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| |Hélio Bernardo Lopes| |
Outra é a questão de se saber o que teria feito o Presidente Cavaco Silva se a situação fosse a inversa, com PSD e CDS/PP a apresentarem-lhe uma solução de Governo com apoio do Bloco de Esquerda, por exemplo, ao nível parlamentar e com a garantia escrita de que tal apoio seria para toda a legislatura, sendo o PS o partido mais votado. Creio estar certo se disser que a decisão seria precisamente a inversa. É o que pode legitmamente deduzir-se, com probabilidade muito elevada, em face do que foram as previsíveis duas presidências de Aníbal Cavaco Silva.
Acontece que comunicação do Presidente Cavaco Silva aos portugueses contém um vasto conjunto de erros ou imprecisões. Vejamo-los. Em primeiro lugar, no seu discurso de 06 de outubro o Presidente Cavaco Silva salientou que Portugal necessita de uma solução governativa que assegure a estabilidade política, o que não é manifestamente a solução ora escolhida. Embora, como digo antes, a mesma seja a lógica e mesmo aceitável.
Em segundo lugar, sem real lógica, o Presidente Cavaco Silva salientou na sua intervenção que é essencial dar garantias firmes de que o novo Governo respeitará os compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado português e as grandes opções estratégicas adotadas desde a instauração do regime democrático. Mas alguma das duas soluções até agora surgidas viola estas suas exigências? Claro que não! E não por esta razão elementar: uma coisa é ter uma opinião sobre certo tema da vida nacional, outra não respeitar o que está estabelecido por lei ou tratado e enquanto estes não forem mudados.
A este respeito, basta recordar, por exemplo, o caso do CDS/PP, que votou contra o texto final da Constituição de 1976, mas sempre o aceitou na prática política corrente. Ou o caso do PSD, que pretendendo desde há muito mudar o texto constitucional, sempre o aceitou. Ou foi obrigado a aceitar, por via da ação do Tribunal Constitucional. E assim estão o PCP, o Bloco de Esquerda, eu mesmo ou João Ferreira do Amaral: todos desejamos a mudança do panorama europeu e até a saída da Zona Euro, mas não andamos por aí a tentar impedir o euro de circular, substituindo-o pelo escudo.
Em terceiro lugar, o Presidente da República salientou que importa consolidar a trajetória de crescimento e criação de emprego e em que o diálogo e o compromisso são mais necessários do que nunca. Crescimento? Mas a que ritmo?! E quem se dá conta dele?! Criação de emprego? Mas com ordenados de miséria e um crescimento veloz de falsos recibos verdes?! Mas não é verdade que a emigração de quadros qualificados continua a ter lugar a um ritmo galopante? Emprego e crescimento?! Só se for num qualquer outro planeta habitado que possa existir no Universo.
Em quarto lugar, a incorreta afirmação histórica de que nos quarenta anos de democracia portuguesa a responsabilidade de formar Governo foi sempre atribuída a quem ganhou as eleições. Bom, basta recordar os tristemente célebres Governos de iniciativa presidencial: Nobre da Costa, Mota Pinto e Pintasilgo. O primeiro, aliás, foi logo rejeitado na Assembleia da República, à semelhança do que irá ter lugar com este agora em aparente gestação.
Em quinto lugar, a afirmação de que nas eleições legislativas de 2009, o Partido Socialista foi o partido mais votado, elegendo apenas noventa e sete deputados, não tendo as demais forças políticas inviabilizado a sua entrada em funções. Bom, esta é a parte verdadeira do que se passou, porque, para lá do Presidente Cavaco Silva nada ter feito para ajudar à criação de condições de estabilidade governativa, esse Governo acabou por ser derrubado por uma historicamente singular conjugação negativa e incoerente de vontades. Uma ação que nos permitiu chegar à miséria que se tem vindo a conhecer ao longo destes quatro anos desta Maioria-Governo-Presidente de Direita.
Em sexto lugar, o Presidente da República referiu que a União Europeia é uma opção estratégica do País, que foi essencial para a consolidação do regime democrático português e continua a ser um dos fundamentos da nossa democracia e do modelo de sociedade em que os Portugueses querem viver, uma sociedade desenvolvida, justa e solidária. Bom, caro leitor, não há, nesta frase, uma única afirmação que corresponda à realidade.
Por um lado, a União Europeia só é uma opção estratégica do País porque foi imposta sem consulta e assim sempre mantida, sem que os portugueses fossem chamados a pronunciar-se. Por outro lado, a consolidação do regime democrático português já existia antes da entrada de Portugal para a famigerada e falida União Europeia, ou nós não teríamos a ela podido aceder. Entrámos porque a democracia funcionava já, normal e consolidadamente, em Portugal. E depois, com grande infelicidade para os europeus, e para os portugueses em particular, a União Europeia é um pouco como a expansão do Universo, porque se afasta cada dia mais de uma sociedade desenvolvida, justa e solidária. Nada é, pois, como ali nos disse o Presidente Cavaco Silva. E quem sabe bem e com dor ser esta a realidade são os portugueses.
Em sétimo lugar, o Presidente Cavaco Silva referiu que a observância dos compromissos assumidos no quadro da Zona Euro é decisiva, é absolutamente crucial para o financiamento da nossa economia e, em consequência, para o crescimento económico e para a criação de emprego. Bom, mesmo admitindo que estas palavras traduzem a realidade, ninguém realmente as pôs em causa, nem as mesmas podem impedir a adoção de políticas alternativas, típicas de uma democracia.
Em oitavo lugar, a afirmação de que fora da União Europeia e do Euro o futuro de Portugal seria catastrófico. Bom, João Ferreira do Amaral, que não é do PCP nem do Bloco de Esquerda, e que é até um católico, não pensa assim. Sofreríamos, naturalmente, algum custo de adaptação com essa saída, mas que poderia ser minimizado, precisamente, com as medidas recentemente propostas à Comissão Europeia pelos eurodeputados do PCP: a criação de uma dotação que possa vir a ajudar os países que venham a deixar a Zona Euro, livremente ou forçados a tal. E basta escutar o que há dias disse o Ministro das Finanças da Alemanha: a Alemanha, Portugal e mais treze Estados defenderam, para vantagem da Grécia, uma saída temporária do euro.
Em nono lugar, o Presidente da República referiu que em quarenta anos de democracia, nunca os Governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas, isto é, de forças políticas que, nos programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da União Bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da União Económica e Monetária e a saída de Portugal do Euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador. Trata-se de um conjunto de afirmações sem real valia, porque o Governo que vier a governar Portugal nunca irá tratar nenhum destes casos, incluindo o que maior estabilidade apresenta e que será o liderado pelo PS de António Costa.
Se me perguntarem se Portugal deve permanecer, ou não, na OTAN, a minha resposta é simples: é-me completamente indiferente. E a nossa saída desta organização, ou a mera suspensão, não teria para o mundo um infinitésimo de consequências. Recordo, por exemplo, a posição da Dinamarca em face da Operação Tempestade no Deserto, em que recusou participar ou apoiar, ou a da França de Chirac, que recusou apoiar a ação ilegal dos Estados Unidos na Guerra do Iraque. É pena que o Presidente Cavaco Silva se recuse a perceber que a OTAN se reduz, em essência muito forte, aos Estados Unidos e, já a grande distância, ao Reino Unido. O resto, naturalmente, é conversa para fingir uma inexistente igualdade. A OTAN de há muito deixou de ter uma razão lógica para existir, antes se tendo tornado num fator fortemente potenciador de uma guerra fratricida e em larga escala.
Em décimo lugar, o Presidente da República salientou que é seu dever tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do País que, com grande esforço, temos vindo a conquistar. Bom, foi precisamente o que fez com este seu discurso, introduzindo, um pouco por todo o lado, essa mesma instabilidade que disse ser essencial evitar. Aliás, o Presidente Cavaco Silva já tinha gerado esta dinâmica de descrédito externo de Portugal com aquele seu discurso de Ano Novo, alertando o mundo para que poderíamos estar a caminhar para uma situação explosiva... Bom, não se podia operar melhor uma qualquer explosão. No fundo, o que um dia também havia feito Durão Barroso, com o seu tristemente célebre discurso da tanga.
E logo voltou a esta sua infeliz ideia de pôr em causa a situação de Portugal, reiterando o seu grande receio numa quebra de confiança das instituições internacionais nossas credoras, dos investidores e dos mercados financeiros externos. Bom, não se pode proceder pior para desacreditar a situação futura de Portugal e dos portugueses. Se o Presidente da República profere palavras deste tipo, que conclusões haverão de tirar os não portugueses que possam estar atentos ao que se passa em Portugal?
Em décimo primeiro lugar, as qualificações, absolutamente fora de toda a realidade, que fez sobre a alternativa que lhe foi apresentada pelo PS, Bloco de Esquerda, PCP, Os Verdades e PAN. Inconsistente?! Mas porquê, se o apoio ao Governo do PS de António Costa é para a legislatura e em nada põe em causa o normal funcionamento do País? É uma tomada de posição que só pode ser percebida pelo facto de Aníbal Cavaco Silva de há muito se ter determinado a dar o seu aval ao seu partido, haja o que houver.
E, em décimo segundo lugar, a sua impensável referência à consciência dos deputados. Ora, diz um velho ditado popular digno de registo que há males que vêm por bem. Por um lado, os deputados da direita do PS, simpatizantes da política da coligação do PSD e do CDS/PP, ficaram agora a perceber que o seu papel poderá estar hoje a ser visto, em muitos meios, como o de marionetas ao serviço dos grandes interesses representados pelo PSD e pelo CDS/PP. E, por outro lado, os portugueses perceberam agora como é oposta a natureza de uma Maioria-Governo-Presidente de Esquerda ou de Direita. Podem agora dar-se conta do que virão a ser as consequências de uma vitória de Marcelo Rebelo de Sousa na próxima eleição para o Presidente da República. E podem também compreender agora o real alcance das mudanças propostas pelo Presidente Cavaco Silva na Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial. Um Presidente da República de Direita, no tempo político que passa, só terá um significado e uma consequência: a direita no poder para sempre e, quase com toda a certeza, o fim do PS a um prazo inferior ao médio. A verdade é que eu mesmo acredito, e de há muito, que existe no seio do PS uma quinta coluna que pretende isto mesmo.
Por fim, três notas. Quando se desempenha as funções de comentador político é essencial não se estar vinculado, por via de amizade profunda, a alguém que pode ser criticável. Precisamente o que se dá com Manuela Ferreira Leite, por via de cujos comentários os mais ingénuos poderiam imaginar que o Presidente Cavaco Silva possui o dom da infalibilidade. Manuela Ferreira Leite, como de há muito escrevi, é, quase com toda a certeza, a personalidade mais fraca da nossa televisão ligada ao comentário político.
Uma segunda nota: perante este discurso, o que têm Mário Soares, Jorge Sampaio, Eanes, Vítor Constâncio, Guterres, Almeida Santos, Vítor Ramalho, José Lello, Maria de Belém, Henrique Neto, António Sampaio da Nóvoa, Jaime Gama e Arnaut a dizer? Porque os eurodeputados do PPE pronunciaram-se. Até Mário Draghi! E mesmo Merkel e Rajoy, entre outros. No fundo, toda a Direita o fez, mas não a Esquerda. Há uma fantástica falta de coragem ao nível do Partido Socialista Europeu e dos militantes do PS, mormente das suas personalidades historicamente mais marcantes. Por este andar, o PS vai-se transformando, graças à sua quinta coluna, no partido bengala da grande direita dos interesses que trouxe aos europeus, de um modo muito geral, o desemprego e a pobreza.
E uma terceira nota: podem agora António Costa e António José Seguro perceber bem o que foram as mil e uma dificuldades colocadas à governação de José Sócrates pelas sucessivas e desestabilizadoras intervenções políticas do Presidente Cavaco Silva. Um infeliz destino histórico-político.
