Os riscos de uma inútil revisão constituicional

|Hélio Bernardo Lopes|
Tenho tido a oportunidade de apontar o êxito social e político – sobretudo, o primeiro – que está a merecer a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República. 

Mas pude ontem referir que este êxito se deve, muito acima de tudo o mais, a dois fatores: às singularidades que costuma criar e que lhe são muito típicas, mas, acima de tudo, ao extremo desagrado que as presidências do seu antecessor causaram junto dos portugueses, de parceria com a fantástica pobreza causada pela governação de Pedro Passos Coelho e do CDS/PP.

Com toda a lógica, para mais num discurso de tomada de posse como Presidente da República, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter deixado de dizer o que disse, como, por exemplo, que o poder político democrático não pode demitir-se do seu papel definidor de regras, corretor de injustiças, penhor de níveis equitativos de bem-estar económico e social, em particular, para aqueles que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou.

Não me causaram estas palavras um mínimo de reação, nem as tomei como novidade, porque há já muitas décadas as pude escutar ao falecido Adelino Amaro da Costa, em entrevista televisiva, quando o CDS vivia ainda a anos-luz das posições de direita cruel para que foi atirado pela ação política de Paulo Portas. Mais recentemente, Diogo Freitas do Amaral, creio que em entrevista que concedeu a Vítor Gonçalves, disse isto e muito mais, mormente ao redor da mentalidade desumana de Hayek. E não esqueço nunca a alegria de conhecidos meus católicos, a maioria da Opus Dei, em face da publicação que havia tido lugar na Europa/América da obra de Milton Friedman, onde pareciam ter encontrado a chave da felicidade dos seres humanos. A tal (in)felicidade que conduziu o mundo ao que hoje pode ver-se por toda a parte.

Mas se aplaudo a atual ação política, com forte cunho de aparência social, também não esqueço a realidade das coisas e sobre que escrevi durante a campanha eleitoral. Como se deverá ter percebido, votei no académico António Sampaio da Nóvoa, porque as garantias que dava eram muito maiores que as que agora se possuem. A prova disso está nisto: o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a uma primeira vista, parece afastar-se do capitalismo puro e duro, mostrando-se preocupado com aqueles que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou. Simplesmente, isto são apenas palavras, certamente sinceras, mas que precisam primeiro de ser testadas.

Ora, é muito pouco provável que possa ser o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a exigir o que a Direita que o aplaudiu realmente deseja. A prova disso está no facto dessa Direita o ter aplaudido, apesar de ter dito, no seu discurso, que o poder político democrático não pode demitir-se do seu papel definidor de regras, corretor de injustiças, penhor de níveis equitativos de bem-estar económico e social, em particular, para aqueles que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou.

Pois, aí está já a Direita a propor o que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não disse mas sempre defendeu. E todas as suas propostas vão sempre – é assim há quarenta anos – no sentido de retirar à democracia valor operacional, reduzindo-a a mera formalidade que possa criar nos eleitores a ideia de que dispõem de poder para legitimar os eleitos.

Ora, quais são as dificuldades que a Direita de hoje encontra na atual Constituição da República? É fácil elencá-las: o Sistema Político, o Sistema de Justiça e o Estado Social. Analisemos estes casos.

Quanto ao Estado Social, o que se pretende é destruí-lo. Pôr um fim nas reformas auferidas por via das garantias dadas através da lei imperativa criada pelo próprio Estado. Sem reformas capazes, as empresas passariam a dispor de uma mão-de-obra barata. Os velhos seriam lançados para a resignação e a morte. Os jovens, através do desemprego galopante, trabalhariam por quase nada ou mesmo continuariam a emigrar. E é por isso que a Ordem dos Médicos surgiu agora a defender o abaixamento do numerus clausus no acesso a Medicina. De facto, médicos para quê e para quem? O mesmo se pode dizer do Sistema Educativo, para o qual o histórico sonho é privatiza-lo tanto quanto possível. O que o tornaria, à semelhança do que já está a dar-se no Reino Unido, num sistema classista de seleção social: quem tivesse riqueza, ter-lhe-ia acesso; quem a não possuísse, ficaria com um dos tais cursos muito interessantes, mas só para pobres.

A seguir, o Sistema Político. De há muito venho referindo que o cansaço dos portugueses com a III República se prende com as políticas realizadas pelos políticos e não com a metodologia do funcionamento daquele sistema. Como se torna evidente, ninguém pode aplaudir o desenvolvimento de uma pobreza crescente, com os políticos a receberem prebendas de todo o tipo e com direitos essenciais a serem cortados à esmagadora maioria.

Ora, o que pretende a Direta com as alterações ao Sistema Político – aqui também apoiada pelo PS? Pois, reduzir o número de deputados à Assembleia da República e, por aí, extinguir a representação parlamentar do Bloco de Esquerda e do PCP. É um antiquíssimo sonho, já dos tempos de Spínola e de Sá Carneiro, ao início do 25 de Abril. E quem pode confirmar isto mesmo é o atual conselheiro de Estado, Domingos Abrantes. Por fim, o controlo do Sistema de Justiça. Depois do Presidente Cavaco Silva nos ter brindado com a sua ideia – foi apresentada na sua intervenção na última Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial – de conferir ao Presidente da República, após revisão constitucional, a prerrogativa de nomear juízes para o Tribunal Constitucional, surgiu agora Pedro Motas Soares, em artigo publicado no Diário de Notícias, a defender a mesma ideia.

Acontece que eu escrevi sobre os perigos desta ideia logo no dia imediato ao das palavras proferidas pelo Presidente Cavaco Silva. E é muito simples perceber estes riscos: os atuais juízes do Tribunal Constitucional são fortemente independentes, porque a sua escolha é extremamente indireta. Os escolhidos pela Assembleia da República estão devedores a quem? À Assembleia da República, ou seja, a ninguém em particular. Diferente será o caso de serem escolhidos pelo Presidente da República, para mais académico e constitucionalista. A dívida de gratidão surgiria logo e no plano estritamente pessoal. Mas dar-se-ia agora um novo fenómeno: esses juízes, a serem escolhidos pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, seriam sempre – já se deu isto com os membros por si escolhidos para o Conselho de Estado – da zona católica militante. Em geral, da Direita, e os que fossem da esquerda sê-lo-iam como Guterres, Maria de Belém ou Eduardo Lourenço...

Esta evidentíssima realidade mostra que o Tribunal Constitucional passaria a funcionar como um crivo de natureza religiosa, com as posições desses juízes suportadas, primeiro que tudo, nas posições públicas da Igreja Católica. De resto, a recente cerimónia ecuménica, os ecos de alastramento religioso que logo foram aproveitados pelos católicos mais militantes, como também esta simbólica visita ao Vaticano – creio que nenhum dos seus antecessores assim procedeu –, mostram o que, neste domínio, é de esperar da intervenção política do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Logo depois, a ideia do Presidente da República passar a presidir a um novo Conselho Superior de Justiça, que englobasse todos os Conselhos Superiores ligados à Justiça. Duvido da existência de uma tal estrutura em qualquer Estado do Primeiro Mundo. Mas há um dado que é certo: passaria a ser uma estrutura de controlo do poder judicial pelo Presidente da República, para mais, com este órgão ocupado por um académico do Direito, das áreas Constitucional e Administrativa.

Por fim e sem espanto, a notícia ontem surgida de que o PS e o PSD estão disponíveis para avançar para uma revisão constitucional, mas não apenas para dar ao Presidente da República o poder de nomear o governador do Banco de Portugal, antes aproveitando a mesma para uma revisão constitucional mais alargada. Aqui está, pois, como mesmo ainda sem a eutanásia legalizada, o suicídio político já pode conduzir o PS a quase nada. E quem diz PS, diz a esmagadora maioria dos portugueses.

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