Para lá disto, estas grandes religiões também se guerrearam entre si na História, tendo sido fonte de mil e um conflitos sangrentos.
Como facilmente se percebe, a ideia do teólogo Hans Küng, apresentada na Assembleia Geral das Nações Unidas em novembro de 2001, na sequência da sua anterior de 1993, de criar um Parlamento das Religiões Mundiais, tem o mesmo valor que as próprias Nações Unidas: nunca evitou a guerra onde quer que fosse, incluindo a de natureza religiosa. Seria, no fundo, um areópago onde se criaria o caldo para outros tipos de guerras, desde sempre presentes na vida da Humanidade, que seriam as guerras religiosas.
A afirmação de Hans Küng, de que não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões, nem paz entre as religiões sem diálogo entre as mesmas, nem diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais, nem sobrevivência da Terra com paz e justiça sem um novo paradigma de relações internacionais, baseado em padrões éticos globais, é uma afirmação que tem tanto de verdade absoluta, quanto de impossibilidade real, como se foi sempre vendo ao longo da História. A vida na Terra, como se sabe e percebe, não será nunca a de um paraíso, antes uma sucessão entre guerras e tempos de paz.
OCIDENTE E ORIENTE
A religião cristã ortodoxa é herdeira da cristandade do Império Bizantino, que reconhece o primado do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla. Esta religião reivindica a continuidade da Igreja fundada por Jesus, considerando os seus líderes como sucessores dos apóstolos. A Igreja Ortodoxa tem aproximadamente dois mil anos, se se operar a contagem do tempo a partir da Igreja Primitiva, e mil anos, se se tomar como ponto de partida o Cisma do Oriente ou Grande Cisma, em 1054, não reconhecendo a primazia papal de Roma.
Quase nada sendo hoje impossível, dada a fluidez do tempo, a verdade é que se nos apresenta um retorno ao passado como algo de quase-impossível. Mais, sem dúvida, que a queda do anglicanismo, que, a surgir a tal Federação Europeia, deixaria a família real britânica numa situação de pré-morte. Com esta, ir-se-ia, naturalmente, o anglicanismo. É isto que mostra o enorme interesse, desde o início, numa unidade política da Europa, para já sem a Rússia, porque com essa unidade, naturalmente, acabaria por triunfar sobre as restantes religiões cristãs oriundas do cristianismo inicial: seria o triunfo da Igreja Católica Romana.
Acontece que a Revolução Francesa, bem como o desenvolvimento das liberdades, direitos e garantias no espaço europeu reduziram o fenómeno religioso a uma posição essencialmente individual, mitigada aqui ou ali por concordatas que contornam, de forma enviesada, o discurso oficial da laicidade do Estado e da separação deste com as Igrejas.
Não se percebendo como possível o renascer da catolicismo na Europa no quadro atual, outra já poderá ser a realidade se surgir um inimigo que, aparentemente, justifique um apelo à unidade religiosa dos católicos e contra os que os pretendem pôr em causa. Esse inimigo, não podendo ser já o comunismo, passou a ser o islamismo.
OS ISLAMISMOS
A religião islâmica, desde o Profeta Maomé, esteve sempre a anos-luz de algo unitário. A prova temo-la agora por todo o lado, com as históricas dissensões entre fações religiosas, mas por igual com as mil e uma lutas entre outras tantas fações. Lutas naturais, mas por igual alimentadas pelo próprio Ocidente. Nuns casos por erros crassos, noutros mesmo intencionais.
Para lá das causas mais distantes, que resultaram das partilhas posteriores à derrota otomana, a causa mais próxima do atual terrorismo talvez possa ser situada no apoio dado pelos Estados Unidos aos combatentes afegãos contras as tropas soviéticas, que tinham entrado no Afeganistão. A partir daí, tudo se ficou por algo incontrolável, e que acabou por desembocar nos acontecimentos de 11 de Setembro e em tudo o que posteriormente se tem vindo a ver. De um modo simples, poderá dizer-se que o Ocidente se foi determinando a semear ventos, estando agora a colher as naturais tempestades.
O Ocidente poderia deitar-se a aplicar as teses de Samuel Huntington, mas pode tal ser ainda demasiado cedo. Além do mais, restaria saber se, ao final das contas, a chamada às fileiras religiosas católicas acabaria por ter lugar. O que é já certo é o que nos vem agora começando a surgir por parte de comentadores ligados à Igreja Católica: poderá estar a iniciar-se uma guerra de islamitas contra os católicos europeus.
O MODERNISMO
Essa chamada dos católicos às fileiras lideradas, ao nível do Estado, pela Igreja Católica é hoje difícil na Europa, porque a situação é de pobreza crescente e de descrença em tudo. E as pessoas precisam do que as mantém vivas e livres. Esta situação, por enquanto, ainda se vai conseguindo manter, graças a uma vivência, embora já mínima, da prática democrática. Mas a dignidade humana irá decrescer sem parar, fruto, acima de tudo, da perda de trabalho por via da informática e da robótica. Alarga-se, sem parar, o fosso social no mundo, ficando-se os católicos por meras palavras a que os comandantes desta sociedade não ligam.
Ao mesmo tempo, vão surgindo as mil e uma ideias em torno dum conceito absoluto de felicidade e dos direitos correspondentes. A experiência vem mostrando que este movimento, por via dos mecanismos institucionais existentes, é difícil de parar. Num ápice, sem que ninguém mostre uma prova, surge a notícia de um gangue islamita contra o nudismo. Amanhã, será contra o casamento homossexual ou contra o aborto, para logo de seguida se pôr em causa o direito ao trabalho das mulheres.
Simplesmente, se se der por certo um perigo iminente e religioso contra o modo ocidental de vida, talvez se consiga legislar em consonância com a exigência dos tais ditos islamitas, embora se não saiba quem são.
O próprio regresso da censura começa a dar os seus primeiros passos. Ao mesmo tempo que o Ocidente passa por sobre os mil e um jornais fechados na Turquia e pelos outros tantos jornalistas presos, surge a pergunta idiota sobre se as transmissões em direto não farão crescer este tipo de acontecimentos! Mas como, se atentados com mortes às muitas dezenas têm diariamente lugar no Iraque, no Afeganistão, na Somália, na Turquia, na Índia, no Sri Lanka, na Indonésia, na Nigéria, etc., onde essas transmissões em direto nunca tiveram lugar?! Pois, o que se pretende no Ocidente é recriar a censura, mas por via do medo gerado com estes casos, cuja origem esteve sempre na política ocidental.
MEMÓRIA E RISCOS
É essencial não esquecer que a OTAN, nos anos sessenta do passado século, pôs em prática a histórica Estratégia de Tensão, materializada em atentados diversos em capitais europeias, causando dezenas de mortos e gerando o medo que levou os povos a manterem-se como estavam, evitando as ideias de Aldo Moro e Berlinguer. E também convém não esquecer o nunca explicado homicídio de Oloff Palme.
As ideias de Hans Küng, inicialmente referidas, contêm um risco, porque para lá de nada realmente resolverem, criam o regresso da opressão religiosa para o seio das sociedades. Elas constituiriam, afinal, a recusa do sempre tão badalado Princípio da Liberdade Religiosa. Se, porventura, António Guterres vier a ser o escolhido para Secretário-Geral das Nações Unidas, é natural que se relancem as ideias de Hans Küng, mas o mundo continuará como até aqui: com guerra e paz a alternarem-se. A História evolui sempre por isomorfismos.