O primeiro discurso do Presidente eleito

|Hélio Bernardo Lopes|
Como usualmente nas noites eleitorais deste tipo, Marcelo Rebelo de Sousa, já como Presidente eleito, fez o seu discurso de vitória, digamos assim. E o que logo pôde constatar-se foi a muitíssimo melhor qualidade do seu discurso em face dos de Aníbal Cavaco Silva, mormente depois de vencer a sua segunda corrida presidencial. Tal como há dias referi, Marcelo é muito mais subtil que o Presidente Cavaco Silva...

Ainda antes de comentar as suas considerações, porém, convém olhar as da sua porta-voz, Esmeralda Dourado, porque a senhora logo ali nos confirmou o de há muito percebido: esta vitória, suportada na campanha que acompanhámos, vinha sendo desenvolvida já de muito longe... Ou seja, Marcelo Rebelo de Sousa, sabendo já que iria candidatar-se ao Presidente da República, conseguiu duas coisas: continuar a usar o seu programa de entretenimento dominical, analisando as outras candidaturas que foram surgindo, e conseguindo mesmo fazer parar os seus competidores até um momento já muito próximo da eleição que ora teve lugar, tal como lhe convinha. Táticas só possíveis com a colaboração da grande comunicação social, sede dos seus compagons de route, que depois o foram levando ao colo.

Depois, a escolha das instalações da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, (FDUL), para operar o discurso em causa. Foi uma decisão que causou uma celeuma mínima, mas sem um ínfimo de razão. Objetivamente, tal nada realmente significou para a enormíssima maioria dos portugueses. Inquestionavelmente, tratou-se de um pleníssimo não problema. Além do mais, os órgãos diretivos da faculdade também não terão visto nada de mal em tal situação.

Já a sua afirmação de que a FDUL é uma casa de liberdade, de pluralismo e de abertura de espírito é verdadeiramente risível. Como Marcelo Rebelo de Sousa muito bem sabe, a FDUL sempre foi o fornecedor de quadros político-administrativos do regime da Constituição de 1933. Os mais velhos recordarão mesmo um histórico assalto às instalações da Associação de Estudantes, durante a madrugada, aí pelo ano de 1960, capitaneado por uma senhora da Legião Portuguesa e que incluiu muitos alunos da própria faculdade.

A isto é essencial reafirmar aqui o que já muitos juristas e analistas vêm referindo: a FDUL já se transformou, mais uma vez, no principal produtor de juristas ligados ao atual regime constitucional, sendo que convém sempre não esquecer os casos de protesto que envolveram Fernando Luso Soares e José Luís Saldanha Sanches, com tudo o que estes expuseram depois aos portugueses.

A sua consideração de que recolheu no seio da sua família e na escola primária e no liceu a sua visão personalista da vida, indo buscar à FDUL tudo o resto é bastante significativa, dado que aponta para estas duas estruturas – família e escola pública – as fontes essenciais da sua formação global.

Procurando mostrar a sua ligação plena à Revolução de 25 de Abril, foi interessante escutar a sua afirmação de que o povo é quem mais ordena. Simplesmente, esta nunca foi, depois dos acontecimentos do 25 de Novembro, a realidade da nossa vida político-social, porque a nossa classe política praticamente recusou, de um modo maciço, o recurso a formas de representação política direta em matérias muito essenciais para a vida dos portugueses. Estamos hoje na União Europeia, objetivamente, com uma mão atrás e outra à frente, mas sempre sem que alguma vez tenhamos sido consultados sobre a nossa progressiva perda de soberania. Nada é, neste domínio, como Marcelo Rebelo de Sousa ali nos disse.

Como seria natural, agradeceu a todos, apoiantes ou não, por terem participado neste ato eleitoral. E também que respeitará todos, e que não existiram vencidos nestas eleições. São declarações de sempre, mas que devem ter sido claramente assumidas, sendo que tudo faz crer que Marcelo as pronunciou com um sentimento pleno de autenticidade. E, ainda, que será o Presidente de todos os portugueses, saudando o atual Presidente da República e todos os que o antecederam na III República.

Muito mais interessante foi ouvi-lo salientar que Portugal é um Estado de Direito Democrático e Social. Sem que se possa pôr em causa a sinceridade com que esta frase foi produzida, a grande verdade é que a mesma, apresentando uma novidade, está cada dia mais distante da realidade.

Objetivamente, é cada dia mais duvidoso que se viva ainda, entre nós, num verdadeiro Estado de Direito. E isto porque numa tal situação o Estado terá de apresentar como limite ao exercício do seu poder, no mínimo, o Direito. Ora, o Direito está hoje a anos-luz de vigorar entre nós, para o que basta ter presente a forma leviana como se operaram os cortes nas reformas e pensões, ou a quase impossibilidade de poder recorrer aos Tribunais, em face da fantástica carestia essencial ao nosso modo de operar a defesa. Para já não referir as reformas concedidas a políticos e aos juízes do Tribunal Constitucional, completamente antagónicas com a vasta situação de desemprego, pobreza e miséria ainda presentes em Portugal.

Mas Portugal também não pode ser já considerado um verdadeiro Estado Democrático, uma vez que o funcionamento da democracia está imensamente coartado com o incontrolável fenómeno da globalização, bem como com a infeliz ideia – cada dia se percebe que essa infelicidade não para de crescer – de nos metermos na União Europeia, para mais pondo de lado o importante instrumento que era o Escudo.

Depois, aquela consideração de que Portugal é um Estado Social, indo assim escudar-se na Doutrina Social da Igreja Católica, mas que simplesmente nada tem que ver com a realidade da vida, seja a nossa ou a do mundo. Basta ver o que está a passar-se com a tragédia dos refugiados, e como a União Europeia e a generalidade dos seus Estados mais não faz que proferir boas e piedosas palavras, mas de resultado nulo. Também ninguém alguma vez terá esperado que Marcelo Rebelo de Sousa abdicasse (cabalmente) do seu estilo e das suas convicções. Haverá de convir-se que muito fez já Marcelo ao refrear a sua maneira de intervir publicamente, silenciando o seu verdadeiro sentimento político-partidário, elogiando tudo e umas botas mais, desde que proviesse da atual governação. Quem falasse a língua portuguesa de um modo fluente a qui tivesse chegado durante a campanha eleitoral, teria mesmo criado a ideia de que Marcelo Rebelo de Sousa seria um apaniguado de António Costa e da política do atual Governo.

Como também teria de dar-se, cumprimentou os restantes competidores pelo cargo presidencial, salientando ser chegado o tempo de virar a página e de pacificar o País, fomentando sempre a unidade nacional. Em todo o caso, não explicou, mesmo que minimamente, como defenderá, junto do Governo, o reforço da coesão social. E refiro isto, porque a coesão social nunca poderá operar-se com uma pobreza vasta e sem horizontes nacionais capazes para a grande maioria. Nunca poderá existir coesão social com os cortes sobre a enorme maioria dos portugueses e as fantásticas prebendas para uma ínfima minoria. Ou com a larguíssima maioria dos portugueses a terem de pagar os erros dos banqueiros, em geral nunca depois condenados.

Estando hoje tão na moda a figura do Papa Francisco – recordem-se as suas mil e uma declarações repletas de verdade e de justiça, mas sem que nada realmente mude, a não ser para pior e para quase todos –, lá operou o Presidente eleito a sua declaração de que olhará para as periferias sociais. Simplesmente, todos os Presidentes da República assim procederam, embora Portugal e os portugueses tenham vindo a caminhar de mal para pior.

Um pouco à frente, lá nos surgiu com uma das grandes máximas do Presidente Cavaco Silva: promoverá as convergências políticas. Mas como, se todos nós sabemos da intransigência ideológica da atual Direita? Acordos de Regime? Mas só se for até essa Direita regressar ao poder? Enfim, terá de compreender-se que Marcelo Rebelo de Sousa não possa reconhecer que a democracia está longe de ser vivida com entusiasmo e autenticidade entre os portugueses. Sendo simples reconhecer que é esta a realidade no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, mesmo na Hungria ou na Polónia, reconhecê-la aqui, haverá de aquiescer-se, é deveras difícil.

Também se compreende que venha a implementar a cooperação entre órgãos de soberania, sendo natural que se nos imponha conciliar justiça social, crescimento económico e estabilidade financeira. Em todo o caso, mesmo aqui, toda a diferença em face do seu antecessor estará ligada à forma de obter o valor desta espécie de ponto triplo, digamos assim. Será, pois, muito interessante poder ver o que se irá passar neste domínio com Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República.

Por fim, cheio de oportunidade, Marcelo Rebelo de Sousa lá reconheceu, depois da tempestade social em que se constituiu a anterior Maioria-Governo-Presidente, que se impõe reconstruir Portugal. E foi muito interessante ouvi-lo falar da sua fé de, em cinco anos, Portugal poder mudar e muito. Esta frase, muito passageira, trouxe-me logo ao pensamento que Marcelo Rebelo de Sousa deverá estar a pensar em desempenhar as suas novas funções apenas pelo tempo de um mandato. A ser assim, deixá-las-á com setenta e três anos, ainda muito a tempo de poder continuar a intervir na política, mormente ao nível internacional. Uma situação que poderá ver-se muito potenciada se o seu histórico amigo António Guterres vier a ser o novo Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. Enfim, para já foi um bom discurso, porque foi um verdadeiro discurso de Estado.

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